A RODA DOS ENJEITADOS | |||||||||
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Alta
noite, no velho Rossio de D. João V, quando as luzes dos padres de S.
Domingos se apagavam, e esmorecia a candeia do oratório da ermidinha do
Amparo, e os doidos gritavam com mais força na Casa das Palhas, - era
vulgar ver-se escoar na sombra um vulto apressado e ansioso de mulher;
parar a meio do terreno; perscrutar a escuridão; como quem teme ser
perseguida; correr para o Hospital Real de Todos os Santos; galgar as
escadas, que um lanternão de ferro alumiava, e ofegante, amantilhada no
bioco, uma trouxa nos braços, enfiar tremendo pela portaria. Daí a
pouco, no silêncio da noite, ouvia‑se badalar uma sineta, viva
como garrida de capuchos; quem se acercasse das escadas onde roncavam de
borco mariolas e pés forçados, sentia um ruído áspero de torno
conventual que desanda; em seguida, um soluço, um vagido, um beijo;
outra vez o guincho agudo dum espigão ferrugento que emperra e que
roda; ‑ e, andado o tempo dum padre‑nosso, a mulher voltava,
curvada, dolorosa, arrastada como um farrapo, a tropear, a arquejar, a
morder as mãos, a ganir como uma cadela apartada da cria, dor anónima,
tragédia ignorada, desaparecendo, perdendo-se nas sombras do terreiro,
entre os arcos baixos do Rocio e as polés verdes dos ladrões... Tinha
entrado mais uma criança na roda dos enjeitados. O
amor sacrílego dos conventos, a paixão miserável das ruas-sujas, a
vergonha sangrenta dos adultérios, toda a via dolorosa das desonradas,
- era ali que ia ter, àquela casa quadrada do Hospital de Todos os
Santos, entre um painel da Virgem e um velho escano de castanho, uma
corda de sineta e uma roda humilde de portaria. Era ali que chegava,
embrulhado à pressa numa colcha de seda rica ou num burel de
franciscana, a cabeça mal coberta duma lanugem de ouro, a boquita cor
de rosa na ânsia animal de sugar, as mãos pequeninas bolindo,
acenando, chamando pela sua própria desgraça, - o ponto final de quase
toda a galanteria lisboeta da primeira metade do século XVIII. Havia
noites em que a Casa da Roda sorria, cantava, chilreava de vagidos como
um presépio enorme. A apojadura das amas pagas pela Mesa dos Santos
Inocentes, não tinha às vezes leite que chegasse para a fome de tanta
boca. Uma grosseira estatística do Mercúrio de Lisboa, jornal manuscrito de 4 de janeiro de 1744, dá-nos
a impressão do movimento, já então considerável, da roda do
hospital: “No ano de 1743 entraram no Hospital Real de Todos os Santos
desta cidade, pela roda e pela porta da casa dela, 1.038 crianças
expostas, a saber 545 meninos e 493 meninas; com 1.717 que no princípio
se estavam criando, faz o número de 2.755. Faleceram das mesmas crianças,
na casa da roda, e das que se tinham dado a criar, 778; e ficou a Mesa
dos Santos Inocentes atualmente correndo com a criação de 1.977 crianças».
A mortalidade era grande, porque eram desgraçadas as condições em que
se criavam os expostos da cidade. Apesar de todos os privilégios e isenções
concedidas às amas dos enjeitados pela lei manuelina de 1502, e
confirmadas pelos alvarás de 1595, 1654 e 1701, faltavam peitos para
alimentar as crianças expostas, e os que se ofereciam ao administrador
da Roda, pobres de viço e de leite, eram aqueles que não se tinham
podido arrematar por boas peças e cordões de ouro nas casas abastadas
de Lisboa. A Mesa dos Inocentes era o último recurso para o leite
mercenário das amas. Algumas delas, para dobrarem a pataca de prata da
criação de cada ano, saíam do Hospital Real com duas crianças
penduradas dos peitos, levando, para o canto hediondo da sua alfurja de
miséria, - a flor de duas vidas. Se alguma das crianças morria, - a
Casa da Roda lá estava, chilreando; trilando como um grande ninho: iam
buscar outra. Se tinha a desgraça de resistir e de viver, - a criação
estava paga até aos 7 anos. E depois? Depois, deixadas as mantilhas e o
leite das amas, o Calvário dos expostos começava. Se elas os queriam
ainda, podiam tê-los em casa mais cinco anos, sem receber criação e
sem pagar soldada. Mas aos doze, o juiz dos órfãos arrematava-os a
quem mais desse por eles; e se havia algum enjeitado enfermiço ou débil
que não tivesse lanço, animal de trabalho que ninguém quisesse, boca
inútil que ficasse pesando no Cofre do Povo, - a Roda enjeitava-o pela
segunda vez, e lá ia, pobre Lázaro infantil, comer à cadeia do Tronco
na gamela dos presos, ou lamber com os cães, na portaria de S. Bento da
Saúde, o resto da sopa dos mendigos. Foi o marquês de Pombal que, pelo
nobre alvará de 31 de janeiro de 1755, procurou remediar este estado de
coisas, definindo a situação e os direitos dos expostos depois dos
sete anos de idade,, regulando as condições em que eles deviam ser
entregues a mestres de ofícios mecânicos, o tempo limitado que eram
obrigados a servir esses mestres sem soldada, e promovendo, duma fôrma
mais humana e mais generosa, a proteção desses pobres sorrisos da
desonra e do acaso, que sentiam já na infância a náusea de viver, - e
que haviam de expiar duramente, pela vida fora, o beijo criminoso de que
tinham nascido. Para
a vida galante da Lisboa do século XVIII, ainda existia a Mesa dos
Santos Inocentes e a roda do Hospital Real. Mas para a vida galante da
província? Que destino levavam, nas cidades e vilas onde não havia
rodas, as crianças nascidas nos mosteiros, nas vielas, nos solares, -
filhas do segredo inviolável do sacrilégio ou da infâmia? A Ordenação,
no seu Liv. 1.°, título 73, impunha aos quadrilheiros a obrigação de
dar parte, às justiças, das mulheres que, “andando prenhes, se
suspeitava mal do parto”. Mas semelhante medida, ampliada depois pelo
alvará de 18 de outubro de 1806, só serviu ódios, escândalos e
represálias. Os abortos e os infanticídios sucediam-se pelos quatro
cantos de Portugal. A população decrescia, assustadoramente. “Em
algumas terras do Reino - diz Pina Manique, em 1783 - estão fechadas e
sem gente grande parte das casas, por não haver quem as habite”. Foi
então que o Intendente Geral da Polícia, munido dos plenos poderes que
lhe conferiam as instruções secretas da Rainha, fez expedir para todos
os provedores das comarcas do reino a circular célebre de, 10 de maio
de 1783, mandando criar e abrir casas de roda para enjeitados em todas
as cabeças de comarca de Portugal. À circular de 10 de maio seguiu-se
os alvarás e as circulares de 31 de março de 1787, de 5 de junho de
1800, de 9 de novembro de 1802, concedendo novos privilégios e
confirmando os antigos às amas dos enjeitados, tomando várias providências
sobre a amamentação das crianças expostas, e, por último, ainda no
consulado fecundo de Pina Manique, o alvará de 24 de abril de 1804, que
determinou para as damas da Ordem de Santa Isabel a obrigação de
assistirem e visitarem as casas de roda pelo menos quatro vezes cada mês.
Mas, apesar de todos os benefícios duma legislação mais humana;
apesar do alvará de 1806, que criou nas casas da roda rudimentos de
maternidades: apesar do alvará de 24 de outubro de 1814, que regulou a
situarão das amas dos enjeitados; apesar do decreto de 14 de abril de
1819, pelo qual D. João VI os entregou à Congregação das Servas
Pobres de S. Francisco de Paula, - a mortalidade dos expostos crescia de
ano para ano em proporções aterradoras. A Memória
estatístico-histórica sobre a administração dos expostos da cidade
do Porto, publicada em 1823 pela câmara constitucional, diz-nos
que, dos 31.257 enjeitados entrados vivos na casa da Roda da cidade de
Virgem, de 1803 a 1822, - morreram 20.975...
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© Manuel Amaral 2009-2012