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Senhorita da Comédia |
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Ao domingo,
o faceira ia à missa. À segunda‑feira ia ao Lausperene. À terça,
namorava na grade de Santa Clara. À quarta, passeava nos arcos do Rossio. À
quinta, ia ao teatro.
No século
XVIII, a quinta-feira era, para os corros de comédias de Lisboa, o dia da
moda. Era às quintas-feiras que o Pátio das Arcas dava comédias novas; era
às quintas-feiras que no corro dos Condes bailavam as francesas de Mr. Dandem;
era às quintas-feiras ainda que a garganta de oiro das Paghetti chilreava nas
óperas italianas da Trindade; era, finalmente, às quintas-feiras que o António
Antunes e o Tortinho da Sé - duas glórias do teatro português de 1740
- iam bailar os bonecos ao Pátio da Mouraria e cantar em falsete, nas
óperas de bonifrates, o «duo da vassourinha» e a «ária do balalão». Mas
o faceira perfeito, o «frança» que cumpria as leis da turina quotidiana, não
frequentava indistintamente um ou outro teatro. Tinha as suas predilecções.
As óperas de bonecos da Betesga eram para o vulgo, para a mafra‑baixa
que delirava com as tramóias e com o «entremez do Malacoco»; as francesas
dos Condes, mais damas do que cómicas, traziam, em volta delas, como bezerros
de ouro, todos os mercadores chamorros do Rossio e todos os lojeiros pé-de-boi
da Rua Nova dos Ferros; as Paghetti, não devia o «França» ir aplaudi-las
à Trindade, para se dar ares de que as ouvia quando elas cantavam no Paço,
diante de el-rei: restava, para a preferência do faceira, o nobre Pátio das
Arcas, teatro tradicional de Lisboa, entalado, com os seus cunhais de armas,
entre a rua das Arcas e a rua dos Escudeiros, o beco das comédias e o beco de
Lopo Infante, corro sagrado pelo sangue português de todos os duelistas
fidalgos do século XVII - «Dios y mi
honor!» - e em cujas tablas gloriosas passavam ainda, envoltos no rebuço
dos seus mantos negros, os espectros de Fray Lope e de Calderon, de Guevara e
de Tirso de Molina. Era para o Pátio das Arcas - e quando ele esteve fechado,
de 1727 a 1738, para o teatro do Bairro Alto, na morada de casas do conde de
Soure - que vinham representar, em revoadas inquietas, as mais célebres cómicas
da Espanha. Foi a essas flores dos corros de Toledo e de Sevilha, de Salamanca
e de Valladolid, niñas holgonas de
olhos de amêndoa e almas de azougue, embiocadas em mantéus pretos,
empoleiradas em socos dourados, que os chombergas e os faceiras, os franças e
os bandalhos de Lisboa chamaram, num sorriso que durou oitenta anos, «senhoritas
da comédia».
O turina
pelintra de 1707, quando chegava a quinta-feira, tinha um problema a resolver:
encontrar um fidalgo que quisesse levá-lo, de camarote, à comédia nova do Pátio
das Arcas. À tarde, uma hora antes de se abrir o corro, ia encostar-se, de
estaca, a um cunhal da raia dos Escudeiros, com a sua casaquinha verde de
enjoado arreganhada pelo quitó, o chapéu «à malbruca» esbeiçando do
sovaco, e principiava a cortejar com trocadilhos de pernas, a torto e a
direito, para todas as seges, para todas as berlindas, para todas as calejas
que seguiam a caminho do teatro. Se algum fidalgo reparava nele e se debruava
do coche, o faceira, risonho, atirava-lhe outra cortesia danada, sacudia um
mergulho, sorria com olhos dormidos e boca de rafeiro, e mal o dono da
liteira, da caleja ou da estufa esboçava o gesto de convite que era costume
dirigir-se aos conhecidos, o «frança» não queria saber de mais nada:
galgava o estribo, subia ao persevão, enfiava pelo coche - «criado, meu
senhor!» - e lá ia, com o conde da Ericeira ou com o marquês de Cascais,
com o filho do conde do Prado ou com o irmão do marquês de Fontes, para uma
rótula ou para uma cortina, para uma forçura ou para um camarote do tablado,
assistir às jornadas do Desden con el
desden ou do Don Gil de las calzas
verdes, dizer adeus de longe às senhoritas da comédia, cortejá-las
familiarmente quando elas assomavam aos panos do vestiário, cuspir para baixo
para o povo (que afidalgava muito), cabecear os motetes do Filigrana e do
Borrinha, e, ombro com ombro da melhor nobreza de Portugal, comentar com ares
entendidos e boquinhas de jarro a saída da primeira dama.
- Resolutíssima!
Resolutíssima! Muito bem pousa esta mulher em tablas!
Nesse
momento, o faceira da primeira metade do século XVIII era um homem feliz. Tão
feliz, pelo menos, como se andasse, nos arcos do Rossio escudeirando as
mulheres-damas, ou como se a sua freira lhe houvesse concedido uma hora de êxtase
e de contemplação, em religioso silêncio, na grade doirada de Odivelas ou
de Vialonga. Ter «a sua cómica» era um título de tanta fidalguia, para o
turina de 1707, como «ter a sua freira». O rebuço amantilhado das
senhoritas da comédia valia o hábito sumptuoso das freiras de S. Bernardo.
Eram duas formas diferentes do platonismo. Quando uma cómica, agradecida dos
seus aplausos, lhe atirava uma flor para o camarote ou lhe jogava a asa de
seda do abanico, o faceira entrevia o sétimo céu. Não era já a carícia
misteriosa, a carícia em segredo na sombra dum locutório pobre de capuchas;
era a manifestação de preferência, era a fineza de ostentação recebida de
uma mulher bonita, em plena luz, perante a multidão ululante dum pátio de
comédias. O platonismo da freira foi a voluptuosa adoração dum impossível;
o platonismo da cómica foi a exaltada satisfação de uma vaidade. Desde a
remota Josefa Vaca, mulher do comediante Morales, até à graça desnalgada da
Pepa Ortiga; desde a linda Margarita que no Mejor
par de los Doce, coberta de jóias, entrava a cavalo pelo tablado do Pátio
das Arcas, até à Escamilha, a melhor actriz de Madrid, que por três vezes
endoideceu Lisboa e por quem o moço Fernão Teles caiu na rua dos Escudeiros
com uma estocada em pleno peito; desde a Undarro até à Rosa Galega; desde a
Mariana Rubim, tão boa dançarina, dizia o Pinto Renascido, que «só do
abalo de seus pés tremiam os nossos quadris», até à ladina Isabel Gamarra,
cómica do teatro do Bairro Alto, que passou a vida a fugir, do marido para o
marquês de Gouveia, do marquês de Gouveia para o mosteiro das Mónicas e
outra vez do mosteiro das Mónicas para os braços do marido, - quantas
senhoritas da comédia, por esses corros lisboetas dos séculos XVII e XVIII,
olhos flamejantes do sol de Espanha, pés ligeiros sapateando os socos
mordidos de ouro, atirou o seu coração, como uma, flor, à vaidade
tumultuosa dos portugueses! E como essa vaidade lhes agradeceu, das forçuras
dos fidalgos até a rótula do camarote dos frades, do sobrado gralhante de
povo miúdo até aos escanos nobilíssimos das ilhargas do tablado, coloridos
de bancais de armas, - como essa vaidade, ao mesmo tempo ingénua e formidável,
pagava a dobrões de ouro cada sorriso, a patacas de prata cada palavra, a mãos
cheias de diamantes cada beijo, e gritava, e irrompia de todos os cantos do pátio,
em gritos bárbaros de aplauso, juntando na mesma loucura faceiras e baetas,
fidalgos e frades, desembargadores e michos, mulatos e cónegos:
-
Vítor! Vítor! Salga! Salga!
Mas
o jubiléu do faceira não terminava com a representação. Depois de assistir
à comédia e ao entremez; depois de receber com desprezilhos de beiços o «arreburririho»
do gracioso das bexigas, - o frança, já noite fechada, descia solenemente do
camarote, vinha à rua das Arcas coalhada de mendigos e de coches, e,
tornejando ao beco de Lopo Infante, ia ver sair as cómicas pela portinha do
vestiário, embiocadas nos seus mantos, cortejá-Ias de perto, conversá-Ias,
tratá-las familiarmente pelas praças e pelas alcunhas, dizer-lhes as tolices
costumadas - «fortes lances!», «questo
me piace!», «um descoagulante, señorita?», «quer chá, pechori?» - e
alumiados pelos criados de tocha, entre o tumulto dos liteireiros e dos eguariços,
dos sota-cocheiros e dos lacaios da tábua, ajudá-las a subir para as
liteiras, para as seges, para as cadeirinhas, meter-lhes à despedida a sua
cortesia de aba-beijada, e repetir, em falsete, para a roda dos fidalgos, o
seu superlativo favorito:
-
Nombre de Dios! Resolutíssima!
Resolutíssima!
Desaparecidos
os últimos machos de liteira; despejada a última cómica, que lá ia cone o
seu sigisbéu bamboleando nas almadraquexas de riço vermelho; perdido nos
cunhais do largo dos Escudeiros o clarão da última tocha acesa, - o faceira,
risonho, satisfeito, saciado, inundado dum sorriso de bem-aventurança,
enfiava pelos becos e pelas alfurjas a caminho de casa, esguelhando os olhos
para as sombras com medo da sovela dalgum picão, a cantarolar o minuete feito
à Margarita, quando, anos andados, caída do cavalo no Pátio das Arcas,
perdera o seu grande anel de diamantes:
Mujer;
no te aflijas Dessas
encontradas; Otras
cavalhadas Te
daran sortijas... |
Júlio Dantas
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