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A bandarra à janela |
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Um
psicólogo do tempo de D. João V definiu o namoro «a arte de fazer
entendimentos».
Entendimentos
por palavras, quando se falavam; entendimento por cartas, quando se escreviam:
e quando não podiam falar-se, nem escrever-se, que era o que acontecia
quase sempre, - entendimentos, por trejeitos, por acenos, por suspiros,
por piscações de olho, por sinais
de chapéu de lenço e de leque, por mordeduras de beiços, por atitudes de quitó,
por, cortesias de aba-beijada, e, acima de tudo, pela mais viva, pela mais
eloquente, pela mais característica expressão da ternura portuguesa nos séculos
XVII e XVIII: o «escarrinho». Foi especialmente a este entendimento furtivo
e sem palavras, a esta comunhão em silêncio e à distância, tanto mais
deliciosa quanto mais espiada era, tanto mais atraente quanto maiores perigos
corria, que os nossos avós chamaram o namoro Namorava-se «escudeirando»,
é certo; namorava-se também «bufarinhando».
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O faceira |
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Tudo
era namorar. Mas, verdadeiro namoro, o namoro lisboeta por excelência, o
namoro a grande instrumental, o namoro que levava à felicidade quando não
levava às grades de um mosteiro, o namoro que terminava pelo casamento quando
não acabava às bengaladas dos pais, era o namoro «de bichancros», era o
namoro «de gargarejo», era o namoro «de janela-abaixo». Por toda a parte
em Lisboa se namorava assim. Ela de casa, espreitando pelo postigo da rótula;
ele da rua, quase sempre num pé só, estendendo o pescoço para a janela como
um peixe de Santo António. O faceira encostava-se à parede? Namorava «de
estaca». O faceira ficava no meio da rua, espetado como um boneco de
picadeiro? Namorava «de estafermo».
Como
se faziam os entendimentos no namoro de estafermo e de estaca? Como chegavam a
perceber-se, sem trocar uma palavra, os namorados do século XVIII?
Se
me dissessem que no tempo de D. João V tinha havido professores de namoro, tão
naturalmente como havia por toda a parte professores de dança, - eu
acreditava. Acreditava, por que não é de presumir que um «frança» de 1720
saísse do ventre materno conhecendo a ponto todo o ritual, toda a etiqueta,
todas as complicações dum galanteio de janela-abaixo, como usavam praticá-lo,
das vielas do Mocambo aos arcos do Rossio, os turinas de Lisboa. A primeira
coisa que o faceira tinha de aprender bem, era a responder com elegância ao
«escarrinho». Quando ele chegava debaixo das janelas da bandarra, tôdas as
gelosias estavam fechadas; todos os ferrolhos corridos; era preciso esperar
que o postigo se abrisse, e que o escarrinho terno trilasse lá de cima, como
uma cigarra nova numa moita de primavera:
-
Grr!
Eram
os bons dias, era o Deus te salve, era a benção de amor a que o faceira
respondia de baixo, noutro escarrinho de falsete, cantado como um grilo,
caricioso como um gorgeio:
-
Grr!
E
um instante, dos beirais do telhado ao poial das portas, dos nichos de azulejo
à reixa das adufas, toda a casa, toda a rua chilreava, e trilava, e dobrava o
canto, como uma grande árvore salpicada de ninhos:
-
Grr! Grr!
Só
então era permitido ao faceira levantar a cabeça, pôr os olhos em alvo;
meter discretamente a sua cortesia de aba-beijada, e tomar posição de estaca
ou de estafermo, - conforme os seus recursos de elegância e de equilíbrio. O
chapéu de três ventos empoleirava-se «a mamar» no sovaco; o espadim
doirado, luzindo o seu punho de França, entalava-se entre as coxas; vinha o
lenço, agora desdobrado a todo o pano, a dizer alegria, logo pendente dos beiços,
como um monco de neve, a apregoar, ternura; mordia-se o beiço, que era tentação;
cruzava-se a perna, tão de leve, que o pé direito ficava danando no ar; se
havia ciúmes, armavam-se olhos de besouro, boca de rafeiro, e trazia-se o
chapéu como guarda-vento até ao reparo do rosto; assoar-se, queria dizer
desdém que afidalgava muito; tossir, era atenção; cuspir, enjoo; piscar um
olho, amor; piscar os dois, desespero; e, quando, em plena rua, babando-se,
namorando de estaca entre um mariola de capote e uma gritadora de loiça
vidrada da Panasqueira, o «frança» se via a ponto de fazer entendido um
recadinho, - lá tínhamos nós o alfabeto de dedos, a linguagem de trejeitos,
o A na moleira, o B
na barba, o C na cabeça, o X cruzando os braços, e, com admirável propriedade, o T
na testa. A agilidade, a rapidez com que a bandarra respondia do postigo,
acenando, trejeiteando com os dedos, como se volteasse e revolteasse neles os
bilros duma renda! E a delícia que era para ambos conversarem em silêncio,
entenderem-se sem palavras, viverem, alheios a tudo, a incomparável patetice
do seu amor de acenos, enquanto na rua, ao sol, os cães ladravam, mendigavam
frades, tilintavam machos de liteira, passavam chanfaneiros pregoando hortaliças
viçosas em alforges mouriscos, e toda a vida da cidade formigava, gritava,
tumultuava! Não havia calmas de Agosto, nem tempestades de Dezembro que
fizessem o faceira arredar pé. Queimava-o o sol, sacudia-o o vento,
varejava-o a chuva, - e ele ficava impassível, o chapéu no sovaco, o
lencinho na boca, a perna no ar em contemplação, em êxtase. Encharcava-se?
Sorria. Constipava-se? Voltava. O namoro de estafermo, quanto mais assoado
mais fidalgo, quanto mais constipado mais distinto. O
próprio Montesquieu o notou, nas suas Letlres
Persannes: «un portugais qui n'etait pas enrhumé, ne saurait passer pour
galant».
E
ninguém se ria desta caricatura? - perguntarão.
Evidentemente.
Lisboa inteira riu a trancos do namoro de estafermo e de estaca. Mas Lisboa
inteira acabou por habituar-se. Era ainda uma consequência dos costumes árabes
do lar português. Foi preciso aceitá-la.
Quando,
em 1738, o autor da Description de la
ville de Lisbonne esteve em Portugal, admirou a indiferença e a
naturalidade com que pessoas de bom senso suportavam todas as extravagâncias
e todos os, ridículos do namoro lisboeta. O próprio José Agostinho, na Besta esfolada, recorda, com benevolência os peraltas «que
apanhavam a cacimba e o relento da noite debaixo das janelas da amada até ao
despontar da estrela de alva, e não levavam para casa senão um escarrinho».
O faceira do primeiro quartel do século XVIII não teve grandes razões para
se queixar do riso do seu tempo: Mas teve-as, de sobra, para temer os cacetes
de carrasco ou de zambujo ferrado com que pais e irmãos, maridos e tutores o
mandavam deslombar na volta da primeira esquina, - quando não era a navalha
dum mochila da casa, pago e peitado por uma pataca de prata, que o estendia de
borco nas pedras da rua. Namoro espiado e contrariado pelos pais, era um poço
de
desventuras
para o faceira. O menos que podia acontecer-lhe, enquanto falava pelos dedos
ou trilava um escarrinho, era abrir-se uma rótula de manso, assomar uma
mulata remangada, cochichar para dentro com a mãe da menina, levantar um pote
nas mãos, debruçá-lo, emborcá-lo a festo sobre a cabeleira do «frança»,
e quando já a testeirada de esterco lhe cegava os olhos, e lhe empastava a
peruca, e lhe pingava da cara, ouvir que lhe ganiam de cima, entre fungos de
riso:
-Água
vai!
Júlio Dantas
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