Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Namoro de estafermo e de estaca

Bandarra à janela

A bandarra à janela


 

Um psicólogo do tempo de D. João V definiu o namoro «a arte de fazer entendimentos».

Entendimentos por palavras, quando se falavam; entendimento por cartas, quando se escreviam: e quando não podiam falar-se, nem escrever-se, que era o que acontecia quase sempre, - entendimentos, por trejeitos, por acenos, por suspiros, por piscações de olho, por sinais de chapéu de lenço e de leque, por mordeduras de beiços, por atitudes de quitó, por, cortesias de aba-beijada, e, acima de tudo, pela mais viva, pela mais eloquente, pela mais característica expressão da ternura portuguesa nos séculos XVII e XVIII: o «escarrinho». Foi especialmente a este entendimento furtivo e sem palavras, a esta comunhão em silêncio e à distância, tanto mais deliciosa quanto mais espiada era, tanto mais atraente quanto maiores perigos corria, que os nossos avós chamaram o namoro Namorava-se «escudeirando», é certo; namorava-se também «bufarinhando». 

Faceira em namoro de estafermo

O faceira

Tudo era namorar. Mas, verdadeiro namoro, o namoro lisboeta por excelência, o namoro a grande instrumental, o namoro que levava à felicidade quando não levava às grades de um mosteiro, o namoro que terminava pelo casamento quando não acabava às bengaladas dos pais, era o namoro «de bichancros», era o namoro «de gargarejo», era o namoro «de janela-abaixo». Por toda a parte em Lisboa se namorava assim. Ela de casa, espreitando pelo postigo da rótula; ele da rua, quase sempre num pé só, estendendo o pescoço para a janela como um peixe de Santo António. O faceira encostava-se à parede? Namorava «de estaca». O faceira ficava no meio da rua, espetado como um boneco de picadeiro? Namorava «de estafermo».

Como se faziam os entendimentos no namoro de estafermo e de estaca? Como chegavam a perceber-se, sem trocar uma palavra, os namorados do século XVIII?

Se me dissessem que no tempo de D. João V tinha havido professores de namoro, tão naturalmente como havia por toda a parte professores de dança, - eu acreditava. Acreditava, por que não é de presumir que um «frança» de 1720 saísse do ventre materno conhecendo a ponto todo o ritual, toda a etiqueta, todas as complicações dum galanteio de janela-abaixo, como usavam praticá-lo, das vielas do Mocambo aos arcos do Rossio, os turinas de Lisboa. A primeira coisa que o faceira tinha de aprender bem, era a responder com elegância ao «escarrinho». Quando ele chegava debaixo das janelas da bandarra, tôdas as gelosias estavam fechadas; todos os ferrolhos corridos; era preciso esperar que o postigo se abrisse, e que o escarrinho terno trilasse lá de cima, como uma cigarra nova numa moita de primavera:

- Grr!

Eram os bons dias, era o Deus te salve, era a benção de amor a que o faceira respondia de baixo, noutro escarrinho de falsete, cantado como um grilo, caricioso como um gorgeio:

- Grr!

E um instante, dos beirais do telhado ao poial das portas, dos nichos de azulejo à reixa das adufas, toda a casa, toda a rua chilreava, e trilava, e dobrava o canto, como uma grande árvore salpicada de ninhos:

- Grr! Grr!

Só então era permitido ao faceira levantar a cabeça, pôr os olhos em alvo; meter discretamente a sua cortesia de aba-beijada, e tomar posição de estaca ou de estafermo, - conforme os seus recursos de elegância e de equilíbrio. O chapéu de três ventos empoleirava-se «a mamar» no sovaco; o espadim doirado, luzindo o seu punho de França, entalava-se entre as coxas; vinha o lenço, agora desdobrado a todo o pano, a dizer alegria, logo pendente dos beiços, como um monco de neve, a apregoar, ternura; mordia-se o beiço, que era tentação; cruzava-se a perna, tão de leve, que o pé direito ficava danando no ar; se havia ciúmes, armavam-se olhos de besouro, boca de rafeiro, e trazia-se o chapéu como guarda-vento até ao reparo do rosto; assoar-se, queria dizer desdém que afidalgava muito; tossir, era atenção; cuspir, enjoo; piscar um olho, amor; piscar os dois, desespero; e, quando, em plena rua, babando-se, namorando de estaca entre um mariola de capote e uma gritadora de loiça vidrada da Panasqueira, o «frança» se via a ponto de fazer entendido um recadinho, - lá tínhamos nós o alfabeto de dedos, a linguagem de trejeitos, o A na moleira, o B na barba, o C na cabeça, o X cruzando os braços, e, com admirável propriedade, o T na testa. A agilidade, a rapidez com que a bandarra respondia do postigo, acenando, trejeiteando com os dedos, como se volteasse e revolteasse neles os bilros duma renda! E a delícia que era para ambos conversarem em silêncio, entenderem-se sem palavras, viverem, alheios a tudo, a incomparável patetice do seu amor de acenos, enquanto na rua, ao sol, os cães ladravam, mendigavam frades, tilintavam machos de liteira, passavam chanfaneiros pregoando hortaliças viçosas em alforges mouriscos, e toda a vida da cidade formigava, gritava, tumultuava! Não havia calmas de Agosto, nem tempestades de Dezembro que fizessem o faceira arredar pé. Queimava-o o sol, sacudia-o o vento, varejava-o a chuva, - e ele ficava impassível, o chapéu no sovaco, o lencinho na boca, a perna no ar em contemplação, em êxtase. Encharcava-se? Sorria. Constipava-se? Voltava. O namoro de estafermo, quanto mais assoado mais fidalgo, quanto mais constipado mais distinto. O próprio Montesquieu o notou, nas suas Letlres Persannes: «un portugais qui n'etait pas enrhumé, ne saurait passer pour galant».

E ninguém se ria desta caricatura? - perguntarão.

Evidentemente. Lisboa inteira riu a trancos do namoro de estafermo e de estaca. Mas Lisboa inteira acabou por habituar-se. Era ainda uma consequência dos costumes árabes do lar português. Foi preciso aceitá-la.

Quando, em 1738, o autor da Description de la ville de Lisbonne esteve em Portugal, admirou a indiferença e a naturalidade com que pessoas de bom senso suportavam todas as extravagâncias e todos os, ridículos do namoro lisboeta. O próprio José Agostinho, na Besta esfolada, recorda, com benevolência os peraltas «que apanhavam a cacimba e o relento da noite debaixo das janelas da amada até ao despontar da estrela de alva, e não levavam para casa senão um escarrinho». O faceira do primeiro quartel do século XVIII não teve grandes razões para se queixar do riso do seu tempo: Mas teve-as, de sobra, para temer os cacetes de carrasco ou de zambujo ferrado com que pais e irmãos, maridos e tutores o mandavam deslombar na volta da primeira esquina, - quando não era a navalha dum mochila da casa, pago e peitado por uma pataca de prata, que o estendia de borco nas pedras da rua. Namoro espiado e contrariado pelos pais, era um poço de

desventuras para o faceira. O menos que podia acontecer-lhe, enquanto falava pelos dedos ou trilava um escarrinho, era abrir-se uma rótula de manso, assomar uma mulata remangada, cochichar para dentro com a mãe da menina, levantar um pote nas mãos, debruçá-lo, emborcá-lo a festo sobre a cabeleira do «frança», e quando já a testeirada de esterco lhe cegava os olhos, e lhe empastava a peruca, e lhe pingava da cara, ouvir que lhe ganiam de cima, entre fungos de riso:

-Água vai!

 

Júlio Dantas

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