Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Mulheres-Damas

Mulher-Dama

Mulher-dama


 

O que era, no século XVIII, a mulher-dama?

Falemos baixo. Adivinho um sorriso à minha volta. E porquê? Não há definição mais simples. Não há resposta mais fácil. A mulher-dama, na Lisboa escandalosa de 1750, era... - era isso, exactamente.

Mulher‑dama, frança-dama, sécia-dama, dama tout court, foram outros tantos eufemismos delicados de que se serviu a galanteria portuguesa do século XVIII para designar a fille de joie do Mocambo e dos arcos do Rossio, a mundana cotada alto, que as «turinas fêmeas» descreveram na francesia das modas e dos gestos, para quem D. João V, magnífico de sensualidade, mandou cunhar as dobras de oiro de duas caras, e cujas pantalonas cor-de-rosa fizeram mais tarde, nas alamedas fradescas do Passeio Público, o terror ingénuo desse bom Homem que foi o intendente Pina Manique. A história anedótica, que passa sorrindo pelas cómicas e pelas freiras; que se demora hoje na portaria de Santa Clara, amanhã no pátio da Mouraria; que inquire, escrupulosamente, quantos bacios de prata tinha soror Paula em Odivelas e quantos narizes vermelhos espreitavam da rótula do camarote dos frades quando pousava em tablas a Escamilha, - não se deteve ainda um momento para atirar, com as pontas dos dedos, um beijo a essas fugitivas «Fílis» e «Sílvias», loucuras de acaso e paixões dum instante, cujas carícias ,extenuavam menos do que, uma hora de grade, e cujo leito era disputado à noite, à ponta de espada, pelas betesgas e pelas alfurjas silenciosas de Lisboa. A fácil glória desse beijo, a século e meio de distância, estava reservada para mim. Permitam-me, meus amigos, que os conduza durante alguns minutos aos mauvais lieux lisboetas do século XVIII, - e que lhes apresente algumas dessas pródigas de amor, dessas dissipadores de beleza que Manuel de Figueiredo descreveu na «Licori» do Mapa da Serra Morena, que Joaquim da Costa e Pedro Alexandrino pintaram, numa névoa doirada de bosque, por todos os altos-de-porta, por todos os tampos de espineta, e para quem Link, o viajante alemão mal humorado que chamou a Lisboa «uma cidade de piolhos», teve estas palavras quase amáveis: «Quoiqu'à Lisbonne les filles publiques ne soient pas rares, il s'en faut de beaucoup qu'elles soient aussi importunes que celles de Londres et du Palais-Royal à. Paris...»

Uma das mais célebres «mulheres-damas» que viveram em Lisboa por volta de 1730, era conhecida pela alcunha de «Giganta», morava ao arco dos Pregos, e a ela se refere de passagem Tomás Pinto Brandão. Máscula, gimnandra, enorme, tinha vindo para Portugal com um gascão, cavaleiro de Malta, e, desaparecido ele, para aqui ficou, oferecendo a faceiras e frades, fidalgos e cónegos, mulatos e principais vermelhos da Patriarcal, como a giganta de Baudelaire, a sombra imensa dos seus seios. Competia com ela em notoriedade e em preço a «Rosa Galega», moradora aos Remolares, antiga dama de comédia, debaixo de cujas rótulas verdes costumava juntar-se meio mundo a ouvi-la cantar à viola, em italiano, castelhano e português. Mas nenhuma foi tão insigne na arte de endoidecer e de explorar o sexo forte, como certa mulher loira e esbelta conhecida pela «Irlandesa», que arruava de coche dourado por Lisboa como uma embaixatriz, e que era protegida, entre outros, pelo filho do conde de Valadares, prelado da Igreja Patriarcal. O filho do conde quis fugir com ela da corte quando percebeu que já devia dezanove mil cruzados; mas foi preso por ordem de D. João V e levado à Torre de Belém, onde esteve noventa dias privado do coro e do leito da «Irlandesa», de quem não se soube mais em Lisboa. Passados poucos meses, em 6 de Junho de 1742, novo escândalo: o marquês de Alegrete surpreendeu o sobrinho do embaixador de França nos braços de uma espanhola que tinha sido moça das damas da comédia e que passava por ser propriedade exclusiva do marquês; vieram espadins fora, o sobrinho do embaixador caiu, numa poça de sangue, com uma estocada em pleno peito, - e a diplomacia precisou de muito mais tempo para compor o negócio com o gabinete de Paris, do que a espanhola para convencer o marquês da sua inocência e da sua virtude.

Mas o caso mais sensacional dos mauvais lieux do século XVIII foi o sucedido a «madama» Dionísia Águas Belas, mundana que os faceiras consideravam a mais linda mulher das Espanhas, que D. João V conheceu, e a quem certa noite, sem se saber porquê, cortaram a cara com facadas. O Mercúrio de Lisboa, curioso gazeta manuscrita do tempo, conta o caso em todos os seus pormenores. Transcrevo, para mostrar a forma sugestiva por que já se fazia reportagem no tempo de D. João V: «No Sábado, 16 (Janeiro de 1745), deram uma navalhada pela cara à Madama Dionísia Águas Belas, por alcunha a Francesa, natural das Ilhas, que mora no terreiro do Paço por cima do Açougue: levou 22 pontos, e em toda esta semana esteve em perigo de vida. Achando-se melhor, pediu um espelho e vendo a disformidade em que a desgraça á tinha posto, exclamou: Ah, Dionísia! Já a tua cara tem ganhado o que havia de ganhar!». Um mês depois, a «Francesa» ainda estava detida em casa do desembargador Francisco Xavier Percil, por não querer confessar o nome do homem que a ferira. Teria sido ela a mãe do menino de Palhavã, D. António?

Um soneto inédito dedicado às «mulheres-damas», que se encontra no códice 8.599 do Fundo Antigo dos manuscritos da Biblioteca Nacional e que, pelo seu "excessivo realismo, não pode reproduzir-se, dá-nos conta da predilecção da mocidade elegante de 1750 pelas francesas e do hábito inveterado de falar francês no mais íntimo comércio da galanteria. O que não quer dizer que as espanholas descaíssem muito da graça: era espanhola Señorita Maria Madalena, que deu brado na corte e a quem se fizeram ondas de versos; espanhola a célebre Teresa Rosa, que usava o cabelo cortado e que se calçava sempre de veludo berne; espanhola a Cirne; espanhola a Martinha, estremenha de olhos pretos e de ancas esculturais, que dançava maravilhosamente o «arromba» e o «arrepia»; espanholas todas as mulheres-damas presas no Limoeiro em 12 de Maio de 1744, por terem roubado seis mil cruzados a Álvaro Nunes, mercador a retalho na Rua dos Escudeiros. Italianas, que eu saiba, houve uma só, ruiva, a quem chamavam a «Genovesa», mas que era veneziana de origem, zentildona que viera dos jardins enevoados de oiro da Zuéca, que usava nas ligas a divisa «veni qua, baron» e que um soneto inédito e também irreproduzível nos mostra seguida sempre de dois cicisbei à moda italiana, os dois «corretores das felicidades de Génova», um «carinha de assobio, cabeleira negra, afrancesada», outro «de mau-olhado, casaca alvadia, verde-negro na cor». E portuguesas? Houve muito poucas que se celebrizassem no amor venal da Lisboa de 700. Nas suas cartas, ainda inéditas, dirigidas ao filho do marquês de Pombal, Goubier de Barrault conta, em linguagem um pouco livre, as suas impressões acerca das «mulheres-damas» portuguesas e dos bailes que elas davam, «avec douze bouts de chandelles de suif, un violon ivre, un clavecin dont personne ne savait jouer et une vingtaine de grisettes demi castor», em certa casa que ainda existe na rua das Salgadeiras. Num desses bailes, o galante francês foi convidado a dansar «par une des plus jeunes garces de l'assemblée, qui avait une robe de moyre de soye couleur de rose»; ceou com ela um «roast-beef furieux», dois perús horríveis, uns picatostes de presunto, tudo à mão, porque não era costume comer com garfos, - e acabou a noite, extenuado, enervado, «dans un petit lit de trois palmes de large, sur lequel on ne pouvait tenir qu'en pyramide...»

História escandalosa?

E que importa! Todos esses perfis amorosos de noceuses, que parecem sorrir-nos ainda, entre revoadas de Amores, pojando os donaires na galera de oiro do «Embarque para Citera», - todos esses frutos venenosos de volúpia e de pecado, que a distancia de cem anos transformou na sombra esmaecida dum perfume, só têm hoje, para nós, pobres pecadores, a vaga beleza das coisas que se recordam e que já não se podem possuir...

 

Júlio Dantas

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