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Imagem do Apocalipse de
Lorvão, |
A CRÓNICA DOS GODOS
Veríssimo Serrão sobre os
Anais
A Idade Média herdou a tradição
romana dos anais ou relatos em forma de seriação anual dos
acontecimentos. Desde o século VII que os monges utilizavam «tábuas
pascais» para fixar, em cada ano, a festa móvel da Páscoa. Nessa espécie
de calendários litúrgicos foram-se depois gravando outros sucessos
ligados à vida da Cristandade e à história interna dos mosteiros 1. Já no século IX começa a fazer-se
unia distinção entre os factos ditos pascais e as notícias de ordem
geral contidas nas tábuas. São estes apontamentos que servem de base à
elaboração dos avais dos séculos XI e XII, com uma linha cronológica
seguida, mas não forçosamente anual, em que se referem os sucessos
havidos na congregação ou no reinado de um príncipe. E foi a partir
desse «complexo analístico» (Pierre David) que surgiram os textos que
uma longa tradição apelida de «cronicões» e que, pelo desenvolvimento
e ordenação das matérias, viriam a tomar o nome de «crónicas». Pierre David, que procedeu ao cotejo
desses primeiros fragmentos da nossa história, preferiu a designação de
«annales portugalenses veteres» 2, uma vez que tais notícias abrangem
os factos sucedidos na região que veio a ser Portugal, entre os reinados
de Almançor (987) e de Afonso VI de Leão (1122). Numa segunda redacção,
já do ciclo afonsino, esses registos abrangem sucessos de 1125 a 1168,
recebendo acrescentos de outros copistas cujo labor se pode datar até ao
século XIV. Tal o caso da Chronica
Gothorum e do Chronicon
Conimbricense, que são dois registos típicos dessa produção analística. O Chronicon Conimbricense, que Herculano data dos fins do século XII ou inícios do imediato, contém uma série de efemérides, em latim vulgar, com interesse
para a história da Reconquista e da Sé Episcopal de Coimbra 3.
Remontando à chegada dos Godos à Península Ibérica, o texto constitui
uma tábua cronológica em 11 séries, que termina na reedificação do
Castelo de Leiria, por D. Afonso Henriques, no ano de 1145: «In era Mª Cª
LXXXIIIª VIIª Kalendas marcii Ipse predictus Rey aldefonsus cepit
Redificare castrum leyrene.» Mas o manuscrito teria sido depois
acrescentado, pois nota-se na cópia publicada alusão a factos do século
XIV, como a morte de D. Dinis, ocorrida em 6 de Janeiro de 1325. Curioso
ainda referir que, no meio do texto latino, um copista teria deixado referência,
em português, a um tremor de terra ocorrido na véspera de Natal de 1337:
«Era Mª CCCª LXXªV et na noyte vigilia de natal ante galo tremeu a
terra.» O texto contém interesse onomástico e
cronológico: nomes de reis, bispos, clérigos e nobres aparecem citados
de mistura com a data dos sucessos em que tomaram parte. A enumeração
carece de rigor na ordem temporal, mas nem por isso os dados do Chronicon
têm menos valor para o conhecimento de factos soltos dos primeiros três
séculos da monarquia portuguesa. Da mesma época datam a Chronica
Gothorum e a Brevis Historia Gothorum, de que alguns fragmentos
foram depois transcritos por Frei António Brandão na 3.ª parte da Monarchia
Lusitana, mas cuja publicação integral se deve apenas a Alexandre
Herculano, em 1856 4. Trata-se de uma descrição em muitos pontos idêntica
ao Chronicon anterior, mas de ordem cronológica mais rigorosa. Os
eventos são referidos numa linha temporal sem retrocessos, abrangendo um
número de factos mais considerável. Mas nem sempre estão conformes, tal
o caso de a conquista de Santarém por D. Afonso Henriques -que teve lugar
em 15 de Março de 1147 - vir citada da seguinte forma: Era MCXXXI
Secundo cal. Maii Sabbatho hora nona Rex donnus Alphonsus cepit civitatem
Santarem anno Regni sui XXVIII mense V sexto die mensis 5. No entanto,
a Chronica Gothorum apresenta a novidade de considerar os feitos
militares como matéria histórica, para assim exaltar os fastos de um
determinado monarca. A Breve Historia espraia-se na
indicação da tomada e reconquista de castelos pelos reis de Leão e
Portugal, salientando tratar-se de vitórias cristãs contra os
Sarracenos; e sempre que descreve certas derrotas impostas pelos infiéis,
como no caso de Tomar, em 1137, o anónimo copista acrescenta: evenit
infortunium christianis 6. Estes dados permitem comprovar o carácter
espiritual que os monges da retaguarda atribuíam às lutas da
Reconquista. Outros textos merecem breve referência,
como o Chronicon Lamacense e o Chronicon Laurbanense, ambos
compostos em latim, também numa série isolada de factos, e o Breve
Chronicon Alcobacense, os dois primeiros oriundos da oficina de Santa
Cruz de Coimbra e o terceiro de marca cisterciense 7. Podem definir-se
como simples fragmentos de outros cronicões, porventura elaborados nas
duas mais importantes casas monásticas do reino e em que se tivessem
redigido anais ou memórias avulsas do bispado de Lamego e dos conventos
de Lorvão e Alcobaça. A data da sua composição pode situar-se entre os
séculos XII e XIV. O último faz mesmo referência à célebre peste
regra de 1348 - era Mª CCCª LXXXª
VI fuit generalis pestilencia per toto mundo in qua mortui sunt due partes
hominum - e à morte do rei D. Afonso IV, ocorrida em 7 de Janeiro de
1357 8. Com mais recheio histórico, pois não
se limitam ao traçado cronológico de fundo analístico, são os cronicões,
que representam os textos mais antigos e completos sobre a Reconquista
cristã, a fundação da Nacionalidade e a vida dos primeiros monarcas.
Ainda que observando a narração anual, apresentam um carácter
descritivo e. de maneira um tanto fantástica, os sucessos reais. O seu
valor não é apenas histórico, mas também filológico, pela língua
arcaica em que foram compostos. Ainda no século XII o scriptorium
dos crúzios produziu vários manuscritos, como o Livro Santo, também
conhecido por Livro do Mestre Pedro Alfardo, escrito ao redor de
1155; e o Livro de D. João Teotónio, mandado executar pelo
referido prior, a partir de 1167 9. Estes dois cartulários são de
primeira importância, como bem notaram Rui de Azevedo, Carl Erdmann e António
Cruz, pelo seu valor paleográfico e diplomático e por constituírem uma
fonte para a história das contendas que Santa Cruz sustentou com a Sé de
Coimbra, nos dois primeiros decénios da sua existência 10. A exaltação dos feitos do primeiro
Afonso e a amizade deste pelo abade Teotónio aparecem, sobretudo, na Vita
beatissimi Domni Theotoni: primi prioris monasterii Sanctae Crucis,
que Alexandre Herculano incluiu na citada colectânea 11. Esse texto pode
datar-se dos fins do século XII ou início da centúria imediata. E da
mesma época será o De Expugnatione Scalabis, poema em prosa, de
estilo sugestivo, em que se coloca na boca do próprio rei a descrição
da tomada de Santarém aos Mouros. Obra de um monge de Alcobaça
(Herculano) ou de um crúzio conimbricence (Lindley Cintra), mas com mais
foros de verdade da oficina de Coimbra, constitui um texto de alto valor,
primando pela exactidão dos informes e pela colorida pintura com que
apresenta o primeiro monarca 12. Já numa fase adiantada do labor dos crúzios
surgem a Chronica breve, chamada, do Arquivo Nacional, as quatro Chronicas
breves e as Memorias avulsas de Santa Cruz de Coimbra, cuja
publicação se deve ao labor de Alexandre Herculano 13. Data o primeiro cronicão dos fins do século
XIV, já que o copista refere claramente: «a era que ora corre do
nascimento de nosso sennor Jeshu christo de mil e quatrocentos e vynte e
nove annos». A narração - a que o anónimo monge chama «renembrança»
-engloba os acontecimentos passados entre o início do governo do conde D.
Henrique e a morte de D. Dinis, provindo o seu título de a referida Memoria
fazer parte do livro 4.º das Inquirições de D. Afonso III, que
Herculano pudera compulsar no Arquivo Régio. Memória abreviada, com efeito, que
salienta as principais efemérides régias: de nascimento, casamento, óbito
e sucessão dos seis primeiros monarcas da Dinastia, mencionando ainda o
local em que cada um dormia o último sono. As biografias são reduzidas,
talvez com mais relevo a de Sancho I, não permitindo supor que o culto do
primeiro Afonso tivesse inspirado a feitura do manuscrito. O autor
baseou-se em escrituras antigas para assentar a verdade dos factos.
Dir-se-ia que o leitor escuta a voz de Fernão Lopes com meio século de
antecipação: «e estas eras forom escriptas certamente sabendose
primeiro a verdade do que em ellas he conteudo» 14. Maior dimensão têm as Chronicas
breves e Memorias avulsas que se integram no códice 79 da
Biblioteca Municipal do Porto. Obra de vários copistas, a sua redacção
data dos meados do século XV, portanto da época do nosso primeiro
historiador, mas não contém qualquer dado que lembre a pujança criadora
de Fernão Lopes. A primeira Memoria engloba uma parte analística,
de feição cronológica, e factos referentes ao reinado de D. Afonso
Henriques; a segunda é dedicada ao primeiro e ao segundo monarcas; a
terceira trata da descendência dos reis de Portugal e dos feitos que
culminam na conquista de Lisboa, em 1147; e a última narra, de forma sumária,
os reinados de D. Afonso Henriques a D. Dinis. O estilo dessas Memorias
varia, o que supõe um labor colectivo. No ponto de vista histórico
consideram-se as duas últimas partes as mais «trabalhadas» quanto à
matéria e narração, sendo evidente a apologia que nelas se contém dos
feitos do primeiro Afonso. Já salientámos o culto pela memória
deste rei, que se gerou à sombra do Mosteiro de Santa Cruz, e o desejo de
exaltar os seus feitos militares para a definição territorial do reino.
Quando o autor da 3.ª Memoria escreve dele «que era o mais esforçado
cavalleiro em armas e em força que avya em espanha, nem de que os mouros
mayor medo aviam» 15, reforça o juízo coevo de que a independência de
Portugal se fizera apenas graças ao heroísmo cristão do primeiro
monarca. No texto são frequentes as alusões ao «reino de Portugal» e
à «coroa dos rex de Portugal», o que confirma o sentimento nacional de
que os portugueses do século XV já tinham consciência. Há quem admita que as Memorias
apresentam uma versão anticlerical de D. Afonso Henriques, como figura
autoritária que se levanta contra Roma, na pessoa do legado papal,
gritando que a sua «heresia» estava gravada nas feridas que recebera dos
Sarracenos; e que no fragmento IV se coligem novos dados para demonstrar
que a maldição de D. Teresa após a Batalha de S. Mamede («porque
puseste ferros nos meus pés, quebrantadas sejam as tuas pernas com ferro»)
se executa, por desígnio da Providência, no desastre de Badajoz, em
1157. quando D. Afonso sofreu fractura de uma perna e não mais se curou
até ao fim da vida 16. Não cremos, porém, que se possa
extrair tal juízo dos passos invocados, pois o culto afonsino era
demasiado vivo em Santa Cruz para a memória do rei ser acusada do pecado
filial da crueldade. A vitória de S. Mamede seria apenas o castigo devido
pela tentativa que D. Teresa e o conde de Trava tinham feito para meter a
ferros o jovem infante. Não consta que no ambiente dos crúzios
conimbricenses jamais se tenha manifestado qualquer forma de reverência
para com a viúva do conde D. Henrique. Aliás, o cronista põe em relevo
a oposição de D. Afonso e de sua mãe: para o primeiro, «a terra de
Portugal era de seu padre», enquanto para D. Teresa: «minha he a terra e
minha seera ca meu padre elRey dom affonso ma leixou» 17. Reconhece assim
o cronista anónimo que, pela via sucessória, a coroa não podia deixar
de pertencer ao filho varão. Notas: 1. Pierre David, Études
historiques sur la Galice et le Portugal du Vle au XIIe siècle, Lisboa,
1947, pp. 257‑259. 2. Idem, ibidem, p. 259. 3.
Pub. nos Portvgaliae
Monvmenta Historica, Scriptores,
volvmen I, Olisipone, MDCCCLVI, pp. 1‑3. 4.
Ibidem, pp. 3-17. 5.
Ibidem, pp. 10-11. 6.
Ibidem, p. 12. 7.
Ibidem, pp. 17-22. 8.
Ibidem, p. 22. 9.
António Cruz, Santa Cruz
de Coimbra na Cultura Portuguesa da Idade Média, vol. I, Porto, 1964,
pp. 69-78. 10.
Ruy de Azevedo, Documentos
falsos de Santa Cruz de Coimbra (séculos XII e XIII), Lisboa, 1935.
Carl Erdmann, Papsturkunden in Portugal, Berlim, 1927. António
Cruz, ibidem, p. 69. 11.
António Cruz, ibidem,
pp. 43-67. Do século XV existe uma tradução deste códice: ibidem,
pp. 149-173. 12.
Portvgaliae Monvmenta
Historica, Scriptores, pp. 93-95. 13.
Ibidem, ibidem, pp.
22-23 e 23-32. 14.
Ibidem, ibidem, p. 22. 15.
Ibidem, ibidem, p. 29. 16.
António José Saraiva, História
da Cultura em Portugal, vol. I, Lisboa, 1950, p. 158. «Registos analísticos e cronicões» in Joaquim Veríssimo Serrão, A Historiografia Portuguesa, Doutrina e Crítica, vol. I: Séculos XII-XVI, Lisboa, Editorial Verbo, 1971; págs. 14 - 21.
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