D. João Peculiar, estátua de Raul Xavier |
D. João Peculiar (1100? - Braga, 3 de Dezembro de 1175)
1.
Primeiros Passos A sua
presença na corte de D. Afonso Henriques [1109-1185] é demonstrativa
de que começara a exercer o papel de homem do seu conselho, de 1131 em
diante, por tudo quanto sabemos das funções que desempenhou. Mas as
responsabilidades episcopais e políticas não o faziam esquecer a sua
antiga vinculação aos eremitas, a todos os religiosos que, devotos a
Deus, à Igreja e ao Santo Padre, enxameavam pelo território
portucalense, muitos deles em péssimas condições de subsistência, em
lugares do Interior e demasiado isolados, solicitando ao Infante uma
maior atenção sobre os mesmos. Na
verdade, um dos aspectos da nova organização religiosa manifesta-se na
reordenação dos espaços – a geografia humana e a monumental
religiosa: a construção dos seus templos, o cultivo das granjas, a
manufactura de objectos. Ainda a Escola, a Livraria... os alunos que
eram ensinados por padres para se tornarem padres. A divisão
eclesiástica e a sua respectiva e inerente regulamentação (a existência
de Estatutos próprios desde 1139) tiveram sempre uma enorme influência,
sobretudo durante a “Reconquista”, em que constituíam os únicos
quadros que davam vida à antiga ordem romano-gótica. Consequentemente,
para a independência portuguesa foi importantíssimo que as sés do
novo “Reino” obedecessem a um metropolita ou primaz ligado ao
soberano português. Daí a luta que se travou nos tempos de D. Henrique
(m. Astorga, 1112) e de seu filho para que as dioceses do Porto e
Coimbra, como as de Lamego e Viseu, fossem sufragâneas de Braga, sendo
que a primazia desta era um elemento fundamental na formação do novo
“Estado”.
Os
seus professos, fosse qual fosse a regra a que aderissem, habitaram
primeiro o mosteiro de S. João Baptista das Aveleiras (freguesia de
Queiriz – séc. XII -, actual concelho de Fornos de Algodres), onde se
encontravam quando D. Afonso Henriques lhes fez uma doação, dois anos
após a batalha de S. Mamede. Voltemos
a recordar São Cristóvão de Lafões, situado na sua diocese, pois
foi, decerto, por sugestão dos pais, que ele próprio – D. João
Peculiar – solicitou a D. Afonso Henriques a concessão de uma carta
de couto em seu favor, em Outubro de 1137. Pouco tempo depois,
intervinha já na vida interna da mesma comunidade, escolhendo o
sucessor do seu antigo abade, D. João Cirita [? -1164], e fazendo-lhe a
doação de um outro eremitério. O Convento
foi erigido num morro sobre a ribeira da Landeira, perto da Serra
da Gralheira, no actual concelho de São Pedro do Sul, cujo povoamento
é anterior ao século XII. Alguns
historiadores são da opinião de que o verdadeiro fundador do mosteiro
foi João Peculiar e não João Cirita, mas que, em virtude de João
Peculiar ter sido chamado a desempenhar outras funções importantes,
ficou o mosteiro, logo no início, sob as ordens de Cirita, e daí o seu
nome estar associado à sua fundação. Em
1163, o convento adere à ordem dos monges cistercienses, como aconteceu
a quase todos os mosteiros beneditinos. Ao nível
da vida religiosa, a grande novidade em Portugal no século XII foi o
acolhimento dos Cistercienses por 1130. S. Cristóvão de Lafões teve,
quanto a nós, um papel pioneiro – um projecto marcado por aquele que
viria a ser arcebispo de Braga, João Peculiar – o de ter desenvolvido
a irradiação cisterciense em Portugal, pese embora o que se tem
afirmado comummente em relação a S. João de Tarouca. Desta feita, o
modelo ético, comportamental, de estudos religiosos (naturalmente) e
legislativo seguido pelos Cistercienses era proveniente de um modelo
internacional implementado também em Portugal, embora o Capítulo Geral
de uma canónica regrante assumisse, obviamente e por imperativo geográfico
e de acomodação, um rumo próprio. Mas a base seria sempre a mesma.
Não será
de pôr de parte ainda a figura de Peculiar, um dos seus fundadores,
como é sabido, na relevante influência que pode ter tido, no
importante papel da canónica crúzia. No
regresso de França, por 1126, fundou ou reorganizou o referido Mosteiro
em Lafões que, mais tarde, confiou ao referido abade. Pelo seu
desiderato e doutrina, “statuit
monasterium apud Sanctum Christoforum”, de princípios regulares
um tanto confusos, mas que evoluirão para as normas de São Bento,
vindo, depois, a filiar-se na Ordem de Cister. Tensões houve-as sempre,
embora em Portugal, de cada vez maior amplitude geográfica não
impediam a Santa Sé de conservar as garantias e imunidades que fossem
outorgadas a mosteiros isentos mas que eram – eles mesmos –
fidelizados ao reforço do poder dos Papas, junto da autoridade
diocesana Pelo que ficou dito, acrescente-se que, à medida que íamos avançando pelo século XII, mais esta circunstância se impunha, a fim de estabelecer o Poder da Santa Sé acima da soberania imposta por Frederico I, Barba Ruiva, imperador do Sacro-Império romano-germânico. Mas a espiritualidade de Roma aumentava a secância e alargava os seus poderes comparativamente aos do Imperador de uma pretensa União Europeia na época que não podia fazer outra coisa que não fosse aceitar o aumento da manus papal. Esta circunstância de os soberanos adoptarem, de preferência, a supremacia espiritual sobre a temporal prova-se pelo princípio que tão regularmente fora invocado junto dos delegados imperiais: “No meu Reino quem é o imperador é o Rei”, sabendo nós, no entanto, que, igualmente a fim de fixar o seu poder, o rei de Portugal impunha limitações à Igreja e, por outro lado, precisando do seu auxílio e saber, ia distraindo do fisco avultados e numerosos meios para ter a clerezia nas mãos.
O infante
encontrou-se com ele, pela primeira vez, muito provavelmente, em 1131,
quando preparava, com Teotónio, a fundação do Mosteiro de Santa Cruz
em Coimbra, cidade, em cuja catedral foi mestre-escola, sendo aí
arcediago D. Telo [1076-1136], o qual acompanhou D. João Peculiar a
Roma, a fim de impetrar de Inocêncio II que o Instituto dos Cónegos
Regulares de Santo Agostinho fosse restituído à sua primeira observância.
Tornaram-no tributário da Santa Sé, obtendo de Inocêncio II
[1130-1143] a bula Desiderium quod,
a 24 de Maio de As bulas,
como se sabe, traduzem a própria evolução interna da Santa Sé e da
vontade do Papa e dos seus diáconos mais directos, as suas noções de
primazia e de imperium pontifícios, no agitado decurso de todo o século XII. A fundação
do referido mosteiro – como o refere Avelino de Jesus da Costa –
ficou a dever-se à conjugação dos esforços de três ilustres
personagens: D. Telo, arcediago da Sé de Coimbra, D. João Peculiar,
mestre-escola da Sé de Coimbra e a D. Afonso Henriques. Os vizinhos e moradores de Braga e das imediações, logo após a morte do fundador, usurparam bens do hospital. D. João Peculiar, assim que tomou posse da Arquidiocese de Braga, com o seu cabido, confirmou a doação do seu predecessor e, a pedido do príncipe D. Afonso Henriques, ordenou que fosse restituído ao hospital tudo quanto lhe havia sido usurpado. Trabalhou, incansavelmente, pelo engrandecimento e independência da diocese de poderes estranhos, e reorganizou o Cabido.
Nos
representantes mais importantes da administração das novas catedrais,
estabeleceram-se funções várias. De ordinário, eram os cónegos quem
as desempenhavam. Presidido pelo deão, em rigor o mais antigo, o decanus,
tinha na sua organização a administração interna e a justiça
entregues ao archidiaconus. A
fim de exercer uma superintendência nas paróquias rurais, havia os arciprestes, de archipresbiter.
Os cónegos tinham a obrigação de orar e cantar em coro as horas do ofício
divino, cuja direcção se achava a cargo do chantre (o cantor). A Catedral tinha a Escola Capitular para
recrutamento e formação do clero, sob a direcção do cónego mestre-escola (magister
scholarum). E as rendas da mesa capitular, ou seja, os rendimentos
próprios do cabido, assim como a conservação do seu património,
estavam confiadas ao tesoureiro. É de ter em boa nota o que, então, D. João Peculiar ouvira dizer dos antipapas João XVI [997-998] e Gregório VI [1012/1058 ou 1059] que não conhecera, naturalmente, mas contemporâneos dos Papas romanos Gregório V [996-999] e Bento VII [974-983]. Estas lutas espirituais permitiram-lhe raros conhecimentos e sabedoria, raciocinar, optar e o poder de saber organizar, já para não falar daqueles com quem travara conhecimento directo, em Roma: de Calixto II a Alexandre III [1119-1175]. Podemos
admitir, pois, pelo que ficou dito, que esta última faceta tivesse tido
para D. Afonso Henriques um valor muito significativo. Na verdade, não
obstante apenas ter conhecido o Cônsul seu pai de ouvir falar dele,
dado que falecera tinha o Príncipe três anos, não podia esquecer a
sua condição de filho de um estrangeiro, descendente de Roberto I, rei
de França [865-923], trazendo consigo para a Hispânia ideias
inovadoras, tendo-se empenhado na difusão de instituições religiosas
e seculares do seu País de origem, e posto toda a sua força anímica
ao serviço de uma grande ambição pessoal reformadora e de poder. Digamos
que eram já dois. Um tinha falecido, mas permanecia no pensamento do
Aio e, apenas indirectamente,
Afonso
deve também ter acompanhado com atenção o relato da viagem que João
Peculiar fez a França e à Itália, em 1135, aquando do Concílio de
Pisa, de cujas resoluções, ele, de regresso, lhe terá contado, sem dúvida,
como decorrera a assembleia e quais as acções do papa Inocêncio II.
Falou-lhe acerca de uma das conquistas da reforma gregoriana, que tinha
sido a capacidade de o clero escolher as suas próprias autoridades, sem
interferência dos reis e senhores feudais. Mas esta independência teórica
traduzia-se, na prática, sobretudo desde 1123, pela eleição dos
bispos em assembleias constituídas pelo clero da diocese (sobretudo os
cónegos da catedral), embora na presença do rei e dos nobres. E
falou-lhe, por certo, ainda numa hipótese que avançara já em Roma no
sentido de ser reconhecida a independência a Portugal. Não era difícil
explicar as circunstâncias: Afonso VII [1105-1157] acabara por herdar o
trono da Galiza, em 1111, de Leão em 1126, de Toledo e Castela, em 1127
e começara a intitular-se, no ano do Concílio de Pisa, de Imperator
Hispaniae, título que devia irritar seu primo, senhor do Condado
Portucalense e que também nós não entendemos porquê. Afinal, onde
estava o Império? Na união de Leão com Castela, num espaço
territorial contínuo e de dimensões que em nada ajudavam a aceitá-lo?
Nem os reis godos de tal se lembraram e os motivos que os autores aduzem
eram, afinal, os mesmos. No
entanto, o título de Imperador era, apesar de tudo, uma via que poderia
mais facilmente fazer chegar a D. Afonso Henriques o de rei, título
esse que enobrecia o nosso Príncipe e seu primo, com reis seus
vassalos. E um rei sem Reino, era situação que o nosso Infante não
aceitaria com facilidade. Também para D. João Peculiar que acompanhava
de perto Afonso de Portugale,
veria no título do Castelhano, uma maneira de fazer entender a Santa Sé
com uma menor necessidade de argumentos para a obtenção do título de
rei e da categoria de Reino a Afonso e a Portugal. Não
sendo diplomata de medos, quis, no entanto, atacar a questão, junto do
Papa, para evitar acentuadas subalternidades do Príncipe de Portugal em
relação a seu primo Afonso VII. Afinal eram netos e bisnetos de reis
comuns e este era o mais válido dos argumentos, além do propósito de
ambos residir na ‘reconquista’ territorial e na consequente luta ao
infiel. * Tendo
sido designado cónego e mestre-escola do cabido de Coimbra, em 1131,
juntamente com o arcediago D. Telo [1076-1136], de quem era conselheiro,
fundou o Mosteiro de Santa Cruz da mesma cidade, o qual adoptou a regra
dos Cónegos de Santo Agostinho. Os esforços
seriam e foram sempre recíprocos: Afonso fazia o que João Peculiar
aconselhava, e este contribuía vivamente para a satisfação do orgulho
e mando do seu “rei”. Ora,
apoiados por D. Afonso Henriques, D. Telo e D. João Peculiar tinham-se
deslocado a Pisa, em 1135 - como referimos acima -, onde se encontrava
Inocêncio II, levando, na “pasta” para despacho, além dos
desideratos acima enunciados, também o pedido de protecção por parte
da Santa Sé do citado mosteiro conimbricense, como tributário dela, e
ainda a confirmação dos seus bens e a isenção da autoridade
episcopal, o que lhes foi concedido por bula de 25 de Maio daquele ano. Outro
efectivo e importante auxiliar de D. Afonso Henriques, como já demos a
conhecer, fora D. Teotónio. Teólogo e filósofo, prior da catedral de
Viseu, era um homem honesto. Para ele, a verdade, a justiça, a
dignidade… seriam a sua grande, porque indiscutível, prioridade. Humílimo,
por duas vezes, rejeitou o título de bispo, mantendo-se apenas como
Prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, embora nomeado bispo desta
cidade pelo Papa Anastácio IV em 1153, cargo que recusou. A
importante função de conselheiro do rei, no “aparelho de Estado”,
para a resolução de problemas concretos e orientação da política régia,
pelo menos em questões de maior importância, deve ter pertencido,
sobretudo, a D. João Peculiar, logo desde 1131, quando preparava, com
D. Teotónio, a fundação de Santa Cruz. O Infante e Príncipe herdeiro
da terra e da soberania de seu pai, apreciou, por certo, desde logo, a
firmeza das suas convicções, o entusiasmo com que se empenhava na criação
de uma instituição religiosa sem precedentes em Portugal, e a cultura
que havia adquirido durante a sua permanência no Reino dos Francos.
Podemos admitir que esta última faceta tenha atraído Afonso de uma
maneira especial. Mais uma vez, o nosso Infante deveria ter presente a
origem da Família do seu pai e a ligação de sua mãe a Afonso VI,
protector endividado dos Cluniacenses e a sua tia-avó, D. Constança,
que atendeu ao estabelecimento em Castela de monges Beneditinos
cistercienses. Deste modo, voltamos a sublinhar parte dos motivos que
levaram Afonso Henriques a admirar o futuro Bispo e a aceitar os critérios
com que este memorável religioso julgava o que então se passava no
Reino e na Igreja, e a sua intervenção activa, nas mais dinâmicas
correntes religiosas da época. Religiosas, civis e, inclusivamente,
militares, como veremos adiante. É de ter
em atenção que o Paço Real se achava em Coimbra e que já, desde
muito cedo, a cidade, naturalmente sede de bispado, fora sempre, com
Viseu, aquela a quem seus pais deram uma primordial atenção. D. Teresa
e o Conde, seu marido, doaram à Sé de Coimbra o Mosteiro de Lorvão,
em 1109, pouco antes de Afonso ter nascido, mais uma série de terras
que para necessitarem de ser povoadas e trabalhadas foram engrossar o
património da Sé e de particulares, como tivemos já ocasião de
referir num outro nosso trabalho. Curiosamente, Lafões veria, desta
forma, mais fortemente ligada a sua relação com Santa Cruz de Coimbra
– com a Sé e com Coimbra, de um modo geral, a sede do Reino. Dos 275
documentos que se traduzem em cartas de doação das terras visienses àquela
cidade e institutos religiosos, 42% foram entregues ao Mosteiro, ad
populandum e ad plantadum,
e correspondiam a terras em torno de S. Pedro do Sul, Lafões, Vouzela,
Penacova, Santa Comba Dão, Lorvão e Tondela, entre outras: o velho
cordão umbilical que nunca fora cortado entre S. Cristóvão de Lafões
e Santa Cruz de Coimbra; do Mosteiro de Lorvão e Santa Cruz de Coimbra;
da Catedral Visiense e Santa Cruz. E, por ora, D. João Peculiar,
incumbia-se do Mosteiro crúzio conimbricense. Razões mais que
suficientes para bem disporem um rei, e fazê-lo ter a maior consideração
por quantos se encarregavam, então, daquela importante fundação. Por influência
de D. Afonso Henriques, foi D. João Peculiar nomeado bispo do Porto em
1136, sendo transferido para Braga, como arcebispo, no Outono de 1138.
D. João desempenhou por dois anos as funções de bispo. Enquanto
bispo do Porto teve um papel preponderante nas Pazes de Tui, em 4 de
Julho de 1137, estabelecidas entre os primos Afonso VII de Leão e
Castela e D. Afonso Henriques, através do qual se encerraram, durante
algum tempo, os conflitos que recuavam à batalha de Cerneja.
O rebelde Infante português terá invadido a Galiza e
conquistado a praça de Tui, junto ao rio Minho, aproveitando as pretensões
de Afonso VII em relação ao reino de Navarra, com o qual estava em
hostilidade aberta. Afonso Henriques terá tomado Tui com o apoio do rei
de Navarra, numa iniciativa militar "à traição", em que
conquistou alguns castelos na região tudense. Afonso VII, todavia,
rapidamente recuperou Tui. D. Afonso Henriques, que nunca reconheceu o título
de imperador e respectivos direitos a seu primo – o que não tinha, na
realidade, razão de ser -, terá também, com esta iniciativa, marcado
posição relativamente a essa sua recusa de vassalagem, que se
estenderia ao seu projecto político de formação de um reino
independente a partir do condado Portucalense. O bispo D. João e o
ainda arcebispo – ao tempo D. Paio Mendes -, acompanharam D. Afonso de
Portugal, e a entrevista deu-se com seu primo, coadjuvado, para o efeito
pelos bispos de Segóvia, Tui e Ourense. Foram os cinco religiosos que
trabalharam em prol da respectiva concórdia, que tomou lugar em 1137,
mas de fraca valoração para Portugal. Foi
depois – como dissemos - eleito arcebispo de Braga, cargo que o
obrigou a desenvolver intensos contactos com os poderes políticos
portugueses e leoneses e com a cúria romana. Caso de especial
significado foi o deste prelado, o qual ainda que sem ter sido cónego
professo, apenas familiar e honorário, veio a atingir aquelas funções
a par de uma fortíssima ascendência política que sempre exerceu junto
do nosso futuro Rei. Na defesa
dos direitos da metrópole bracarense teve de sustentar longa e corajosa
luta com os arcebispos de Compostela e Toledo, pelo facto de o primeiro
lhe querer usurpar as dioceses sufragâneas e o de Toledo pretender
sujeitá-lo à sua obediência. Promoveu ele mesmo, por autoridade
pessoal suportada por Afonso Henriques, a passagem de um elevado número
de acistérios das suas Dioceses à Ordem dos Cónegos Regrantes de
Santo Agostinho. O facto
de Peculiar residir em Braga não o impediu de frequentar a corte régia,
e de aí continuar a insistir com o Príncipe na concretização dos
seus objectivos, trazendo, assim, benesses
às novas ordens religiosas, e colaborando com o rei na resolução dos
problemas políticos a que teve de dar solução. Pela segunda vez, foi
a Roma, para receber o pálio que Inocêncio II lhe entregou, e
assistiu, por ordem do pontífice, ao segundo Concílio de Latrão que
tomou lugar em 1139, tendo sido o primeiro prelado português a estar
presente num concílio geral. D. João
Peculiar, por essa ocasião, contraiu uma estreita amizade com o Abade
de Claraval, D. Bernardo, firmando-se, desde então, uma intensa
correspondência epistolar entre os dois prelados. Cuidou da assistência
dos que dela necessitavam nos eremitérios difundidos pelo “Reino” e
no que se refere à cultura, abriu as portas dos mosteiros a quantos
pretendiam estudar para padres. Verificamos
isto mesmo por exemplo, ao notar por si a confirmação de uma série de
diplomas régios do ano de 1140, favorecendo outra comunidade eremítica,
a de Vilarinho de Parada, concelho de Santo Tirso actual, de um mosteiro
dúplice que passava a feminino, o de Rio Tinto, dos cistercienses de S.
João de Tarouca, no concelho de Tarouca de hoje, do alargamento dos domínios
da Sé Catedral de Coimbra e do mais importante mosteiro beneditino da
arquidiocese de Braga, o de Tibães, em Mire, no actual concelho de
Braga, sistemas copiados, por outros posteriores, como o de Alcobaça
(1178). Mais tarde, no Verão de 1143, acompanharia o cardeal Guido de Vico nas suas visitas a Coimbra e ao Porto, apoiando os acordos de D. Afonso Henriques com Afonso VII em Zamora (5 de Outubro de 1143) e a vassalagem ao papa nas mãos do mesmo cardeal. Nos anos seguintes, vemo-lo ainda – o que, aliás, fez até morrer - a desempenhar um papel central em todas as mais importantes decisões religiosas, políticas e iniciativas do rei. Foi o que aconteceu:
- Quando
ele, em 1142, propôs a D. Afonso Henriques nomear como chanceler-mor
Mestre Alberto, que o deve ter ajudado a gizar o cargo de rei, como
fonte de autoridade e de legitimidade, cumpridor da justiça: rex
eris si recte faceris, para que qualis
rex, talis grex, pois quae
recte fiunt, nunquam benefacta peribunto. Estas e outras máximas já
antigas e pelo Príncipe esquecidas teriam de voltar a ser lembradas. Só
um Escrivão da Puridade se atreveria a chamar a atenção do seu Rei e
foi o que ambos fizeram João e Alberto, tal a ascendência que tinham
sobre ele; - Quando
dirigiu ao papa Lúcio II a carta Claves
regni coelorum, em Dezembro de 1143, como resultado da assembleia de
Zamora; - Quando
empreendeu uma nova viagem a Roma para persuadir o Sumo Pontífice a
reconhecer o título de rei já usado por Afonso Henriques, na Primavera
de 1144; - Quando,
em nome do rei, pediu aos condes de Maurienne, Amadeu III e Matilde
d’Albon, a mão de sua filha Mafalda, com quem o soberano veio a casar
em 1146; - Quando,
anos depois, interveio no pedido de casamento de D. Mafalda, filha de D.
Afonso Henriques, com o conde Raimundo de Barcelona, acompanhado que foi
a Tui com a rainha sua mulher e suas filhas e recebendo-o, na presença
de D. João Peculiar, arcebispo de Braga, D. Mendo, bispo de Lamego, D.
Isidro, bispo de Tui, D. Pedro, conde das Astúrias, o conde D. Ramiro e
D. Vasco, mais D. Gonçalo de Sousa, D. Pedro Pais, seu alferes-mor e
outros muitos ricos-homens, cavaleiros e comitiva; -
Quando
contactou o monge cisterciense Bernardo de Fontaine, abade de Claraval,
para ele encarregar os cruzados flamengos da colaboração no cerco de
Lisboa; - Quando
participou, pessoalmente, com o rei na conquista de Lisboa; - Quando,
de acordo com o rei, nomeou e sagrou os bispos de Viseu – D. Odório
[1147-1166] -, de Lamego – D. Mendo [1147-1173] - e de Lisboa –
Gilberto de Hastings [1147-1166], como pode ver-se em 1147, tendo
seguido D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa, e aí sagrado o citado
bispo lisbonense, D. Gilberto – foi ele quem dividiu as rendas da
catedral, que, então, eram comuns ao arcebispado e ao Cabido. Incumbiu
desta operação os seus dois arcediagos - Mendo Ramires e Pedro Osório
- que fizeram a divisão em três partes, servindo de modelo a Braga:
duas para a mesa do arquiepiscopado e uma para a mesa capitular; - Quando
tomou parte nas cúrias de 1150 e de 1155, em Leão e Toledo, para
discutir o envolvimento português numa projectada cruzada peninsular; - Quando
regressou a Roma em 1153, 1157 e - Quando
participou nos acordos com o rei Fernando II de Leão [1137-1188] para o
casamento com a infanta D. Urraca [1151-1188], em 1165; - Quando
ele mesmo, antecipando-se a D. Afonso Henriques, “simul
et bracharense ecclesie clerus una cum regis portugalensis aldefonsi
consensus”, fez doações em nome do “Rei”, como, por exemplo,
em Agosto de 1145, confirmou uma doação do seu antecessor, em que fora
feita mercê à ordem do Templo, de umas casas e acrescentou mais metade
dos dízimos dos locais de compra e venda na mesma cidade de Braga,
apondo o castigo da excomunhão a quantos fossem contra as suas
determinações em causa… Na
Primavera de 1139, foi a Roma para receber o pálio e a confirmação
que Inocêncio II lhe concedeu pela bula Bracharensem
metropolim insignem, de 26 de Abril. Nesse ano, assistiu ainda ao
Concílio geral de Latrão, iniciado a 3 de Abril. Aqui contraiu
estreita amizade com o abade de Claraval, S. Bernardo, por quem ficou
sempre muito afeiçoado, cremos que pela afinidade de ideias e intentos
e ainda pelo bom acolhimento que os Cistercienses haviam encontrado Escreveram-se
por diante muitas cartas, algumas delas endereçadas pelo arcebispo ao
santo abade. Terminado
aquele, ficou ainda em Roma para conseguir a confirmação papal dos
principais empreendimentos eclesiais em que antes participara: a 26 de
Abril, era-lhe passada uma bula de ratificação dos seus direitos
metropolíticos (confirmando a bula anterior de Calisto II de 1121,
obtida por Paio Mendes) e do senhorio temporal sobre a cidade de Braga;
mencionava, expressamente, não só as dioceses sufragâneas da antiga
província da Galécia (exceptuando Compostela), mas ainda as de
Coimbra, Idanha, Lamego e Viseu, que haviam outrora pertencido à Lusitânia,
apesar de os direitos de Mérida terem sido transferidos para
Compostela. No dia seguinte, a chancelaria pontifícia entregava-lhe
duas bulas de confirmação dos privilégios de Santa Cruz de Coimbra, e
uma terceira pela qual o Papa tomava o mosteiro de Grijó sob sua protecção,
o que vinha confirmar a isenção da jurisdição episcopal que o próprio
D. João havia concedido ao mesmo mosteiro, enquanto bispo do Porto. Se a
vassalagem de D. Afonso Henriques à Santa Sé, consumada em Zamora, em
1143, não originou qualquer reparo da parte de Afonso VII, o mesmo não
aconteceu com a sagração dos bispos de Lisboa, Viseu e Lamego, por D.
João Peculiar, quatro anos depois. Reclamou junto da Santa Sé, mas
depressa se aquietou, ou pelas manifestações de apreço que aí alcançou
ou pelos problemas que Aragão e Navarra lhe levantavam. O apoio
do clero secular pode ser sintetizado numa só personagem: D. João
peculiar sempre se revelou sdincero defensor acérrimo dos direitos da
sua Sé, face às de Castela, e verdadeiro agente de Afonso Henriques na
cúria romana, como o foi em cortes de seus homólogos europeus,
nomeadamente, Castela, Navarra, Aragão, Catalunha, França, Inglaterra,
Bolonha (Sabóia, Itália) e Santa Sé. Eugénio
III, tendo em boa consideração a política levada a termo pelos seus
predecessores, ordenou que os metropolitas bracarenses obedecessem aos
toledanos e mandou D. João Peculiar (a Arquidiocese de Braga) continuar
obediente a Toledo. O Arcebispo português é oferecido por vítima
expiatória da homenagem feita pelo príncipe português e aceite pela
Corte de Roma, como confere Herculano. O Arcebispo mais não pôde fazer
do que obedecer, embora com muita relutância, como é fácil
compreender-se. Mas era
um verdadeiro diplomata. Assim se revelou sempre para salvar o seu rei,
o Reino e o seu nome. A ele
ficaram a dever-se as contínuas e persistentes conversações e as
regulares insistências junto do Sumo Pontífice, no sentido de alcançar
o reconhecimento da independência de Portugal. E isto sempre numa
perfeita colagem dos seus objectivos, como arcebispo de Braga, com os do
rei de Portugal. Pelo que
se tem dito e escrito, tudo leva a crer terem resultado cordiais as relações
entre Afonso Henriques e o clero do seu jovem e inacabado Reino. O governo
do Príncipe, contemporâneo de novos movimentos espirituais da
Cristandade, e assinalável pelo alargamento que as suas terras
conheceram, foi propício à implantação ou ao desenvolvimento dos
institutos religiosos regulares. Se os
beneditinos já fixados, gozaram da protecção e benemerência régia,
por si mesmos ou por via dos seus patronos, a quem o monarca se mostrou
reconhecido por favores prestados, foram sobretudo as novas correntes,
recém-chegadas, a usufruir do favor real. De facto, Cónegos Regrantes
de Santo Agostinho e Cistercienses são aqueles que emergem na documentação
afonsina.
Aos
primeiros, ligou-se Santa Cruz de Coimbra, logo após a sua fundação,
pelo futuro Arcebispo. A construção iniciou-se a 28 de Julho de 1131,
no local onde existiam os "banhos régios", então ainda fora
dos muros defensivos da cidade, e a duas escassas centenas de metros da
fronteira portuguesa com as terras islâmicas: o Rio Mondego. Se a fundação
foi régia, não deixou de ser importante a acção junto do jovem Príncipe,
do Arcediago D. Telo e do Mestre-Escola D. João Peculiar. Logo no ano
seguinte, São Teotónio foi eleito prior da comunidade religiosa, que
contava já, em 1132, com setenta e dois membros. Afonso Henriques
mostrou-se-lhe particularmente afecto, quer pela relação com S. Teotónio
quer pela contemporaneidade da fundação com a sua estada na cidade do
Mondego, ou ainda porque Santa Cruz de Coimbra se mostrou receptiva a
mais uma forma de conquista, a
missionação em terra de fronteira, de que foi exemplo, nos anos
imediatos, o presbítero Martinho, Os
segundos, provavelmente entrados em data próxima dos anteriores,
vieram, igualmente, a ser agraciados com os favores de Afonso Henriques:
Lafões, Tarouca, Salzedas, Maceira-Dão, Seiça, Tomarães e, acima de
todos, Alcobaça. Nascidos ou passados para a sombra de Cister, todos
conheceram doações de bens e de direitos pelo Príncipe português e
seus sucessores. Foram extraordinários agentes de repovoamento,
destacando-se, sobremaneira, Alcobaça. Finalmente,
um outro grupo sobressai na sua documentação: é o dos eremitas, a
demonstrar a sua força, no momento (1133-1148), em Portugal, e a atenção
que o rei lhes dispensou. Os fluxos
migratórios parecem ter sido realizados em grupos algo compactos, onde
chegava mesmo a observar-se a tendência para uma “agremiação”
socioprofissional, levando à formação de novos e múltiplos povoados
aldeãos com uma certa especialização artesanal. Isto verificou-se,
por exemplo, Lafões
era comarca, desde cedo, com um alargado perímetro de jurisdição.
Recorde-se, por exemplo que, no couto de Alcofre (actual c. de Vouzela),
de Lourenço Vicente, havia um chegador da escolha deste nobre que metia
nele alguns jurados para o ajudarem a prender os malfeitores e outros
delinquentes, que, posteriormente, entregavam à justiça régia de Lafões,
e a seu mandado por ali permaneciam nos diferentes úteis afazeres com
vista ao aproveitamento de leiras, quintãs e granjas e na defesa da
região, a que o Rei não podia ser indiferente. Sem dúvida,
Peculiar revelou-se sempre um dos maiores prelados bracarenses de todos
os tempos, trabalhando incansavelmente durante trinta e sete anos, pelo
engrandecimento da sua diocese, metrópole e todo o Portugal já
conquistado: a)
Enriqueceu
o seu património com a aquisição dos coutos e igrejas de Provezende,
Gavieiras, Santa Cruz do Douro, Cossourado, S. João do Souto e muitos
outros bens. b)
Reorganizou
o cabido, ao qual deu, em 1145, um terço de todos os rendimentos, bens,
igrejas e arcediagos da diocese. c)
Mandou
ocupar amplos territórios das dioceses de Lamego e Viseu, ordenando que
os administrassem, à morte de D. Bernardo, bispo de Coimbra, que
faleceu em 26 de Janeiro de 1146. d)
A
perspicácia de Afonso Henriques e do Arcebispo de Braga é bem
demonstrada pelo facto de ambos terem sabido aproveitar esse momento
oportuno para mais um importante acto de gestão do território, numa
perfeita aliança entre o temporal e o espiritual que, em certos casos,
era efectivamente benéfica. e)
Pelo
estatuto de 1165, elevou a 40 o número dos cónegos, entre os quais
havia as dignidades de deão, chantre, mestre-escola e tesoureiro. f)
Neste
mesmo ano (1165), doou-lhe metade do couto e a igreja da Apúlia. g)
Em
1173, confirmou-lhe a divisão de 1145, mantendo a porção canónica a
qualquer cónego que, devidamente autorizado, quisesse ir frequentar os
estudos – quicumque canonicorum
[…] ad studium ire voluerit-, o que o tornou um dos primeiros
beneméritos da instrução. h)
Cuidou
da assistência, mandando fundar diversas albergarias. i)
Mais
importante ainda foi a sua acção em favor da metrópole bracarense e
da sua independência, lutando corajosamente contra as pretensões dos
arcebispos de Compostela e de Toledo. j)
Não
obstante a pressão do primeiro, além da reintegração dos bispados de
Coimbra e Porto, temporariamente isentos de Braga, conseguiu manter como
sufregâneas as dioceses de Lamego, Viseu, Lisboa e Évora, ou seja
todas as do território português, embora com certas intermitências,
sobretudo quanto às duas últimas. k)
Obteve
também para a sua metrópole a diocese de Zamora, que o arcebispo de
Toledo pretendia. Apelando para os direitos do primaz e legado,
concedidos por Urbano II, tentou o arcebispo de Toledo impor a sua
autoridade ao de Braga, mas este resistiu a todas as pressões e ameaças
feitas, a pedido de Afonso VII de Castela, pelos papas, desde Lúcio II
a Alexandre III, sujeitando-se apenas, momentaneamente, em 1150, mas
causando agitada rebeldia e frequentes incómodos aos sucessivos Pontífices
que pareciam teimosamente não recuar com a sua decisão, nem repensá-la
sequer. l)
As
tarefas foram gizadas logo de início, à semelhança dos grandes edifícios
francos: o servitium Dei, o ofício
divino no coro da igreja, a oração, a leitura, mesteres, manuais
oficinais. E aqueles que eram escolhidos para cargos do oficialato monástico,
trabalhavam nos celeiros, na hospedaria, na sacristia, no hospital, na
portaria, na escrivaninha, onde liam, traduziam e copiavam… na
enfermaria, na regulação dos trabalhos nas granjas e nos diversos
sectores administrativos, estabelecendo as ligações com Braga, Coimbra
e Roma, ainda a introdução e manutenção da schola
ou studium. Da aprendizagem escolar e educativa são evidências os
numerosos cónegos-escribas.
Não foi menos notável a sua acção política em favor dos interesses “nacionais”, podendo, segundo o modo de ver contemporâneo, chamar-se-lhe o ministro dos Negócios Estrangeiros de D. Afonso Henriques, uma vez que procurou garantir, no campo diplomático, as conquistas militares do monarca e uma interligação do Reino com o Estrangeiro. Foi ele, com efeito, que, num recontro no Vale do Vez, na Primavera de 1141, serviu de medianeiro para se conseguir a trégua entre os reis de Portugal e de Castela, preparando o ambiente para o acordo de Zamora. O recontro (torneio?) de Arcos de Valdevez terminou com um pacto de tréguas entre os dois primos, tendo tido forte influência D. João Peculiar, a quem o próprio imperador, segundo os Anais, recorreu para servir de mediador.
Em 1143,
foi a Roma, para, em nome do rei entregar a carta de enfeudamento de
Portugal à Santa Sé (Claues
regni coelorum) e prestar vassalagem ao Papa, sob condição de
Portugal gozar de protecção da Igreja e não reconhecer outro poder
eclesiástico ou civil, além da Santa Sé e seus legados. Em 1143,
o cardeal Guido de Vico que viera, por aquele ano à Península, como
legado de Inocêncio II, reuniu em Valladolid um concílio
provincial, em que se promulgaram as resoluções do segundo concílio
geral de Latrão e se adoptaram outras providências relativas
especialmente à igreja de Castela. É provável que aí se tratassem
também as pazes a concluir entre os primos, Afonso VII e D. Afonso
Henriques, o que pode justificar a presença de D. João Peculiar,
naquele concílio. Em 1147,
tomou parte na conquista de Lisboa,
onde fez um discurso a animar os cruzados ao ataque. D. João Peculiar,
S. Teotónio e o Chanceler Alberto ajudavam o rei a tomar as decisões
necessárias. Lisboa, pela sua grandeza, já naquele tempo, pela solidez
das suas muralhas, pelos recursos que podia tirar do seu vantajoso
assento sobre a vasta baia do Tejo, e o castelo de Sintra, por se achar
situada no cimo de um rochedo quase inacessível e posto como na
vanguarda de um serrania “áspera e intratável” – para o que nos
alerta Alexandre Herculano – contava, no resto do “distrito” com
alguns castros e torres, posicionados pelos cabeços dos montes que
amparavam aldeias e habitações rurais, derramadas pelos campos e vales
que se espraiavam entre o Tejo e o Mar Oceano. Mas todas aquelas
pequenas fortificações, bem rudimentares na sua maior parte, se
existiam, era coisa de pouco momento, nunca referida pelos autores árabes
e muçulmanos. A conquista de Santarém e Lisboa, no ano seguinte, 1147,
tornaria a sua posição ainda mais forte. Foi com a tomada de Santarém
que se deu início à reorganização do território visiense, do ponto
de vista eclesiástico, restaurada antes de 1 de Maio daquele ano. Não
exactamente depois da conquista de Lisboa, como se vem dizendo. Nesta
data, já D. Odório, sagrado em Tui, é bispo de Viseu, para o que em
nada terá concorrido a acção directa de D. João Peculiar, embora, de
Braga, por certo, tivesse ditado normas, doutas opiniões e influenciado
o arcebispado de Toledo. Desde a
tomada de Santarém, o pensamento de D. Afonso Henriques voltava-se para
a de Lisboa, urbe importante, cuja situação, hoje grandemente
acomodada para ser um dos principais empórios do comércio do mundo, se
os erros dos políticos e fraca visão deles, de antolhos colocados
desde que tomam posse, lho consentissem – a eles e a nós – não se
prefigurava, nesse tempo, menos própria para centro da navegação
costeira dos mares Oceano e Mediterrâneo e, sobretudo, para o trato
entre a Mauritânia e a Europa. D. João
Peculiar foi o braço direito e forte do rei na reorganização de
Santarém, Lisboa, Sintra e Palmela, logo após as suas conquistas
(entre 1147 e 1166). Nas orações
que João Peculiar e o bispo do Porto - que, com alguns dos capitães
estrangeiros foram enviados como intermediários -, proferiram em
Lisboa, em 1147, parlamentando com os responsáveis mouros, os seus
apelos iam no sentido da rendição moura. O arcebispo de Braga não se
baseou tanto na teoria da guerra justa, como o fez o bispo do Porto, mas
recorreu, de preferência, a um outro tópico de relevância
substancial: o direito a recuperar o que já era seu, a referência à
“reconquista” gótica que permitia a todos os reis peninsulares
relegar de novo o ímpeto das forças dos reis hispânicos a desígnios
superiores. Reconhecidos
como tais, logo que se abeiraram dos muros espessos e velhos, não
tardaram a surgir no adarve o qaid
da cidade e o bispo moçárabe, ainda os magistrados civis. Foi, então,
que o Arcebispo de Braga encetou a discussão, com um longo mas pouco
concludente discurso, propondo que entregassem o al-qacr
e outras fortificações aos sitiadores, acordando com o alcacereiro que
a propriedade, a honra e a vida dos habitantes seriam respeitadas e
mantidas. Este acordo havia sido pouco antes jurado entre Afonso
Henriques e os seus aliados, facto que põe em evidência a lealdade das
promessas de D. João Peculiar. O referido juramento veio ainda dar
origem a um documento, uma carta de fidelidade, amizade e segurança
entre o rei e os mouros forros de Lisboa, Alcácer, Palmela e Almada, em
1170, em vida ainda do Arcebispo. Neste
caso, tratava-se de uma manifestação de respeito acerca do prometido
pelo metropolita português, da parte do rei dos Portugueses, e não
podia esquecer-se de que, além das funções religiosas, os bispos do
Reino também eram proprietários temporais… Ao poder régio não
seria indiferente quem ocupava tão distintos lugares na hierarquia do
“Governo”, mas havia que, não esquecidamente, mas sempre em presença,
ter-se em conta o papel da moirama que por cá ia ficando. Viviam nas
suas aljamas fora das cidades, mas trabalhando, de Sol a Sol, nas terras
dos Cristãos e em ofícios que lhes eram requeridos. Ainda os impostos
a pagar em partes e as jeiras gratuitas que prestavam. Ver o conselho, a
diplomacia, a função dos embaixadores, a solução pensada e acertada
para casos que merecessem a sua atenção neste campo, dilatando,
inclusivamente, o direito de asilo, se comparado com o mesmo
estabelecido pelo estilo da Corte…Ainda a literacia e o ensino. E o
rei pode vir a interferir em aspectos da igreja, como a designação dos
bispos para as suas dioceses. João
Peculiar infringira, escudado em argumentos como a conquista de terras
aos infiéis, diversas normas canónicas, sem que tal parecesse tê-lo
limitado e constrangido. Pelo contrário, fá-lo-ia ao longo de todo o
seu arcebispado, mesmo nos períodos em que se diz ter estado suspenso
das suas funções pela Santa Sé, como em 1145 e 1148. Tal situação
duvidamos que tenha alguma vez ocorrido, primeiro pela inexistência de
notas de suspensão e depois, porque durante os mesmos, ele continuava a
consagrar bispos, restaurar sés episcopais e a presidir a concílios
com a participação de legados papais. Por tudo isto, a questão da
legitimação do Rei e do Reino, e do seu reconhecimento, andava muito
ligada aos progressos da questão do primado, especialmente a nível
diplomático. Assim, embora o propósito mais visível das visitas de João
Peculiar à cúria pontifícia pareça ter sido quase sempre o de
resolver as questões ligadas com as querelas jurisdicionais com Toledo
ou com Compostela, não podendo deixar de reparar-se em que quase todas
as suas deslocações a Roma pareciam ter obedecido como que a um padrão
rítmico que se coordenava de forma bastante significativa com os
progressos político-militares e territoriais do seu Rei e do País que
iam caminhando para Sul a passos largos. Em 1144,
quando o pedido de vassalagem tinha sido entregue na Cúria, ele
apresentou aí o pagamento correspondente ao censo prometido e recebeu a
carta de protecção para Afonso Henriques; quando, em 1148, se deslocou
a Roma para justificar a sua não obediência a Raimundo de Toledo,
decerto aproveitou para reportar a conquista de Lisboa e a restauração
de Lamego e Viseu, recebendo uma confirmação pontifícia das sufragâneas
de Braga. Parece não
se ter esquecido de relevar a acção de muitos estrangeiros na tomada
de Santarém, Sintra e sobretudo de Lisboa, provando à Santa Sé, o
empenho da Europa e do Mundo conhecido então, na luta contra o infiel,
liderada por Afonso Henriques e a importância estratégica e económica
do nosso rincão. Muitos dos estrangeiros vindos na armada do conde de
Areschot ficaram, como se sabe, residindo na cidade. Bastantes, entre
eles, fizeram assento no interior da província. As ordens de cavalaria,
as catedrais, as corporações monásticas foram liberalmente dotadas
nas terras adquiridas pela primeira vez. Algo ainda muito importante e
que, decerto, foi realçado, teve a ver com o não reconhecimento por
parte de Lúcio II de nada do que ficara estabelecido em Zamora no ano
anterior, não se esquecendo este de recordar, no entanto, a obrigação
de Afonso Henriques em continuar as operações militares que
desenvolvera até então, além de solver o censo prometido (120 gramas
de ouro anuais).
Roma
queria tudo. Por uma questão de prudência, D. João Peculiar há-de
ter apaziguado os ânimos rebeldes de Afonso Henriques e obrigado o Rei
a esperar por uma oportunidade de fazer ecoar pela Europa o sucesso da
tomada de Lisboa. De lamentar que a História seja relutante à prossecução
das evidências e oportunidades. Não seria de esperar que Lúcio II
vivesse apenas mais esse ano e os Pontífices que se lhe seguiram
tivessem mandado colocar nas arcas ou no Armário do Arquivo da
Chancelaria documentos políticos assaz importantes sem lhes dar a solução
que mereciam. A Sul de
Leiria, na direcção do Ocaso, foi fundada, em 1153, uma alargada ala
do mosteiro de Alcobaça, que veio a ser um dos mais célebres de
Portugal e a cujos monges ficou a dever-se, sucessivamente, a cultura de
uma extensa parte da Alta Estremadura, a qual até aí fora uma vasta
solidão e, por muito tempo, pouco mais serviria do que um campo neutro
entre cristãos e sarracenos. Nasceram, então vilas e aldeias por meio
desses novos colonos, por quem o Rei distribuía terras e privilégios,
como incentivo ao aumento demográfico e à eventual necessidade de
defesa e de prosperidade económica. Além de
D. João Peculiar fazer saber em Roma e pela Europa estes sucessos e
medidas que se iam tornando imprescindíveis, a par da construção de
imponentes edifícios religiosos (uns mais do que outros), em 1157 e em
1163, também apresentou a tomada de Alcácer (24 de Junho de 1158):
portanto, sempre mensagens de submissão e vassalagem por parte do Rei
– símbolo do mais elevado Catolicismo -, apesar de se ter deslocado a
esses encontros para responder sobre a sua contumácia em obedecer ao
primado de Toledo. Braga reivindicava a total independência em relação
a esta Sé de arquiepiscopado, a quem disputava ainda os direitos do
primado, por pretender ter direito a usar esse título, com base na
anterioridade da posse desse estatuto, que alegava ter usado desde
tempos anteriores à saciedade que a interferência das esferas políticas
nesta questão não deixava ao acaso o desfecho deste assunto. Ainda em
1150, João Peculiar, na sequência de mais uma hipotética suspensão,
acabara por ir mesmo a Toledo, prestar obediência ao Arcebispo dessa
metrópole como a seu primaz, por uma e única vez. O documento onde se
regista este acto menciona que o rei Afonso Henriques enviara o
arcebispo português a Toledo com o seu próprio filho primogénito,
Henrique, que teria, então, 3 anos, e que Afonso VII, por seu turno,
tinha enviado seu filho mais novo, Fernando, de 13 anos, causa
reformandi pacis, no que parece ser um encontro entre eclesiásticos
com uma óbvia leitura política. Contudo,
não parecia ter estado na natureza deste prelado (ou quem sabe, dos
interesses da política portuguesa) manter tal estado de coisas, como
sugere o facto de - como se conta -, logo em 1155, vir a ser suspenso,
mais uma vez, desta feita pelo cardeal Jacinto, legado papal à Península,
por causa da sua recusa em comparecer ao concílio provincial convocado
e presidido pelo “Imperador” Afonso VII. Até final da sua vida, João
Peculiar continuaria sempre a exercer a sua autoridade e o seu munus
arquiepiscopal como se nada afectasse a sua legitimidade para o fazer, e
recordando-se - e aos demais -, sem recuos por quaisquer dúvidas que
houvesse, que a aceitação da vassalidade exclusiva à Santa Sé, o
desvinculava de Afonso VII e da obediência à Igreja peninsular. Neste
ponto, a sua actuação aproximava-se muito da de Afonso, o senhor seu
Rei que também reinou de facto,
durante quase quarenta anos, exercendo o seu imperium
sem limitações e como líder único de pleno direito, sem ligar ao
facto de, apesar de nunca ter deixado de lutar pela legitimação do seu
poder pelo Papa, ter recebido tão só o reconhecimento pontifício que
lhe permitiria afirmar a sua identidade como dux,
ou mero condutor do seu povo, e a existência do território pontifício
o que daria azo a Roma
afirmar a sua eclesiástica auctoritas
dentro da terra como era, então considerado, e apenas, como reino
independente e indivisível, com sucessão hereditária, em 1179,
quando, por fim, a bula Manifestis
probatum est argumentis lhe reconhecera esses poderes de
jure.
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