O
PASSEIO PÚBLICO | |||||||||
|
Sua
Excelência o Intendente Geral da Polícia tinha acabado de assinar um
despacho para o Conde de Vila Verde, quando o magro Corregedor do bairro do
Rossio assomou à porta, adunco, viscoso, fúnebre, enfiado numa casaca
preta que parecia uma loba de clérigo, o lenço vermelho de Alcobaça
pingando da algibeira, um rolo de papeis apertado na mão. Assim que o viu,
Diogo Inácio de Pina Manique saltou na sua cadeira de espaldar: -
Ora ainda bem que é Vossa Mercê! -
Excelência... -
Foram feitas denúncias a esta Intendência Geral, de que no bairro de Vossa
Mercê se joga a bola, contra as ordens de Sua Alteza o Príncipe Regente, e
há jacobinos de França que leem o Gil
Brás de Santilhana! Que sabe disto Vossa Mercê? -
Ainda há pior, Excelência. -
Pior? E para que é Vossa Mercê ministro do Bairro, senão para atalhar
demasias e cumprir os avisos desta Intendência? Vossa Mercê trás na mão
uma vara de justiça ou uma vara de pálio? Por que não mandou Vossa Mercê
prender um mercador holandês que andou ontem de chapéu alto pelo Rossio? -
Por que ia de coche, com o senhor Duque de Lafões. -
Prendesse o mercador, prendesse o Duque, prendesse o coche, prendesse os
cavalos, prendesse tudo! Vossa
Mercê não sabe ainda que o chapéu alto é sinal de jacobinos e que o
senhor Duque de Lafões esconde estrangeiros em sua casa? O
Corregedor estendeu um beiço reflexivo, fungou placidamente no seu
alcobaça enorme, e diante do Intendente da Polícia que gesticulava e
bramia, respondeu, impassível: -
Se eu digo a Vossa Excelência que ainda há pior! Pouco
a pouco, a sala, cheia de quadrilheiros, de meirinhos e de «moscas»,
esvaziava-se. Um figurão velho que dormitava a um canto, com uns grandes
sapatos de fivela e uma cuia de Pernambuco na cabeça, acordou aos berros do
Intendente e saiu coxeando Lampejavam numa chapada de sol os altos silhares
de azulejos joaninos, contando as fábulas de La Fontaine. O Corregedor do
bairro do Rossio olhou em volta, desenrolou os papéis que trazia na mão, e
com a gravidade de quem confia um segredo de Estado, folheou-os lentamente,
circunspectamente, sob o nariz voluptuoso e assombrado de Pina Manique. Eram
pinturas de mulheres quase nuas. Eram os últimos figurinos de França, os
figurinos do costureiro KreissIer e de Madame Gosset, túnicas leves de
musselina da Índia ondulando sobre pantalonas cor de carne, os figurinos
célebres da Revolução, que enchiam em Paris o Journal
de la Mode et du Goût, onde as joias de Mellièri faulhavam abrochando
bicos de peitos nus, e que os últimos pacabotes tinham trazido, em maços,
às modistas francesas de Lisboa. Voavam já, de rua em rua, de casa em
casa, pelos lares, pelos oratórios, pelas famílias, - pelo próprio Paço.
Que eram, ao pé daquelas pinturas de escândalo e de abominação, o jogo
da bola e as obras de Voltaire, o livro de Lesage e o chapéu alto do Duque
de Lafões? Visse bem Sua Excelência o Intendente da Polícia. Nuas como a
senhora Vénus - explicava o Corregedor com uma fraldinha de entre-nalgas,
transparente como um roquete de Bispo, um chapéu de plumas na cabeça à
moda da Zamperini, e um par de anéis nos dedos dos pés, maiores do que
todos os que os Doutores de Coimbra traziam nos dedos das mãos! E enquanto
as figuras passavam, folheadas pelo fúnebre ministro do bairro, uma a uma,
- Pina Manique, apoplético, rubro, esbugalhando os olhos, fungando
indignação e rapé, atirava murros á mesa, arrepelava o rabicho da
cabeleira, empunhava, a tremer de furor católico, o seu óculo, enorme de
punho de oiro: -
E Vossa Mercê sabe se já andam por aí maganas assim vestidas ? -Ainda
agora vi eu duas, - respondeu o Corregedor, imperturbável, tornando a
enrolar os papeis. -
Aonde? -No
Passeio Público. O
Intendente levantou-se dum salto, bateu no chão de tijolo os tacões
vermelhos dos sapatos; enfiou o espadim, agarrou o chapéu, chocalhou uma
campainha de prata e gritou aos quadrilheiros que assomaram à porta -
A sege! Um
quarto de hora depois, o gordo Diogo Inácio de Pina Manique, acompanhado do
Corregedor do bairro do Rocio e de três «moscas» da Intendência,
apeava-se diante das cancelas verdes dessa tristíssima quinta solarenga em
que o marquês de Pombal transformara as hortas viçosas de Valverde. O
Passeio Público pombalino era aquilo: uma larga rua copada de arvoredos,
aberta de banquetas de buxo e de louro tosquiado, com a sua meia-laranja de
embrechados como cerca de frades capuchos e as suas muralhas altas a toda a
volta, rotas a espaços de janelas de poiais gradeadas de ferro. Uma
prisão, um poço, um mosteiro. À porta, frades; mulatos vadios; donatos
mendicantes espojados ao sol; negros repenicando violas e sapateando a fofa
– “la plus indecente chose que
j'aye jamais vue”*,
- disse DaIrymple; padres doutrineiros jesuítas, com o seu leigo e a sua
cana dos coques, esperando os rapazes para a doutrina; mariolas de capote
azul; anões; chanfaneíros descansando a alforjada de hortaliças viçosas;
macacos hirsutos catando mulheres; gregos vendendo figuras de cera; um juiz
do povo a altercar, de bacalhaus e vara vermelha; mendigos, ciganos,
eguariços, cães, toda a vida hedionda da cidade, formigando, gritando,
farejando, fermentando ao sol, entre seges e coches, berlindas e liteiras.
Tinham desaparecido as escadas do Hospital de Todos os Santos; tinha
abatido, arrasada pelo Terramoto, a gloriosa alpendrada dos arcos do Rossio:
toda a mafra se acolhia agora à cancela do Passeio Público, como a uma
portaria de convento, ramalhando rosários,
ganindo ladainhas, pedindo esmola. O Intendente olhou, enterrou o chapéu na
cabeça, apontou ao Corregedor, com a ponta da bengala, “aquela canalha,
do povo que fazia Revoluções”, e enquanto, pelo pátio do Duque, a
cadeirinha do senhor Patriarca, precedida de doze criados de redingotes
vermelhos, passava para o Te-Deum de S. Roque, Diogo Inácio de Pina
Manique, rei de Lisboa, entrou na meia laranja do Passeio Público
pombalino. Logo na alameda grande, onde cabiam a par dois coches da Casa
Real, uma multidão de michos, de negrinhos, de mochilas, de liteireiros, de
beatas, de rascoas de josezinho encarnado e levo de cambraia bicuda, aos
uivos, aos pinchos, às upas, perseguia entre as murteiras duas
mulheres-damas quase nuas, que uma jeunesse-dorée
de peraltas de gravata de espeque e brincos nas orelhas, cabeleira de
trancinhas e pantalonas negras de maccarony,
defendia com os chapéus e os bastões, à pontoada e a murro. Apesar de
todos os cuidados da Intendência de Polícia, as modas da Paris
revolucionária tinham chegado à seráfica, à apostólica Lisboa dos
mosteiros e dos Lausperenes. Eram já as cabeças “à Ia Titus”, como
dizia Filinto; os «telónios»; as «mitras»; as túnicas transparentes
abrochadas de topázios das Terpsícores de Tivoli e de Marboeuf; os pés
descalços, pesados de joias, sobre sandálias doiradas; os bastões
floridos; os schalls à turca; as
cabeleiras verdes e encarnadas, - todo o impudor, toda a extravagância,
toda a vertigem das elegantes francesas de 1800, que Leroy vestira, que
Gérard pintara, que passeavam nuas, pelos Campos Elísios, em berlindas de
oiro, e que surgiam agora, na pequenina Marrocos patriarcal, perante os
olhos dilatados, perante a obesidade estupefacta de Sua Majestade Pina
Manique. Num segundo, as “moscas”, de pistolas aperradas, lançaram-se
sobre as mulheres, arrastaram-nas, levaram-nas em charola para uma sege, e
quando o Corregedor, fúnebre e imperturbável, fungando no seu alcobaça
sarapantão, perguntava ao Intendente Geral da Polícia que ordens dava sua
Excelência Ilustríssima, - Pina Manique, vermelho; arrepelando a
cabeleira, brandindo a bengala, rugiu:
|
| |||||||
| |||||||||
© Manuel Amaral 2009-2012