© Palácio Nacional de São Bento
A conquista de Ceuta de Domingos Rebelo

 

A Expansão portuguesa no século XV 

Parte 4

 


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O Despertar da Violência

 

Impulsionados pelo estímulo do corso e do comércio, as navegações atlânticas do século XV deslocaram para Ocidente, os circuitos comerciais e inauguraram um espaço promissor para as actividades predatórias.

Inicialmente, a violência provocada por piratas e corsários expandiu-se ao longo das costas de Marrocos e na zona dos arquipélagos das Canárias, da Madeira e dos Açores.

À medida que as navegações progrediram para Sul e logo que a América, a Ásia e as ilhas do Pacífico passaram a figurar no atlas dos navegadores europeus, o cenário onde os assaltos marítimos e as surtidas terrestres podiam conciliar-se – como se viu - com o proveito dilatou-se extraordinariamente.

Certas zonas costeiras, alguns arquipélagos e, em especial, os estreitos que balizavam as rotas do comércio exótico, converteram-se em lugares privilegiados para o exercício de actos violentos e pilhagens.

A profunda mutação das coordenadas geopolíticas e comerciais segregou rivalidades entre os “estados”, depredações e conquistas. Para piratas e corsários, a instabilidade das relações internacionais, conjugada com os avultados fluxos de tráfico, proporcionava-lhes um mundo de oportunidades que não hesitaram em explorar. Investir em actividades de piratas e corsários, tornou-se, por conseguinte, um risco aliciante.

Contudo, devido ao aumento das distâncias nas viagens e à navegação no mar alto, a estrutura dos armamentos, quer no plano técnico, quer no financeiro, sofreu alterações. Exigiam-se, para o futuro, elevadas somas de capital, para organizar uma expedição de longo curso.

Adquirir barcos e equipá-los, dispor de instrumentos náuticos actualizados, obter mapas secretos ou raros, contratar pilotos competentes e outras técnicas de navegação, tudo isto implicava avultadas despesas e capacidade para mover influências.

Por fim, era indispensável reunir homens audaciosos, capazes de enfrentar os perigos do mar e a sua permanência, e ainda prontos para arriscarem a vida em combates incertos e inesperados. Uma empresa de corso, ao demandar os mares distantes, assemelhava-se, frequentemente, a uma viagem de exploração geográfica. Alguns piratas distinguiram-se como excelentes navegadores.

Nos confrontos que marcaram a disputa pela hegemonia do novo mundo, piratas e corsários ao serviço de grupos sociais poderosos, e até de alguns “estados” (Portugal, França, Espanha, Inglaterra e Países Baixos), protagonizaram várias acções de autêntica guerra marítima. Os mais experientes e afortunados venceram batalhas, fundaram colónias e criaram condições para a implantação de impérios marítimos da época moderna. Se a violência marítima e terrestre sofreu um rápido incremento com a extensão dos limites do mundo conhecido, o próprio corso esteve intimamente associado aos projectos exploratórios da fase de arranque das viagens de descoberta e expansionistas.

A tomada de Ceuta em 1415 pelos Portugueses – episódio bélico relacionado com as primeiras viagens de exploração do litoral africano – não pode desligar-se, como refere Vitorino Magalhães Godinho, das expectativas de lucro criadas pelo florescente comércio marítimo muçulmano. Com efeito, os tráficos que uniam Marrocos e o reino de Granada aos mercadores do Mediterrâneo despertaram a cobiça dos mareantes do Sul de Portugal, tal como, mais tarde, com o Oriente, do Próximo ao Extremo, em busca de glória, nome e comércio que os sustentasse1.

“A que novos desastres determinas

De levar estes Reinos e esta gente?

Que perigos, que mortes lhe destinas,

Debaixo dalgum nome preminente?

Que promessas de reinos e de minas

De ouro, que lhes farás tão fàcilmente?

Que famas lhe prometerás? Que histórias?

Que triunfos? Que palmas Que vitórias?”

 

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, estr. 97

Deste modo, não faltaram os meios financeiros para alimentar os armados corsários e deles extrair dividendos. Armadores, mercadores, cavaleiros e escudeiros de Lisboa e do Algarve, e à frente de todos o Infante D. Henrique, ao qual cabia, desde 1443, o direito do quinto régio das presas efectuadas. Vejamos: nas viagens organizadas com sua licença, mas a expensas dos armadores, ao Infante cabiam 1/5 das presas, como direito seu e mais 1/5, também do total apresado, que, por concessão especial, o rei D. João I e seus sucessores, por outorga e depois por confirmação do importante privilégio, lhe outorgaram e asseguraram.

O porto ceptense tornou-se a base da pirataria naval destinada a combater a sua correspondente sarracena. Revelou-se, pois, contrariamente aos que duvidam do seu interesse, um verdadeiro entreposto comercial que teve de ser, por isso, várias vezes defendido (1418, 1419, 1424, 1437, 1458…). Na obra consagrada por Gomes Eanes de Zurara ao Infante D. Henrique e pelo mesmo a D. Pedro de Meneses, 1.º Capitão da Praça, comprova-se, facilmente, a nossa afirmação e são constantes as exacções cometidas pelos navegadores do Príncipe, nas suas investidas piráticas, quer no Litoral do reino de Granada quer ao longo do Norte de África e rápido pelos mares que banhavam a Mauritânia de Norte a Sudoeste. Refira-se que, em Portugal, como pode observar-se, o corso não fora prática sem tradições. Na verdade, para além dos sucessos anteriormente mencionados, é possível rastrear na documentação do século XIV elementos que permitem fundamentar a ideia de um antigo reconhecimento régio das actividades corsárias2.

 

Mapa-mundo de Germanus Martellus

© British Library

Mapa-mundo de Henricus Martellus Germanus de 1489, ilustrando as viagens de Diogo Cão e Bartolomeu Dias e incorporando o novo conhecimento sobre a geografia de África, dominada nos séculos XV e XVI pelos portugueses. 

D. Dinis, no contrato assinado, em 1317, com o genovês Manuel Pessanha, mencionava os homens que designa como “os meus corsários” em pé de igualdade com os marinheiros da frota real. Inclusive, uma das cláusulas do referido acordo autoriza Pessagno a dedicar-se às actividades de corso. Ao almirante e aos sucessores deste no cargo, o rei garantia o quinto do valor das prezas a realizar. Esta partilha não incluía o valor do casco dos navios das armas e do aparelho, quantitativo inteiramente reservado ao monarca.

Sobre esta matéria da divisão das presas, que tantos conflitos ocasionavam entre os intervenientes diversos - capitão de barco, tripulantes e erário régio – é muito esclarecedor um instrumento legal datado de 1388. No que dizia respeito às tomadias de barcos de grande porte, tudo o que fosse encontrado sobre a tilha, isto é, sobre a cobertura, era pertença dos apresadores, com excepção das mercadorias de tipo sumptuário que revertiam para a fazenda régia. Ainda, toda a carga transportada sob a coberta, assim como o corpo do navio, aparelhos de navegação e prisioneiros eram igualmente pertença do rei. Todavia, quando se tratava de um navio de escassa tonelagem, era ao patrão da galé apresadora que cabia a posse do mesmo. As mercadorias e gentes sob captura revertiam para o fisco.

No século XV, novos diplomas sancionaram esta actividade e, em 1433, o rei D. Duarte concedeu uma carta de mercê a D. Pedro, onde se regista a intenção deste infante armar alguns navios para andarem de corso no Estreito.

Mais tarde, documentação outorgada por D. Afonso V confirmava o prosseguimento do corso e as vantagens que a prática continuava a proporcionar. Por doação de 1450, dois anos após o fim da Regência, dos bens sumptuários capturados pelos corsários régios, o monarca concedia a D. Isabel, a rainha, sua mulher, uma parte do valor apurado.

Estudos recentes sobre o corso no Mediterrâneo revelaram que, entre 1433 e 1462, o corso português manifestou-se bastante activo no ataque à navegação aragonesa. Já no ano de 1449, o soberano fez a concessão ao Infante D. Henrique da parte dos direitos do comércio a realizar em certas zonas do litoral africano, dando-lhe também a devida protecção. A segurança atribuída tinha em vista a eventualidade de assaltos a navios henriquinos por parte de piratas portugueses.

Registe-se, contudo, que alguns dos navegadores ao serviço do Infante, em vez de prosseguirem a tarefa que lhes fora fixada, consagraram o essencial das suas energias a atacar os agregados populacionais avistados nas regiões costeiras. Por este motivo, o Infante, a partir de certa altura, determinou que os seus homens cumprissem, em primeiro lugar, os deveres da descoberta; só depois, conforme prescreviam os regimentos, cada qual ficaria livre para “fazer de o que lhe aprover”.

“Não nego que há, contudo, descendentes

De generoso tronco e casa rica,

Que, com costumes altos e excelentes,

Sustentam a nobreza que lhe fica;

E, se a luz dos antigos seus parentes

Neles mais o valor não clarifica,

Não falta, ao menos, nem se faz escura;

Mas destes acha poucos a pintura”.

 

Luís de Camões. Os Lusíadas, Cap. VIII, estr. 42

 

1. Vitorino Magalhães Godinho, A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, Lisboa, Sá da Costa, 1962, pp. 146-148.

2. Id., ibid. Em ambas as obras se referem este caso e outros semelhantes.

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