John Locke
ENSAIO SOBRE O GOVERNO CIVIL
CAPÍTULO
VIII.
DO
PRINCIPIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS. 95. Sendo todos os
homens, como já se disse, naturalmente livres, iguais, e independentes,
ninguém pode ser posto fora deste estado e sujeito ao poder 96. Porquanto, quando
qualquer número de homens estabelece com consentimento de cada indivíduo
uma sociedade civil, eles por esse facto constituem essa sociedade como um
corpo com poder de obrar como tal, o que é unicamente pela vontade e
determinação da maioria: porquanto, sendo o consentimento dos seus indivíduos
unicamente o que dirige a sociedade, é necessário que essa sociedade, que
é um corpo só, se mova para aquela parte pura onde a maior força o conduz,
a qual é o consentimento da maioria: do contrário, é impossível poder
obrar, ou continuar a ser um corpo, uma comunidade, em que consentiu cada
individuo que entrou nela; portanto, todos estão obrigados em consequência
desse consentimento a ser governados pela maioria. E por isso nós vemos que
nas assembleias autorizadas a obrar por meio de leis positivas, quando a lei
positiva que os autoriza não determina número certo, o acto da maioria
passa como acto do todo, e por conseguinte decide como se tivesse pela lei
natural e da razão o poder do todo. 97. Portanto todo o
homem pelo acto de convir com outros em formar um corpo político debaixo dum
governo, se obriga para com cada um dos dessa sociedade a se submeter à
determinação da maioria, e de ser governado por ela; ou alias este pacto
original, por meio do qual ele se incorpora com outros numa sociedade, não
valeria coisa alguma, e não seria pacto, se ele tivesse sido deixado livre,
e sujeito a nenhuns outros vínculos ou obrigações que aquelas que ele
tinha no estado natural. Que aparência pois podia haver dum pacto ou
promessa, se as determinações da sociedade o não obrigassem a mais do que
àquilo que ele mesmo julgasse conveniente, e a que tivesse prestado o seu
consentimento? Isto seria ter uma liberdade tão grande como a que ele tinha
antes de ter feito o pacto, ou como tem qualquer outro no estado natural, o
qual se pôde submeter e consentir a quaisquer dos seus actos, se o julgar a
propósito. 98. Porquanto, se o
consentimento da maioria se não receber como o acto do todo, e não abranger
a todo o indivíduo, nenhuma outra coisa, que não seja o consentimento de
cada indivíduo, pode fazer o acto do todo: porém um consentimento tal é
imediato ao impossível, considerando nós as enfermidades, e as imensas
ocupações que num número ainda mesmo muito menor que o duma república,
necessariamente apartam a muitos da assembleia publica. E se nós
acrescentar-mos a isto a variedade de opiniões e a contrariedade de
interesses, que existem inevitavelmente em todos as corporações de homens,
o entrar para a sociedade debaixo de tais cláusulas seria somente como a
entrada de Catão no teatro, unicamente para tornar a sair. Uma constituição
tal como esta faria o poderoso leviatã duma duração mais curta do que as
criaturas as mais fracas; e não o deixaria passar além do dia em que
nasceu: o que se não pode supor enquanto não julgar-mos que as criaturas
racionais desejam e constituem sociedades unicamente para se dissolverem:
porquanto, aonde a maioria não pôde dirigir o resto, aí não podem obrar
como um corpo só, e por consequência se dissolverão imediatamente outra
vez. 99. Por conseguinte,
deve-se entender que todo aquele que sair do estado natural para se unir em
sociedade civil, cede todo o poder que for necessário aos fins para que ele
se uniu à maioria da sociedade, salvo se eles convierem expressamente em
algum número maior do que o da maioria. E isto acontece pelo simples acto de
convir em se unir em sociedade política, o que vem a ser todo o pacto que há,
ou que é preciso entre os indivíduos que fazem ou compõem uma república.
Portanto, aquilo que dá princípio e com efeito constitui uma sociedade
politica, não é outra coisa mais do que o consentimento de qualquer número
de homens livres, que tem o uso da razão para se unirem e incorporarem numa
sociedade tal. E é isto o que, e somente isto o que deu ou podia dar
principio a todo e qualquer governo legitimo. 100. Acho duas objecções
feitas contra isto. Primeira. Que na historia se
não acham exemplos duma companhia de homens independentes e iguais entre si
que se encontrassem, e que começassem e estabelecessem um governo desta
maneira. Segunda. Que é contra todo
o direito que homens assim fizessem, por isso mesmo que nascendo todos os
homens debaixo dum governo, eles se lhe devem submeter e não têm a
liberdade de começar um de novo. 101. Em resposta à
primeira direi, que não é de admirar que a história nos dê uma relação
tão limitada dos homens que viverão juntos no estado natural. As inconveniências
daquele estado, o amor e a necessidade da sociedade, logo que uniu alguns
deles, imediatamente os incorporou, se é que eles tinham intenção de
continuar a viver juntos. E se acaso nós não podemos supor que os homens
estivessem jamais no estado natural, por ter-mos poucas notícias deles nesse
estado, podemos igualmente supor que os exércitos de Salmanassar ou de
Xerxes nunca foram meninos, por isso mesmo que temos pouca notícia deles
antes de serem homens e estarem incorporados em exércitos. O governo é em
toda a parte anterior à memoria dos homens, e as letras de ordinário não
se introduzem num povo senão depois de ter existido por muito tempo em
sociedade civil, e de ter cuidado noutras artes mais necessárias para a sua
segurança, bem estar, e abundância: e é então que ele começa a indagar a
história dos seus fundadores, e a examinar a sua origem, quando tem
sobrevivido à sua memória: pois acontece às repúblicas, bem como às
pessoas particulares, o ignorarem, normalmente as suas próprias origens e
infâncias: e se sabem alguma coisa da sua origem, elas o devem às memórias
acidentais que outros têm conservado a tal respeito. E aquelas que nós
temos do começo das diferentes formas de governos que tem havido, à excepção
da dos Judeus, aonde o mesmo Deus se interpôs imediatamente, e que não
favorece de maneira alguma o domínio paternal, são todas ou exemplos claros
dum principio tal qual eu mencionei , ou ao menos. tem sinais evidentes
disso. 102. Na verdade, é
bem notável a inclinação de negar a matéria evidente do facto quando se não
conforma com a hipótese daquele que não quer conceder que a origem de Roma
e Veneza começou pela união dalguns homens livres e independentes uns dos
outros, e entre os quais não havia sujeição ou superioridade alguma
natural. E se dermos crédito ao que diz Joseph Acosta, em muitas partes da
América não havia qualidade alguma de governo. «Há grandes e evidentes
conjecturas,» diz ele, «que estes homens,» falando dos do Peru, «por
muito tempo não tiveram nem Reis nem Repúblicas, mas andavam em bandos,
como andam hoje em dia na Florida os Cheriquanas, os do Brasil, e outras
muitas nações, que não têm Reis certos, mas, segundo o exige a paz ou a
guerra, assim escolhem os seus capitães segundo lhes parece,» lv. 1. c.25.
Se se disser que aí todo o homem nasceu sujeito a seu pai, ou ao chefe da
sua família, que a sujeição que um filho deve a seu pai não o privou da
liberdade de se unir aquela sociedade política que lhe pareceu; isso já está
demonstrado. Mas, seja como for, é claro que estes homens eram com efeito
livres: e não obstante qualquer superioridade que alguns políticos
constituiriam presentemente em qualquer deles, eles mesmos não a pretendiam;
mas eram todos iguais por consentimento, até que pelo mesmo consentimento
estabeleceram governantes sobre si mesmos. De maneira que todas as suas
sociedades políticas procederam duma união voluntária, e do consentimento
mútuo de homens que obraram livremente na escolha de seus governadores e
forma do seu governo. 103. E eu espero que se
concederá que aqueles que se apartaram de Esparta com Palantus, mencionados
por Justino, lv. 3. c. 4, foram homens livres e independentes uns dos outros,
e que estabeleceram por seu próprio consentimento um governo sobre si
mesmos. Tenho pois referido vários exemplos tirados da história, de povos
livres que estando no estado natural, e encontrando-se, se incorporaram, e
principiaram uma república. E se a falta de tais exemplos servir de
argumento para provar que o governo não principiou, nem podia principiar
assim, julgo que os defensores do império paternal fariam melhor em não a
mencionar do que, servir-se dela contra a liberdade natural. Porquanto, se é
que eles podem referir outros tantos exemplos tirados da história, de
governos começados no direito paternal, julgo (ainda que segundo a boa razão,
um argumento do que tem sido, para o que por direito devia ser, não tem
grande força,) que se podia, sem grande risco, ceder-lhes a causa. Se me
fosse porém permitido aconselhá-los sobre o caso, eles fariam bem em não
examinar demasiadamente na origem dos governos o modo porque eles
principiaram de facto, a fim de não descobrirem na fundação da maior parte
deles alguma coisa muito pouco favorável ao intento que eles favorecem, e a
um poder tal qual eles defendem. 104. Tendo nós porém
claramente mostrado que os homens são naturalmente livres, e os exemplos
tirados da história mostrando-nos que os governos do mundo que começaram em
paz tinham firmado o seu princípio nesse alicerce, e foram feitos por
consentimento do povo; pouco lugar pode haver para duvidar em que consiste o
direito, ou qual tem sido a opinião ou prática do género humano sobre a
primeira formação dos governos. 105. Eu não negarei,
que se nós indagar-mos a origem das repúblicas tanto quanto a história nos
encaminha, geralmente as acharemos debaixo do governo e administração dum só
homem. E também me inclino a crer que aonde uma família era assaz numerosa
para subsistir por si só, e que continuou a viver toda junta sem se unir com
outras, como acontece frequentemente naquela partes aonde há muito terreno e
pouco povo, o governo começou comummente no pai. Porquanto, tendo o pai pela
lei natural o mesmo poder que tem qualquer outro homem para punir, segundo
ele julgar que é justo, quaisquer ofensas contra essa lei, podia por essa
razão punir os seus filhos transgressores, mesmo depois de serem homens e
estarem fora da sua tutela; e é muito provável que eles se sujeitassem ao
seu castigo, e que todos eles se unissem alternadamente com ele contra o
transgressor, dando-lhe por este meio o poder de executar a sua sentença
contra qualquer transgressão, e fazendo-o deste modo o legislador e
governante de todos os que estavam em conjunção com a sua família. Ele era
aquele em quem mais se podia confiar; pois que a afeição paternal segurava
a sua propriedade e interesses debaixo de seu cuidado; e o costume de lhe
obedecer na sua infância inclinava-os antes à sujeição do pai do que à
doutro qualquer. Porquanto se é preciso que eles tenham um homem que os
governe, pois que o governo mal se pôde evitar entre homens que vivem
juntos, quem mais provável e próprio para o ser do que aquele que é o seu
pai comum, excepto se a negligência, crueldade, ou qualquer outro defeito da
mente ou do corpo, o fez incapaz para isso? Mas quando acontecesse morrer o
pai, e deixar o seu herdeiro imediato com pouca ou nenhuma capacidade para
governar, por falta de idade, saber, coragem, ou quaisquer outras qualidades;
ou quando algumas famílias se ajuntaram e consentiram em continuar a viver
juntas; não se pode duvidar que então eles se serviram da sua liberdade
natural para eleger aquele que julgaram o mais hábil, e o mais capaz para os
governar bem. Semelhante a isto achamos aqueles povos da América, que,
vivendo fora do alcance das espadas vencedoras e crescente dominação dos
dois grandes impérios do Peru e México, gozaram a sua liberdade natural, e
ainda que, coetereis paribus, eles comummente preferem o herdeiro do
seu Rei defunto; todavia se eles o acham fraco ou incapaz, então não fazem
caso dele, e elegem para seu director o homem mais robusto, o mais bravo, e o
mais capaz. 106. Portanto, não
obstante ver-mos, se examinarmos tanto quanto poder-mos as memórias acerca
do princípio da povoação do mundo, e a História das nações, que o
governo estava comummente num só homem; todavia isso não torna fútil
aquilo que eu armo, viz. que o princípio da sociedade politica depende dos
indivíduos consentirem em se unir e fazer uma sociedade; a qual, quando eles
assim e acham incorporados, pode estabelecer aquela forma de governo que
melhor lhe parecer. Sendo isto porem o que deu lugar a que os homens se
enganassem, e julgassem que o governo era naturalmente monárquico, e que
pertencia ao pai, não será fora, de propósito examinar-mos neste lugar a
razão porque no principio o povo escolheu geralmente esta forma de governo ;
e ainda que fosse talvez a preeminência do pai o que lhe deu lugar na
primeira instituição dalgumas republicas, e que no principio instituiu o
poder num só homem; todavia é claro que a razão porque se continuou com a
forma do governo duma única pessoa não era por atenção ou respeito à
autoridade paternal; visto que todas as monarquias pequenas, que são quase
todas elas, foram quase no seu principio comummente electivas, ou pelo menos
em algumas ocasiões. 107. No principio
pois, o governo que o pai exercia sobre os seus meninos tendo-os acostumado
ao governo dum só homem, e ensinando-lhes que ele, quando se exercia com
cuidado e habilidade, com afabilidade e amor para com os que lhe estão
sujeitos, era suficiente para procurar e dar aos homens toda a felicidade
politica que eles procurarão na sociedade; não é para admirar que eles
escolhessem, e naturalmente estabelecessem aquela forma de governo, à qual
eles tinham estado acostumados desde a sua infância, e que por experiência
tinham achado não só cómoda como também segura. E se acrescentar-mos a
isto, que a monarquia sendo simples e a mais clara para os homens, a quem nem
a experiência tinha instruído sobre as formas de governo, nem a ambição
ou arrogância do império tinha ensinado a se acautelarem das usurpações
da prerrogativa, ou das inconveniências do poder absoluto; não era de
admirar que eles não cuidassem muito em pensar sobre os meios de restringir
quaisquer exorbitâncias daqueles a quem tinham dado autoridade sobre si, e
de pôr em equilíbrio o poder do governo, constituindo algumas das suas
partes em diversas mãos., Eles ainda não tinham sentido a opressão do domínio
tirânico, nem o espírito do século, nem as suas possessões, ou maneira de
viver, (o que pouco motivo dava à cobiça ou ambição,) lhes deu motivo
algum para o temer ou prevenir: e por isso não é de admirar que eles se
constituíssem debaixo duma tal forma de governo, a qual não somente era,
como já disse, a mais clara e simples,
mas também a mais própria para a sua condição e estado presente, que
tinha mais necessidade de defesa contra as ofensas e invasões externas do
que de multiplicidade de leis. .A igualdade de uma simples e humilde maneira
de viver, limitando os seus desejos dentro dos estreitos limites da pequena
propriedade de cada um, causou poucas controvérsias, e por isso não eram
precisas muitas leis para as decidir, nem muitos funcionários para
superintender os processos, ou fazer executar a justiça, aonde havia poucas
ofensas e poucos ofensores. E como se não pôde deixar de supor que entre
aqueles que se estimam mutuamente a ponto de se unirem em sociedade há algum
conhecimento e amizade, e alguma confiança uns nos outros; por isso o seu
primeiro cuidado e pensamento não podia ser senão sobre o modo porque eles
se deviam segurar contra a força externa: e por conseguinte era-lhes natural
o constituírem-se debaixo daquela forma de governo, que melhor lhes pudesse
servir para esse fim; e escolherem o homem mais sábio e o mais bravo para os
conduzir nas suas guerras, e capitaneá-los contra os seus inimigos; no que
consistia principalmente o seu governo. 108. Porquanto, nós
vemos que os Reis dos Índios da América são, o que é ainda uma amostra
dos primeiros séculos da Ásia e da Europa, enquanto os habitantes eram
demasiadamente poucos para o país, e a falta do povo e do dinheiro não
incitou os homens a alargar as suas possessões de terreno, nem causou
disputas por maiores extensões de herdades, pouco mais que generais de seus
exércitos; ; e ainda que eles na guerra comandam com poder absoluto; todavia
em casa e em tempo de paz exercem uma jurisdição muito limitada, e tem uma
soberania muito moderada; pois que de ordinário as resoluções de paz e
guerra estão ou no povo ou num concelho; ainda que a guerra, a qual não
admite a pluralidade de governantes, se devolve naturalmente por si mesma à
única autoridade do Rei. 109. E assim, até
mesmo em Israel, a principal ocupação dos seus juízes e primeiros Reis
parece ter sido a de capitães na guerra e chefes de seus exércitos, o que
(além do que se declara nas palavras, «saindo e entrando diante do povo,»
o que era para marchar para a guerra, e depois para casa, à frente das forças,)
claramente se vê da história de Jefté. Os Amonitas fazendo a guerra a
Israel, os Gaaladitas com medo mandam a Jefté um bastardo da sua família,
que eles tinham expulso, para estipular com ele, se ele queria assisti-los
contra os Amonitas, e para o fazer o seu chefe; o que eles fazem nestas
palavras, «e o povo fê-lo seu cabeça e capitão,» [«O povo nomeou-o
chefe e comandante», na tradução contemporânea] Juízes XI, 11 2,
o que era, segundo parece, o mesmo que ser juiz. «E ele julgou Israel» [ou
«Jefté foi juiz em Israel durante seis anos»] Juízes XII, 7, isto é,
era o seu capitão-general, «seis anos.» Assim quando Joatão exprobra aos
Sechemitas a obrigação que eles deviam a Gedeão, o qual tinha sido o seu
juiz e director, ele diz-lhes, «ele bateu-se por vós, arriscou grandemente
a sua vida, e vos libertou do poder de Madiã,» [«O meu pai lutou por vós
e até arriscou a vida para vos livrar do poder de Madiã.»] Juízes IX,
17. Nada se menciona dele senão aquilo que ele fez como general; e com
efeito isso é tudo o que se acha na sua história, ou na de qualquer dos
outros juízes. E Abimelec é o que com particularidade é chamado Rei, ainda
que quando muito era unicamente seu general. E no tempo em que os filhos
Israel, estando enfadados da má conduta dos filhos de Samuel, desejarão hum
Rei, «à semelhança de todas as nações, para os julgar, marchar à sua
frente, e dirigir as suas batalhas,» [«seremos também como as outras nações:
o nosso rei governar-nos-á, irá à nossa frente para comandar as nossas
guerras.»] 1.º Livro de Samuel VIII, 20. Deus concedendo-lhes o seu
desejo, diz a Samuel, «Eu vos mandarei um homem, e tu o ungirás para ser
capitão do meu povo Israel, a fim de que ele possa livrar o meu povo do
poder dos Filisteus,» [«vou mandar-te um homem da terra de Benjamim. Tu
ungi-lo-ás como chefe do meu povo Israel, e ele libertará o povo do poder
filisteu«] 1 Sam IX, 16, como se a única ocupação dum Rei tivesse
sido a de capitanear os seus exércitos, e pelejar em sua defesa; e tanto
assim que no acto da sua inauguração, lançando sobre ele um vaso de
azeite, ele declara a Saúl que «o Senhor o tinha ungido para ser capitão
da sua herança,» [«Eis o sinal de que Javé te ungiu como chefe da sua
herança»] cap. X. ver. 1. E por isso aqueles que, depois de Saúl ter
sido solenemente escolhido e saudado por seu Rei pelas tribos em Mispah,
estavam com repugnância de o aceitar por seu Rei, não fazem outra objecção
senão esta, «Como é que este homem nos há de salvar ?» [«Como é que
este indivíduo nos poderá salvar»] ver. 27, como se eles dissessem, «Este
homem é incapaz de ser nosso Rei, não tendo nem habilidade bastante, nem
perícia da guerra para nos poder defender.» E quando Deus se resolveu a
transferir o governo para David, é nestas palavras, «Mas agora o teu
reinado não há de continuar: o Senhor procurou-lhe hum homem da sua
escolha, e o Senhor lhe ordenou de ser capitão do seu povo,» [«Agora,
porém, o teu reinado não se firmará. Javé encontrou um homem conforme o
seu coração e nomeou-o chefe do seu povo»] cap. XIII, ver. 14. Como se
toda a autoridade de Rei não consistisse em outra coisa senão o de ser
general: e por isso as tribos que se tinham unido à família de Saúl, e
oposto ao reinado de David, quando vieram a Hebron com termos de submissão a
ele, elas dizem-lhe, que alem doutras razões que elas tinham para se lhe
submeterem como a seu Rei, ele com efeito era o seu Rei no tempo de Saúl, e
que por isso elas não tinham razão alguma para agora deixarem de o receber
como tal. «Também,» dizem elas, «noutro tempo, quando Saúl era nosso
Rei, tu foste o que nos conduzistes para fora, e que nos trouxeste para
Israel; e o Senhor te disse, tu sustentarás o meu povo Israel, e serás o
capitão de Israel. 110. Portanto, quer
uma família chegasse, por degraus a fazer uma república, e a autoridade
paternal continuasse no filho mais velho, crescendo cada um por sua vez
debaixo dela, e submetendo-se-lhe tacitamente, a sua facilidade e igualdade não
ofendendo a pessoa alguma, todos se acomodaram, até que o tempo pareceu tê-la
confirmado, e estabelecido o direito de sucessão por prescrição: quer várias
famílias, ou os descendentes de várias famílias, a quem o acaso, vizinhança,
ou ocupação juntou, constituindo todos uma sociedade, a falta dum general,
cuja conduta os pudesse defender na guerra contra os seus inimigos, e a
grande confiança, a inocência e sinceridade daquela pobre mas virtuosa época,
(tais são quase todas aquelas que principiam governos, cuja duração porém
é sempre curta,) que os homens tinham uns nos outros, fizesse com que os
primeiros principiantes de republicas dessem geralmente a administração a
hum só homem, sem mais limitação ou restrição expressa do que aquela que
a natureza da coisa e fita do governo exigia: é certo que o primeiro que no
princípio entregou a administração a uma pessoa só, não lha confiou senão
para o bem e segurança publica, e para esse fim comummente a usaram nas infâncias
das repúblicas. E se aqueles que tinham esta administração não tivessem
assim feito, as sociedades principiantes não podiam ter subsistido: sem uns
tais pais criadores, afáveis e cuidadosos do bem público, todos os governos
teriam perecido com as fraquezas e enfermidades da sua infância, e o mesmo
Príncipe teria perecido em pouco tempo juntamente com o povo. 111. Porém, ainda
que a idade de ouro (antes que a ambição vã, e, amor sceleratus habendi,
a depravada concupiscência tivesse pervertido as mentes humanas no erro do
verdadeiro poder e honra) tinha mais virtude, e por consequência melhores
governantes, bem como súbditos menos viciosos; e não havia então
prerrogativa que oprimisse o povo; nem por conseguinte disputa alguma sobre
privilégio para diminuir ou restringir o poder do magistrado; e por isso
nenhuma contenda entre os directores e o povo acerca dos governantes ou
governo; todavia, nas idades futuras 3 quando a ambição e
luxúria queria reter e aumentar o poder, faltando aos fins para que ele foi
dado, e, auxiliada pela lisonja, ensinou aos Príncipes a ter interesses
distintos e separados dos de seu povo, os homens então julgaram necessário
examinar com mais cuidado a origem e direitos do governo; e de excogitar
meios para restringir a exorbitância, e prevenir os abusos daquele poder,
que eles tinham confiado nas mãos doutrem unicamente para o seu próprio
bem, mas que se usava e empregava em seu prejuízo. 112. Portanto, é
muito provável que o povo, que era naturalmente livre, e que por seu
consentimento próprio ou se sujeitou ao governo de seu pai, ou de diferentes
famílias se uniu debaixo dum governo, constituísse geralmente a administração
nas mãos dum só homem, e escolhesse o governo duma única pessoa, sem ao
menos limitar ou regular o poder por meio de condições expressas; pois que
o julgou bastantemente seguro na sua honestidade e prudência; não obstante
ele nunca ter sonhado que a monarquia era jure divino, o que nós
nunca ouvimos entre o género humano, senão depois que a divindade deste
ultimo século no-lo revelou; nem ter jamais reconhecido no poder paternal o
direito de domínio, ou a base de todo o governo. Portanto isto é assaz para
provar, que até onde a historia nos esclarece, nós temos razão para
concluir, que todo o governo que teve princípios pacíficos foi fundado no
consentimento do povo: digo pacíficos, porque em outro lugar terei a ocasião
de falar da conquista, a qual é tida por alguns como hum meio de principiar
os governos. A outra objecção que eu
acho proposta contra o princípio das sociedades politicas é esta, viz. 113. Que nascendo
todos os homens debaixo dum governo qualquer, é impossível que quaisquer
deles estivessem livres em tempo algum, e em liberdade de se unir uns com os
outros, e começar hum de novo, ou que chegassem em tempo algum a poder
erigir um governo legítimo. Se acaso isto é um bom
argumento, pergunto como é que se introduziram tantas monarquias legítimas?
Porquanto, se qualquer, debaixo desta suposição, for capaz de me mostrar um
único homem, que em qualquer século do mundo estivesse livre para
principiar uma monarquia legitima; eu me obrigo a mostrar-lhe outros dez
homens livres com liberdade de se unir e principiar hum governo novo debaixo
duma forma monárquica, ou de qualquer outra: pois que é evidente, que se
alguém há, nascido debaixo do domínio doutrem, que seja tão livre que
tenha o direito de governar outros num império novo e distinto; todo aquele
que é nascido debaixo do domínio doutro pode ser igualmente tão livre como
ele, e pôde por consequência vir a ser hum governante ou súbdito dum
governo distinto e separado. Portanto, segundo este princípio, ou todos os
homens, nascidos de qualquer maneira, são livres, ou então não há no
mundo senão hum Príncipe, e um governo legítimo. E em tal caso, aqueles
que fazem a objecção não tem mais nada a fazer do que mostrar-nos
simplesmente quem é esse Príncipe e esse governo: e logo que o tiverem
feito, eu não duvido que então todo o género humano convirá em lhe
obedecer. 114. Não obstante
ser uma resposta suficiente para a objecção deles o mostrar, que ela os
envolve nas mesmas dificuldades que envolve aqueles contra quem eles a usam;
todavia, eu me esforçarei a patentear mais alguma coisa a fraqueza deste
argumento. Todos os homens, dizem eles,
nascem debaixo dum governo; e por isso não podem ter a liberdade de
principiar hum de novo. Todo o homem nasce sujeito a seu pai, ou a seu príncipe;
e por isso está debaixo do vínculo perpétuo de sujeição e obediência.
É bem claro que o género humano sem seu próprio consentimento nunca
reconheceu nem considerou tal sujeição natural em que ele nasceu, ou em
respeito a um, ou em respeito ao outro, como uma sujeição a ele e a seus
herdeiros. 115. Porquanto, não
há na história tanto profana como sagrada exemplos mais frequentes do que
aqueles dos homens se apartarem da obediência e jurisdição do governo
debaixo de que nasceram, ou da família e sociedade em que foram educados, e
de estabelecerem governos novos em outros lugares; donde procederam tantas
repúblicas pequenas; as quais foram sempre aumentando, enquanto houve espaço
bastante, até que o mais forte, ou o mais afortunado, absorveu o mais fraco;
e essas grandes repúblicas desfazendo-se outra vez, constituíram de novo
domínios menores. O que tudo são depoimentos contra a soberania paternal, e
provam claramente que não foi o direito natural que estabeleceu no princípio
os governos; visto que era impossível que sobre essa base pudessem ter
havido tantos domínios pequenos: tudo deveria ser uma única monarquia
universal, se os homens não tivessem tido a liberdade de se separar das suas
famílias e do governo, fosse ele qual, fosse, que estava estabelecido, e de
constituir repúblicas e governos distintos, segundo eles julgaram
conveniente. 116. Esta tem sido a
prática do mundo desde o seu princípio até hoje. E o ser nascido
presentemente debaixo de estabelecidas e antigas sociedades políticas, que
estabeleceram leis e formas de governo, não impede mais a liberdade do género
humano, do que se ele fosse nascido nos bosques entre os desenfreados
habitantes que neles andam vagueando. Porquanto, aqueles que nos querem
persuadir que o acto de nascer-mos debaixo dum governo nos sujeita
naturalmente a ele, e que não temos direito ou pretensão alguma à
liberdade do estado natural, não tem outra razão a dar, excepto a do poder
paternal, (a que nós já respondemos) senão que nossos pais ou progenitores
cederam a sua liberdade natural, e que por esse facto se obrigaram a si
mesmos e à sua posteridade a uma sujeição perpétua, ao governo, a que
eles mesmos se submeteram. É verdade que todo o homem está obrigado a
cumprir com os pactos e promessas que fez por si; mas não pode por meio de
pacto algum obrigar a seus filhos ou posteridade: porque, sendo o seu filho,
quando já homem, tão livre como o pai, ele não tem mais direito a ceder a
liberdade do filho do que a doutro qualquer. Ele pode na verdade anexar à
terra, que possui como súbdito de alguma república, condições tais, que
obriguem a seu filho a pertencer a essa república, uma vez que ele queira
desfrutar as possessões que foram de seu pai; pois que sendo essas possessões
propriedade de seu pai, ele pode dispor delas segundo lhe agradar. 117. E isto é o que
geralmente tem dado lugar a se errar sobre este assunto; porque, não
permitindo as repúblicas o desmembramento de parte alguma de seus domínios,
nem que os outros, que não pertencem à sua sociedade, a possuam, o filho de
ordinário não pode desfrutar os bens de seu pai senão debaixo das mesmas
condições com que este os desfrutou, i. e. fazendo-se membro da
sociedade; por meio do que, ele fica tão sujeito ao governo que aí acha
estabelecido, como qualquer outro súbdito dessa república. E assim, sendo o
consentimento dos homens livres nascidos debaixo de um governo, o qual é o
que unicamente os faz seus membros, prestado por cada um em separado, segundo
cada um chega a ter a idade, e não simultaneamente por todos; os homens não
reparam nisso, e julgando que não há tal consentimento, ou que não é
necessário, concluem que eles são naturalmente súbditos, logo que são
homens. 118. É claro porém
que os mesmos governos o entendem doutra maneira: eles não pretendem ter
poder sobre o filho, por o terem sobre o pai, nem têm as crianças como seus
súbditos, por os seus pais o serem. Se um súbdito Inglês tiver em França
um filho duma Inglesa, de quem é ele súbdito? Não do Rei da Inglaterra;
porque ele necessita de licença para ser admitido aos privilégios de súbdito
Inglês; nem do Rei da França; porque se o fosse, que direito tinha seu pai
a tirá-lo de lá, e a educá-lo segundo lhe agradar? E quem é que jamais
foi julgado como traidor ou desertor, se ele deixou ou pelejou contra um país,
por ter simplesmente nascido nele de pais que aí eram estrangeiros?
Portanto, é claro, não só pela prática dos mesmos governos como também
pela lei da recta razão, que um filho não nasce súbdito de país ou
governo algum. Ele está debaixo da tutela e autoridade de seu pai até que
chegue a idade da discrição; e então ele é um homem livre, e tem a
liberdade de se sujeitar àquele governo que ele quiser, e de se unir ao
corpo político que lhe agradar. Porquanto se o filho de um Inglês nascido
em França é livre, e pode assim fazer, é claro que o acto de seu pai ser
um súbdito deste reino o não obriga a coisa alguma; nem tão pouco pacto
algum dos seus antepassados. E qual é então a razão porque seu filho não
há de ter a mesma liberdade, ainda. que ele nasça em qualquer outra parte?
Visto que o poder que um pai tem naturalmente sobre seus filhos é o mesmo
aonde quer que eles nasçam; e que os vínculos da obrigação natural não
estão demarcados pelos limites positivos dos reinos e repúblicas. 119. Sendo todo o
homem, como já se demonstrou, naturalmente livre, e nada sendo capaz de o
sujeitar a poder algum terrestre senão o seu próprio consentimento, deve-se
considerar, que é o que se deve julgar como uma declaração suficiente do
consentimento dum homem para o sujeitar ás leis de qualquer governo. Há uma
distinção comum entre o consentimento tácito e o expresso, o que dirá
respeito ao nosso caso presente. Ninguém duvida que o consentimento expresso
de qualquer homem que entra para qualquer sociedade o faz hum membro perfeito
dessa sociedade, um súbdito desse governo. A dificuldade está em saber o
que é que se deve ter como um consentimento tácito, e até que ponto
obriga, i. e. até que ponto é que se deve julgar que qualquer consentiu, e
se submeteu a algum governo, não tendo ele praticado expressões algumas de
consentimento. E a isto direi eu, que todo o homem que tem alguma possessão,
ou usufruto de qualquer parte dos domínios de algum governo, nos manifesta
por esse facto um consentimento tácito, e está tão obrigado à obediência
das leis desse governo durante tal usufruto como qualquer outro dessa
sociedade ; quer essa sua possessão consista em terra, para ele e seus
herdeiros perpetuamente, ou unicamente num aposento por uma semana; quer
consista em viajar livremente pela estrada: e com efeito esta sujeição
estende-se a tanto quanto é a estada de qualquer dentro dos territórios
desse governo. 120. Para melhor
entender-mos isto, devemos lembrar-nos que todo o homem, quando se incorpora
nalguma república, lhe anexa e sujeita igualmente aquelas possessões que
ele tem, ou que poderá vir a ter, e que já não pertencem a outro governo.
Porquanto seria uma contradição directa o entrar qualquer em sociedade com
outros a fim de segurar e regular a propriedade, e supor todavia que a sua
terra, cuja propriedade deve ser regulada pelas leis da sociedade, havia de
ficar isenta da jurisdição daquele governo a que ele mesmo, o proprietário
da terra, está sujeito. Portanto, aquele mesmo acto que qualquer pratica
para unir a sua pessoa, que dantes era livre, a alguma república; esse mesmo
une igualmente as suas possessões, que dantes eram livres, à mesma república,
e tanto a pessoa como a possessão se constituem sujeitas ao governo e domínio
dessa república enquanto existe. Por isso, todo aquele que depois dum tal
acto possuir, por herança, compra, permissão, ou por outras quaisquer vias,
qualquer parte da terra que estiver anexa, e pertença aos domínios dessa
república, deve recebê-la com a condição que lhe está anexa ; a qual vem
a ser, a de se submeter ao governo da república, debaixo de cuja jurisdição
ele se acha, tanto quanto o está qualquer súbdito dela. 121. Porém, como o
governo tem uma jurisdição directa unicamente sobre a terra, e se estende
ao seu possuidor, (antes dele se ter com efeito incorporado à sociedade,)
somente enquanto ele a habita e desfruta; a obrigação que tem qualquer, em
virtude de tal usufruto, de se submeter ao governo, principia e acaba com o
usufruto; de maneira que em qualquer tempo que o proprietário, que não deu
ao governo senão um tal consentimento tácito, deixar, por doação, venda,
ou por outra qualquer maneira, a dita possessão, tem a liberdade de se
ausentar, e de incorporar-se a qualquer outra república, ou de convir com
outros em principiar uma de
novo, in vacuis locis, em qualquer parte do mundo que eles achem livre
e desocupada. Pelo contrário porem, aquele que uma vez prestou o seu
consentimento, por meio de qualquer convenção ou declaração expressa,
para pertencer a alguma república, está perpétua e indispensavelmente
obrigado a ser e permanecer inalteravelmente sujeito a ela, e nunca mais pode
estar na liberdade do estado natural; excepto se por alguma calamidade o
governo a que ele estava sujeito vem a dissolver-se, ou se ele for excluído
por algum acto público.
Notas: 2. As transcrições
das Bíblia são acompanhadas da tradução actual, utilizando-se para isso a
edição pastoral da Bíblia Sagrada, 4.ª ed., Lisboa, Paulus, 1993.
Actualmente utilizam-se os numerais árabes e não os latinos para citar os
capítulos, mas decidiu-se manter a notação original. 3. «Quando no principio se estabeleceu alguma espécie de regime, talvez que então se não fizessem regras algumas para dirigir o governo, mas que tudo dependesse da capacidade e discrição dos governantes, até que eles por experiência conheceram os inconvenientes que resultavam desta forma de governo de maneira que aquilo que eles inventaram para remédio, não fez senão aumentar a chaga que devia ter curado. Eles conheceram que o viver segundo a vontade dum só homem era a causa da miséria de todos os homens. Isto obrigou-os a fazer leis por meio das quais os homens todos pudessem conhecer de antemão a sua obrigação, bem como os castigos da sua transgressão.» - Hooker, Eccl. Pol., lib. 1, § 10. (nota do autor)
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