Santa Cruz de Coimbra

IPPAR

Fachada principal da igreja do Mosteiro de Santa Cruz, de Coimbra

 

 

A CRÓNICA DOS GODOS

 

Os textos de Historiografia preparados no «Scriptorium» do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra

 

O «Livro das Lembranças» ou das chamadas «Crónicas Breves»

No domínio (da nossa historiografia medieval, o mais conhecido e citado dos códices de Santa Cruz, sendo-o através de largos extractos dos textos nele contidos que foram publicados nos Portugaliae Monumenta Histórica 1, é aquele que tinha o n.º 86 na livraria de mão conventual, segundo o catálogo dos seus códices membranáceos redigido por D. José ide Avé Maria 2. A designação corrente que lhe é atribuída, ao gosto de título factício, é aquela que lhe deu Herculano ao redigir a nota que antecede a publicação referida acima: Chronicas breves e memorias avulsas de S. Cruz de Coimbra 3. E se esta designação parece bem adaptada ao conteúdo do códice, o certo é que a primitiva - ignorada, ao que parece, de Herculano e dos autores que se têm ocupado dos extractos deste manuscrito por ele publicados - também definia perfeitamente esse mesmo conteúdo, parecendo querer indicar, por outro lado, qual a intenção que determinou o agrupamento ide fragmentos de textos ou cadernos avulsos reunidos neste volume, por uma só vez ou em épocas diversas.

Com efeito, esclarece-nos D. José de Cristo, quando recorre aos anais da primeira parte do códice para indicar a data ida conquista de Leiria, que no seu tempo o manuscrito era conhecido como Livro das Lembranças 4. E devia ser este o título escrito, em letra do séc. XVI ou princípios do imediato, no rectângulo de papel colado sobre a folha de pergaminho que revestia a tábua da encadernação : Livro das Lembranças e muitas cousas. Das duas primeiras palavras ainda há vestígios que consentem a sua interpretação e as duas últimas resistiram aos estragos do tempo.

Quando na oficina claustral se procedeu à tarefa de agrupar e salvaguardar, através da encadernação, alguns dos textos e fragmentos integrados, hoje, no conjunto do códice -e as características dessa encadernação denotam que se trata de um trabalho do séc. XVI - houve, sem dúvida, o propósito de reunir, por essa forma, as lembranças ou memórias que interessavam ao conhecimento da vida da canónica nos seus primeiros quatro séculos e que serviam para informar toda a dedução baseada no carácter excepcional que se pretendia atribuir à sua fundação. Com o mesmo propósito foram efectuadas, posteriormente, outras adições, denunciadas através das características externas do códice, que bem requerem, por tal motivo, uma observação especial.

A parte inicial do códice é formada por um quinquennio de papel: !desligada embora da primeira, com a qual formava um dos fólios dobrados, a última folha conserva os vestígios suficientes para concluirmos que a separação é o resultado dos estragos do tempo. Segue-se uma segunda parte, reunindo hoje dezoito folhas, das quais dez de pergaminho (1 a 8 e 18 e 19) e oito de papel (9 a 17) que se agrupavam, primitivamente, por esta forma: a 1.ª, a 2.ª, a 3.ª e a 18.ª são quanto resta de um caderno que devia conter mais folhas, pois que entre a 2.ª e a 3.ª há vestígios de outras que foram cortadas e a segunda, no final ido texto copiado no seu verso, exibe ainda, a modos de chamadeira, a palavra tempo (abreviada) que podia ser a primeira da folha seguinte, Quando hoje assim não acontece 5; entre a 3.ª e a 4.ª folhas (actual 18.ª desta segunda parte) do que resta desse caderno, foi incluído, quando da encadernação do códice, um ternio de menores dimensões (folhas 4.ª, 5.ª, 6.ª, 7.ª, 8.ª e 17.ª do actual agrupamento); entre as folhas 8.ª e 17.ª deste ternio, foi incluído, também quando da encadernação, um quaternio de papel. A terceira e última parte é composta por um quinquennio e por um quaternio, ambos de pergaminho da mesma qualidade e com iguais dimensões, formando, sob esse aspecto, um conjunto, posto que outras características extrínsecas, quanto as intrínsecas, estabeleçam uma distinção a partir do verso da última folha do quinquennio.

Um fólio de pergaminho, servindo hoje de guarda no começo do códice, contém uma nota, na metade colada à tábua da encadernação, que é subsídio de interesse para a datação, preenchendo o recto da outra folha algumas jaculatórias. Informa aquela nota

Ao deradeyro dya dagosto Se finou ho allmoxarife brandam na Era de mil IIIjos lRIX anos e finousse de morte ssupytania.

A letra das jaculatórias é da mão que trasladou o texto contido nas folhas iniciais da segunda parte, o que talvez consinta deduzir que tanto essas, quanto aquelas que se extraviaram - porém das quais há vestígios, como acima foi indicado - formavam, com as do princípio do códice na sua forma actual, um conjunto independente: assim o querem indicar particularidades do domínio da Codicologia. Posteriormente, foram adicionados a esse conjunto outros fragmentos que lhe eram afins pelo seu conteúdo: esta a génese da segunda parte do códice. Quando da reforma da sua encadernação, foi anteposto a esse conjunto o quinquennio de papel que contém um texto de tipo analístico, adicionando-se-lhe também, no final, um outro conjunto, porém este de tipo cronístico: são essas as primeira e terceira das partes que formam o conjunto do códice, na sua composição actual.

 

Reflexões sobre os textos do «Livros das Lembranças».

A individualização das três partes distintas do Livro das Lembranças, assentando, como ficou referido, nas características exteriores de qualquer delas, poderá ser também estabelecida a partir do seu próprio conteúdo. A simples esquematização das fontes – identificadas ou admissíveis – em que são baseados os respectivos textos, logo concorrerá, ide certa maneira, para essa diferenciação. Porém, é através da forma de que se reveste o aproveitamento dos subsídios ministrados por essas fontes, bem como no critério a que obedeceu a selecção de todos eles, que melhor se define a orientação dos autores ou copistas e se vem a conhecer o propósito que os moveu.

Estudos recentes - do Prof. Lindley Cintra 6, do Prof. Pierre David 7, do Prof. Diego Catalan Menendez Pidal 8 e ido saudoso Dr. A. de Magalhães Basto 9 oferecem deduções e conclusões que facilitam, em parte, a esquematização das fontes dos textos do Livro das Lembranças. A partir da lição dos referidos autores, bem como de observações pessoais, reunimos, a seguir, algumas notas sobre cada um desses textos, porém com o propósito único de anteceder a sua publicação integral e através de leitura nova, esta mesmo no que diz respeito aos extractos que foram já impressos nos Portugaliae Monumenta Historica 10.

a) Caderno de memorias dos reis que foram nestes Reinos 11.

Estes Anais Quatrocentistas foram redigidos a partir de notas recolhidas noutras fontes também de tipo analistico e ainda numa ou mais crónicas, concluindo-se também que o seu compilador não conheceu apenas os códices integrados na livraria de mão conventual. Por mais de uma vez, embora o não seja de todas as vezes em que foi essa a fonte de que se socorreu o compilador, é citado o Livro das Eras ou Livro da Noa: quer de maneira clara (assy o diz o livro das eras da samcristia, fls. 7 v.) , quer através de alusão ao respectivo códice (em huum psalteyro da samcristia, fls. 9 v.) ou ainda sob forma imprecisa (em huum liuro da samcristia, fls. 10 v.) . Registos curtos, também de tipo analístico, denotam conhecimento do texto que tem sido !designado - embora sem propriedade, como já ficou anotado - Chronica Gotorum: assim acontece na parte relativa a sucessos pertinentes ao reinado de D. Afonso I.º (fls. 8) . Há também notícia de um códice não pertencente a Santa Cruz: em huum liuro de Sam Pedro dAalmjdina diz que na era de mjl e dous anos (fls. 10 r.) . Noutros passos, o compilador alude a fontes narrativas. Querendo fundamentar-se, por exemplo, em noticias relativas à ascendência do conde D. Henrique, bem como dizê-lo promotor da construção da Sé de Coimbra, alega, sem pormenor que permitia identificá-la, uma dessas fontes, ao exprimir-se nestes termos: ca assim o diz a cron jca (f Is. 10 v.) . Mais adiante, porém, desce a um pormenor que é seguro indício para a identificação pretendida, exprimindo-se então por esta forma (fls. 11 v.)

A cronica de Espanha conta que Elrey dom Afonso de Castella ouue seis molheres de bençon e hua barregaa...

Redigidos ao findar o terceiro quartel do séc. XV, estes Anais arquivam ainda, com outras contemporâneas, a noticia da tomada de Arzila em 1471, no mes dAgosto em dia de Sam Bertollameu,. pelo que nos é indicado assim um terminus a quo, pelo menos em relação à sua parte final e se admitirmos que o traslado ou redacção não se efectuou de uma só vez na sua totalidade.

O seu compilador mostra-se preocupado com a recolha de toda a informação relativa à vida e acções dos nossos dois primeiros reis, particularmente de D. Afonso I, para só vir a evidenciar igual interesse - e nesse particular quanto aos reinados em que ele próprio viveu ou dos quais alcançou directa notícia : D. João I, D. Duarte e D. Afonso V. O mesmo critério de preferência, porém dessa vez a evidenciar-se, do ponto de vista cronológico, dentro de limites mais amplos que os próprios das épocas indicadas, é manifesto relativamente a toda a notícia que interessava a Santa Cruz.

No caso particular das memórias relativas a D. Afonso I, cumpre ainda observar que além de outras dispersas pelo texto, o seu compilador agrupou a maior parte em duas séries sem cuidar da repetição de algumas das notícias -porém só como notícias, poros que são diversas na redacção - que nelas se inserem. Na segunda série (fls. 8 r. e 8 v.) , há, mais do que uma coincidência relativa à ordem dos sucessos anotados e algumas expressões idênticas quanto à forma, um registo, o da tomada de Évora, que poucas variantes acusa quando comparado com o trecho correspondente do letreiro da sepultura do nosso primeiro rei a que faremos referência a seguir, ao aludirmos à chamada Segunda Crónica Breve.

Porém, quer a lição do letreiro, quer a dos Anais, no particular desse registo, em tudo se assemelham à versão da chamada IV Crónica Breve, naquele passo em que diz assim (códice 86 da livraria -de mão, fls. 44 v.)

Este Rey filho Euora a mouros. E fez a sce do dicto logo. E outras mujtas Villas E castellos E deu ao espritall de Iherusalen que he en Euora oiteenta uezes mjll marauidijs em ouro pera comprarem Erdades E que dessem aos emfermos da emfermaria ca dia por pitança senhos paeens queentes de trigo E senhos vassos de boo ujnho.

O mesmo passo, nas duas fontes acima indicadas, reveste-se da forma seguinte

LETREIRO 12.

Tomou a çidade de Euora aos Mouros e fez a sce deste lugar e fez hi hum sprital que se chama de Hyerusalem e deulhe outenta mil marauedis em ouro pera comprarem herdades e que dessem aos enfermos senhos paens quentos de trigo e senhas vezes de vinho e que os metes~ sm em cada hum dia em oração...

ANAIS

 ...] tomou Euora aos sarrazijns. E tez a sce desse logo. E fez hy huum spirital que se chama de lheruselem. E deu pera comprarem em beens de Raiz oyteenta mjl dinheiros douro. E os pobres de Christo fossem hy recebudos com caridade aos quaaes dessem a cada huum senhos paaens de trigo e senhos vasos de vinho. E que o metam em sua oraçom.

 A menos que se pudesse atribuir ao copista do códice da Crónica dos Cinco Reis a responsabilidade inteira das variantes ou erro (é o caso de vezes por vasos) verificados no passo transcrito, podemos talvez reconhecer que o compilador dos Anais Quatrocentistas conheceu um texto mais remoto, fosse ele o autêntico do letreiro ou outro as anotações dedicadas, adiante, à IV Crónica Breve talvez ajudem a esclarecer este ponto.

Quanto ficou exposto permitir-nos-á ainda concluir que estes Anais não são apenas uma compilação de notas arquivadas em códices diversos – e aí registados em obediência ao costume que era corrente no tempo – para serem, antes, um texto que documenta, quando ao findar o séc. XV. a sobrevivência de um tipo especial de Historiografia, dentro do scriptorium de Santa Cruz. Aliançados a outros que testemunham sucessos da vida do Reino e do próprio convento, há, neles, registos que se integram na corrente historiográfica mais remota, uma vez que interessam à História e à Cultura cristãs ou documentam calamidades.

b) Segunda Crónica Breve

Antecede o texto desta segunda parte do códice a declaração seguinte

Esta he arenga que f ezerom em Lixbo <a> quando fezerom as festas aa emperatriz filha delRey Dom Eduarte.

Herculano classifica de «rapida história dos reinados de Affonso Henriques e de Sancho 1», dizendo-o também «uma espécie de chronica dos nossos deus primeiros reis», o trecho que ocupa as duas primeiras páginas - embora não completamente - desta parte do códice, assim o declarando na breve nota que antepõe à sua publicação nos Portugaliae Monumenta Historica. Mas não refere que a mesma rápida história ou espécie de chronica só figura no códíce como introdução a outras memórias, aí coligidas, que interessam ao conhecimento de sucessos relativos à vida do convento.

Logo a seguir ao trecho publicado por Herculano, sem interrupção e pela mesma letra é iniciada a notícia da contenda de Santa Cruz com o alcaide-mor de Coimbra Lopo Vasques e que teve a sua origem na disputa da água da Fonte Nova. 0 memorialista denuncia, por certo, os seus propósitos, graças à continuidade do seu trabalho não quereria mais do que agrupar circunstanciadas notícias ou simples referências de carácter analístico susceptíveis de permitirem um juízo sobre os favores dispensados pelos nossos primeiros reis a Santa Cruz e os direitos e regalias que eram particulares do convento.

Pretendendo exaltar a memória de D. Afonso I e do seu filho, ainda que servindo-se, para tanto, de bem resumida lembrança dos principais sucessos dos seus reinados, o memorialista poderá ter recorrido, para o efeito - e recordemos que ele escrevia no séc. XV – ao texto dos letreiros que escritos em pergaminhos e fixados estes em tábuas, tinham sido colocados sobella sepultura del rei dom Afonso Anriquez e de D. Sancho I 13. E se pretendemos saber das origens desses letreiros, por certo que temos de as procurar – como já observou o Prof. Lindley Cintra - nas memórias várias preparadas no scriptorium conventual.

Foi também incluída nas Memórias desta segunda parte do Livro das Lembranças a adaptação - que não simples tradução - da Vida de D. Telo que abre o cartulário denominado Livro Santo, adaptação essa que é devida, como se declara na subscrição, a Mestre Álvaro da Mota, dominicano, e datada de 1457. Era Prior de Santa Cruz, por esse tempo, Dom Gomes. Um dos cónegos regrantes de então. Afonso Anes, tinha um irmão, Pedro Anes, que era prior de Podentes. E foi a pedido deste que Álvaro da Mota, o maior leterado da sua ordem – consoante o classifica a nota de abertura – fez a treladaçom de latim em lingoagem: porém a tarefa que o ocupou denuncia, frequentes vezes, intervenção pessoal de arremedo crítico, de passo que nem todo o original mereceu, da sua parte, a declarada versão. E tanto leva a julgá-la, pois, mais do que simples tradução, uma adaptação, como acima anotamos.

Outras memórias se sucedem nos fragmentos agrupados no conjunto desta segunda parte, com tectos que de forma directa ou não se relacionam com as excelências da canónica e os benefícios que os seus regrantes deviam, como alegavam, ao favor de Deus. Nem sequer faltam, incluídos no seu conjunto, pretensos milagres atribuídos à intercessão de D. Afonso I: nascia e tomava vulto, por esta forma, uma legenda áurea de um novo santo, a ponto de um outro memorialista do convento, já na seguinte centúria e quando ocupado com a redacção de uns novos Anais – também estes formados pela recolha de subsídios já contidos nos textos analísticos preparados no scriptorium durante a Idade Média – assim comentar os diversos passos da vida do primeiro rei

Foi achado o seu corpo inteiro quando Elrei Dom Manoel o mudou do sepulchro velho pera as sepulturas que agora tem: staua vestido como conego. Magnificauit eum < Dominus > in timore inimicorum, [elo ser tímido de todos seus imigos ; assi como a morte o temião.

Omnis locus, quem calcauerit per uester, uester erit, deulhe o Senhor a graça que deu a seus capitaães, que mandou tomar a terra de promissaõ, que quanta terra tomassem toda fosse sua pera sempre: assi conçedeo a este sancto Rey, que toda terra que hua uez tomou, nunca mais ategora se perdeu 14.

O mesmo autor quinhentista, que é, como foi dito, D. Gabriel de Santa Maria, alega depois, posto que resumidamente, as grandes vitórias de D. Afonso 1.º, fazendo-o pela mesma ordem e quase pelas mesmas palavras da passagem do letreiro em que elas são referidas. Por fim, adiciona-lhe uma observação pessoal deste teor:

Belchior da Costa em hum tratado que tez do cerco de Mozagaõ em que se achou, diz que Elrei Dom Afonso Enrriquez tem a sua conta os lugares de Africa, e ajnda os que em elles estaõ contra os Mouros, e traz pera proua disto, que estando hum dia hum conego dos antigos rezando na Capella destes leis, vio o sepulchro aberto e uazio, e o lei que uinha, e que lhe dizia que uinha de çeita de entregar a cidade aos Christaõs, que aquelle tempo eram a tornala por hum certo engano muito auenturozo, e sahiolhe muito bem, porque como leuauaõ ordenado. assi lhe socedeo, e a tomaraõ aquelle mesmo dia como o Santo lei disse ao conego; e isto diz Belchior da Costa que estaua escrito em hum liuro antigo deste mosteiro e o ardil foi, que f ingião, que aquella frota hia gera Aragaõ, e que lhes faltaua agoa, que lha uendessem, e querendolha uender, tiraraõ certas pipas em que leuauaõ as armas, e sendo em parte conueniente, os que leuavaõ as pipas, que era gente principal tomaraõ prestes as armas e arremeteraõ às portas da cidade, e as tiueraõ que se naõ fechassem ate os mais que estauaõ na armada prestes acodirem, e todos iuntos assi deraõ em gente que estaua descuidada, e os mais f ugiraõ, elles mataraõ muitos, e ficaraõ senhores da cidade ategora, e dos Portuguezes só outo foraõ mortos.

A coroa de glória de D. Afonso 1.º era assim entretecida de milagres, por mercê do labor do scriptorium conventual. E a expressão final dessa nova lenda, posto que destituída do êxito desejado, havia de ser representada, mais tarde, - já no reinado de D. João 3.° - através das diligências iniciadas em ordem a obter a canonização do nosso primeiro monarca.

Ficou memória dessa iniciativa da canonização no Treslado dos apontamentos que se fizeraõ sobre EIRey Dom Afonso Henriquez, presumivelmente lavrado pelos meados de Quinhentos e recolhido por D. José de Cristo num dos códices miscelâneos que organizou, quando cartorário de Santa Cruz (BPMP, 84) . No termo dos Itens em que está articulado, contém o documento explicação bastante sobre os motivos que estavam na sua origem:

E por que ha pessoas viuas < que nomearaõ > que sabem e tem noticia das cousas açima ditas, E faleçendo se pode perder a sancta memoria dellas. Pedem a V. S. Reverendissima as examine per os apontamentos conteudos em esta petiçaõ < E testemunhas que nomearaõ > E com seus ditos mande passar hum < e muitos > stromentos peca se guardar e conseruar a memoria da santidade deste glorioso Rej.

Endereçado a quem era distinguido, referentemente à sua qualidade, com o tratamento de Muito Illustre e Reverendíssimo Senhor - e que ocupava, portanto, destacada posição na hierarquia eclesiástica - o documento sofreu aditamentos e emendas por letra de outra mão, porém da mesma época em que foi escrito. Posteriormente, uma terceira mão lançou no alto da primeira folha, após a inscriptio, uma anotação assim redigida

Quando EIRey Dom João 3.º queria Canonizar este Rey Dom Afonso Henriques, perguntauaõ se as testemunhas por estes interrogatorios.

Anota ainda o memorialista D. José de Cristo, no códice a que deu a designação de Miscelaneo Primeiro (BPMP, 86, fls. 2), que na verdade se intentou canonizar [D. Afonso 1.º] e com muito fundamento se começaraõ a jazer as inquiriçoens mas por morte do Rej não teue esto effejto. EIRey Dom Sebastiaõ o detriminaua jazer a uolta de Sejta, por rogos dos nossos padres, que lhe leuarão a sua espada e escudo; mas como o Rej morreo na batalha tudo ficou no ar. Sabemos assim qual a razão porque não prosseguiram as diligências iniciadas. É de anotar, por outro lado, que também não são de todo ignoradas aquelas razões que animaram os crúzios a essa primeira tentativa - mais tarde repetida, como é bem sabido, no reinado de D. João 5.º - no sentido de elevar aos altares da Igreja o primeiro rei de Portugal.

Alguns dos fundamentos indicados, como eles próprios alegavam nos itens do seu memorial, foram colhê-los na crónica de Duarte Galvão ou nas fontes analísticas existentes na livraria de mão do convento. Porém outros, embora sumariamente expostos. fundamentavam-se nas fontes narrativas que se integravam na segunda .arte do códice designado Livro das Lembranças - fontes essas que eram, no seu conjunto, de particular interesse para a história da canónica e que também pretendiam, uma ou outra vez, dizer da miraculosa intervenção do monarca em defesa do convento.

Talvez de começo a recolher apenas o eco de uma vaga tradição, quando se tentava compreender como favor de Deus o reflorir de excelências que apartavam o mosteiro no mundo -do seu tempo; porém, no encadear das décadas e dos séculos, a evidenciar-se já, continuando a mesma tradição, um propósito bem definido, - o certo é que os memorialistas crúzios nimbam de auréola refulgente a alta figura de D. Afonso 1.º. E então o grande monarca e obedecido condutor das hostes da Reconquista deixa a paz do túmulo, ele que bem a merecia e inteira após tantos anos de luta porfiada, para acudir em defesa do seu mosteiro... e até para ir de jornada a Ceuta, quando da conquista da praça!

c) Terceira e Quarta Crónicas Breves

A terceira e última parte do Livro das Lembranças é formada, como já ficou anotado, por dois cadernos de pergaminho, nos quais duas mãos, sucedendo-se na tarefa e sem demora de maior, trasladaram as chamadas III.º e IV.º Crónicas Breves. Estudos recentes, desenvolvendo, aclarando, rectificando ou completando outros - e sempre orientados, da parte de cada autor, no propósito de delinear a evolução da nossa Historiografia, depois de procurar as suas origens -permitem conhecer a génese desses textos e as suas possíveis fontes.

Observava já Alexandre Herculano - e sendo o primeiro a fazê-lo, como nota o Prof. Lindley Cintra haver relações estreitas desses textos trasladados no Livro das Lembranças com a Crónica Geral de Espanha 15.

No estudo exaustivo, de seguro fundamento e serena dedução, que antepôs à sua edição da mesma Crónica Geral redigida em 1344, o mesmo Professor identifica o texto da III.ª Crónica Breve, reconhecendo nele uma cópia dos primeiros capítulos de história portuguesa daquela crónica: fica assim comprovada a razão de ser da observação de Herculano. Só uma questão, qual seja a que se contém numa interrogação do autor da História de Portugal, poderá, acaso, subsistir.

Na verdade, Herculano, depois de indicar a relacionação dos textos de Santa Cruz com passagens da Crónica Geral de Espanha, hesitava e interrogava

- Aproveitaram-se os chronicons na composição ou tiraram-se della ?

Este problema da anterioridade, e logo da origem, de qualquer dos textos, poderá, certamente, sugerir ainda novas averiguações, vindo então a encadear-se nelas outras deduções, para além daquelas que são já do domínio público. A identificação dos mesmos textos - que se tornou possível após os estudos de A. de Magalhães Basto sobre o códice cartáceo de Santa Cruz que contém uma cópia, dos finais de Quinhentos, da crónica dos nossos primeiros reis que terá sido redigida à volta de 1419, bem como em consequência das reflexões que são devidas ao Prof. Lindley Cintra - não obriga, na verdade, a uma definitiva conclusão. pelo que toca à mesma anterioridade. E haverá mesmo suficientes indícios para que essa dúvida seja de admitir.

Porque mais não desejamos, desta vez e neste ponto, do que antepor breve prólogo à publicação de alguns dos textos que documentam e ilustram a colaboração dada pelo scriptorium de Santa Cruz à nossa Historiografia medieval, não queremos também adiantar algumas observações que nos são sugeridas através dos exames dos mesmos textos e pela via do conhecimento das reflexões que eles mereceram já. Não podemos deixar de aludir, no entanto, posto que resumidamente, a algumas dessas reflexões.

Assim, expunha e interrogava A. de Magalhães Basto, quando se lhe ofereceu ensejo de apreciar o texto da IV.ª Crónica Breve:

«Ou muito nos enganamos ou esta não é mais [...] que um fragmento de qualquer versão da Crónica Geral de Espanha, em português, mais antiga que a chamada III.ª Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra. Será assim? 16».

Reconhece o Prof. Lindley Cintra a impossibilidade da verificação desta hipótese. Entretanto, o Prof. Diego Catalan Menendez Pidal, nos quatro estudos sobre o nascimento da Historiografia, em romance, em Castela e em Portugal, que agrupou sob o título De Afonso X al Conde de Barcelos, depois de aceitar a dedução feita pelo autor português, logo a relaciona com a lição da Coroniqua Gallega, alegada por Cristóvão Rodrigues Acenheiro 17 para então concluir:

«La IV.ª Crónica Breve es una obra inmediatamente anterior a le Crónica de 1344 y al Livro das linhagens; es, seguramente, Ia propria fuente utilizada por el conde don Pedro para ta historia de los reyes de Portugal. Como, por otra parte, tenemos Ia seguridad de que es posterior a 1340, ano de Ia batalla dei Salado, se impone fechar el texto de Ia IV.ª Crónica Breve en 1341-1342.

Esta fecha de 1341-1342 es Ia misma que nos vimos anteriormente forzados a señalar para Ia Crónica Gallega de Acenheiro. Tan absoluta contemporaneidad entre el fragmento de Crónica de España, que es Ia IV.ª Crónica Breve, y Ia Crónica de Espana que conoció Acenheiro, nos plantea immediatamente el problema de si ambas obras no serán una sola, de si Ia Crónica Gallega de Acenheiro no será Ia Crónica de Espana de donde se transcribieron para Ia biblioteca de Santa Cruz de Coimbra los capitulos sobre Portugal que integran Ia IV.ª Crónica Breve» 18.

O que ressalta destas observações, para além de uma pretendida identificação, é, a nosso ver, e pertinentemente ao caso particular da actividade do scriptorium de Santa Cruz em favor da nossa Historiografia, o implícito reconhecimento de uma versão cronística anterior às que indica o Prof. Diego Catalan Menendez Pidal e que são bem conhecidas: a Crónica de 1344 e o Livro das Linhagens. Adiantemos ao exposto uma breve reflexão.

Ao menos pelo que toca aos dois primeiros reinados. importa não esquecer, quando está em causa este problema das origens e logo da primeira expressão cronística das suas memórias, as claras referências contidas na Crónica dos Cinco Reis, de toda a vez que aí se alega hua escritura que foi achada no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra ou aquella historia del rey D. Afonso que foi achada na çidade de Coimbra 19. Não o esquecendo, recordemos também o que escreveu o cartorário D. Vicente no seu inventário de códices atrás publicado

No Cartorio de S. † . esta a Croniqua del Rej D. Affonso Henriques a quoal abreuiou o Cronista Galuam de outra Croniqua que estaua no dito cartorio, por mandado del Rej Dom Manoel. e a Croniqua antiga nam tornou mais ao mosteiro antes f iquo em casa do dito Galuão.

Seria esta desaparecida crónica a origem de outras posteriores - e, também por hipótese, a fonte da lição contida em textos diversos, quer analísticos, quer narrativos, do labor do scriptorium conventual no domínio da Historiografia ?

Esta uma interrogação, esta uma dúvida, mas também, repetimos, uma hipótese. Poderá ser contributo sério, em ordem a orientar-nos na reflexão que a mesma hipótese implica, tudo quanto vier a inserir-se no âmbito dos estudos que tenham por fulcro a perdida estória de D. Afonso 1.º. Resta aguardá-los confiadamente 20.

 


Notas:

1. P M H., Scriptores, vol. I, págs. 23.

2. D. José da Avé Maria, Bibliotheca Manuscripta Monasterii S. Crucis Colimbriensis, catálogo publicado por A. G. da Rocha Madaíl no Boletim da Biblioteca da Universidade, vol. 8.° e segs.

3. A descrição do códice inserta na referida nota contém um esclarecimento e diz-nos da intenção do editor dos extractos então publicados:

Principia, o codice por uma compilação de memorias avulsas colligidas sem ordem chronologica de diversas fontes, e interrompidas uma vez ou outra por materias não historicas Conhece-se que a compilação foi feita na ultima metade do seculo XV. não só pelo caracter da letra, mas tambem por abranger factos relativos ao reinado de D. Duarte. Extrahimos dessa colecção os artigos que diziam respeito às epochas anteriores ao reinado de D. Diniz reservando para depois os que pertencem a tempos posteriores, e conservando nos aqui impressos a ordem em que foram colligidos.

Também no breve prólogo que é a nota citada aparece este códice identificado através do número que lhe coube na colecção de manuscritos da Biblioteca Pública, ou seja o 79. Porém, erradamente se tem escrito, por vezes, que era esse o seu número de ordem na Livraria de mão conventual: a confusão deve ter resultado da circunstância de alguém - e talvez o fosse o bibliotecário Diogo de Góis Lara de Andrade ‑ haver inscrito o mesmo n.º 79 no fragmento do rótulo de papel que, colado à pele da encadernação, continha o primitivo título do códice.

4. D. José de Cristo, Fragmentos das Chronicas..., fls. 227.

5. Não afirmamos em absoluto que se trata de uma chamadeira, embora tudo pareça indicá-lo, filiando-se a nossa hesitação na circunstância de não aparecer outro exemplo do seu emprego.

6. V. a longa - e bem documentada, quanto bem deduzida - introdução que antecede o primeiro volume da Crónica Geral de Espanha de 1344, publicada pelo Prof. Lindley Cintra (Lisboa, 1951).

7. Pierre David, Annales Portugalenses Veteres e.Êtudes historiques..., já citados.

8. Diego Catalán Menendez Pidal, De Afonso X al Conde de Barcelos. Cuatro estudios sobre el nacimento de Ia Historiografia Romance en Castilla y Portugal (Madrid, 1962).

9. A. de Magalhães Basto, Estudos, volume da colectânea Acta Universitatis Conimbrigensis (Coimbra, 1960). Não citamos os trabalhos dispersos do mesmo autor e que interessam sobremaneira ao estudo da evolução da Historiografia no scriptorium de Santa Cruz, uma vez que todos eles foram compilados no volume referido.

10. Nem sempre é correcta a transcrição dos trechos que foram publicados nos P. M. H., Scriptores, vol. 1.º: impunha-se, pois uma leitura nova, tendente a eliminar os lapsos que podem conduzir o investigador a erro.

11. O título é posterior ao texto, tendo sido lançado no alto da primeira folha, presumivelmente, na segunda metade do séc. XVI.

12. A lição transcrita é a do antigo códice cartáceo 36 da livraria de mão de Santa Cruz (BPMP, 886), bem conhecido e alegado após os estudos de A. Magalhães Basto sobre a Crónica dos Cinco Reis que preenche, em cópia da segunda metade do séc. XVI, as suas primeiras 177 páginas. A cópia do letreiro é o primeiro idos capítulos soltos da parte final do códice. Cfr. Crónica dos Cinco Reis, ed. de A. de Magalhães Basto, págs. 222 (Porto, 1945).

13. Sobre os letreiros dos túmulos de D. Afonso 1.º e de D. Sancho 1.º, v. A. de Magalhães Basto, Estudos citados, págs. 273 e 279. A sua redacção é anteirior a 1429, como se conclui da referência que lhe faz Damião de Góis, na sua Crónica de D. Manuel (parte 4.ª, cap. 72.º, Coimbra, 1926).

14. Estas Memórias fundamentam-se noutras do cartorário D. Vicente (BPMP, 175) e foram trasladadas por D. Gabriel de Santa Maria para o códice cartáceo (BPMP, 414) que abre com as traduções da Vida de D. Telo e da Vida de São Teotónio a que temos aludido. Como já anotamos, a versão dessas fontes narrativas poderá datar do séc. XV, porém a referida cópia, numa letra redonda de forma invulgarmente apurada, é, seguramente, de Quinhentos.

15. Foi através de um exemplar da Crónica Geral de Espanha que havia pertencido a Severim de Faria que Herculano estabeleceu o confronto do texto em questão com o dos chronicons - a designação é sua-de Santa Cruz. Nos seus Opúsculos (vol, 3.°, págs. 135), escrevia que «a narrativa dos sucessos de Portugal durante a vida de Affonso I pôde dizer-se que é um complexo dos dous chronicons de Santa Cruz, às vezes perfeitamente semelhante, outras variando nos vocabulos e phrases». Cfr. Prof. Lindley Cintra, Crónica Geral de Espanha de 1344, vol. 1, págs. CCCLv (Lisboa, 1951).

16. A. de Magalhães Basto, Estudos cits. V. também artigo do mesmo autor publicado no jornal 0 Primeiro de Janeiro, de 27 de :gosto de 1948.

17. Cristóvão Rodrigues Acenheiro, Chronicas dos Senhores Reis de Portugal, nos Inéditos de Historia Portugueza, vol. 5.º (Lisboa, 1926).

18. Diogo Catalan Menedez Pidal, De Alfonso X al Conde de Barcelos (Madrid, 1962).

19. Prof. Lindley Cintra, obr. e loc. cits.

20. Temos presente, ao formular este voto, quanto expõe o Prof. Lindley Cintra nas páginas finais do seu estudo Sobre a formação e evolução da lenda de Ourique (até à Crónica de 1419), Lisboa, 1957.

"O «Scriptorium» conventual e a Historiografia Portuguesa", in António Cruz, Santa Cruz de Coimbra na Cultura Portuguesa da Idade Média, Volume I: Observações sobre o «scricptorium» e os estudos claustrais, Porto, 1964,

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