John Locke
ENSAIO SOBRE O GOVERNO CIVIL
CAPÍTULO
II.
DO ESTADO NATURAL. 4. Para se poder bem
entender o poder político, derivá-lo da sua origem, devemos saber qual é o
estado natural do homem, o qual é hum estado de perfeita liberdade de
dirigir as suas acções, e dispor dos seus bens e pessoas segundo lhe
aprouver, observando simplesmente os limites da lei natural, sem pedir licença,
ou depender da vontade de pessoa alguma. Um estado de igualdade, onde
toda a jurisdição e poder são recíprocos, não tendo um mais do que o
outro; não havendo nada mais claro, do que ver que os entes da mesma espécie
e ordem, nascidos todos para as mesmas vantagens da natureza, e para o uso
das mesmas faculdades, devido ser também iguais entre si, sem subordinação
ou sujeição; salvo se o Senhor de todos eles tivesse, por uma declaração
manifesta da sua vontade, posto hum. acima do outro, e conferido por li uma
nomeação evidente e clara, hum direito indubitável ao domínio e
soberania. 5. Esta igualdade natural
dos homens é considerada pelo judicioso Hooker tão evidente em si, e tão
fora de toda a questão, que ele a reputa como fundamento da obrigação do
amor natural entre todos os homens, sobre o qual estabelece as mutuas obrigações
que eles se devem reciprocamente, e donde deriva a grande máxima de justiça
e caridade. As suas palavras são: «A mesma indução natural tem dado a
conhecer aos homens, que não é menor a obrigação de amar os outros, do
que a de amar a si mesmos; pois vendo eu que aquelas coisas que são iguais
devem ter necessariamente todas a mesma medida, se eu não posso deixar de
desejar receber o bem, tanto quanto está no poder de outro, como qualquer
homem pôde desejar para si mesmo, com que direito devia eu esperar ver
realizar-se qualquer parte deste meu desejo, uma vez que eu da minha parte não
tenha o cuidado em satisfazer o mesmo desejo, que indubitavelmente se acha
nos outros homens, sendo eles duma e a mesma natureza ? Oferecendo-se-lhes
alguma coisa repugnante a este desejo, necessariamente os deve ofender em
todos os respeitos tanto como a mim, de maneira que se eu fizer algum mal, eu
devo esperar sofrer, não havendo razão alguma para que os outros me mostrem
maior excesso de amor, do que aquele que por mim lhes tem sido mostrado por
isso o desejo que tenho de ser amado pelos meus iguais, tanto quanto possa
ser, me impõe hum dever natural de ter para com eles a mesma afeição, de
cuja relação de igualdade entre nós e eles, que são como nós mesmos,
quais sei: diferentes regras e normas, que a razão natural tem mostrado para
direcção da vida, nenhum homem ignora." - Eccl. Pol., lib. I. 6. Porém ainda que este
seja um estado de liberdade, não é contudo um estado de licença; e ainda
que o homem naquele estado tem uma liberdade indisputável para dispor da sua
pessoa e bens, não a tem todavia para se destruir, nem há criatura alguma
que tenha tal poder, salvo, quando algum uso mais nobre do que a sua simples
conservação o exigir. O estado natural tem uma lei natural para o governar,
a qual obriga a todos: e a razão, que constitui essa lei, ensina a todos os
homens, que a consultarem, que sendo todos iguais e independentes, ninguém
deveria ofender a outro na sua vida, propriedade, liberdade, e saúde. Porque
sendo todos os homens obra dum Criador omnipotente, e infinitamente sábio;
todos criados dum Soberano Senhor, mandados para o mundo por sua ordem, e
para o seu trabalho, são sua propriedade, visto que são sua obra, feitos
para durar segundo o seu prazer, e não segundo o prazer um do outro. E sendo
todos dotados das mesmas faculdades, gozando tolos da mesma comunhão da
natureza, não se pode supor entre nós uma subordinação tal, que nos
autorize a destruir um ao outro, como se nós fôssemos feitos para uso um do
outro, como acontece às criaturas de ordens inferiores em relação a nós.
Todo o homem, assim como é obrigado a conservar-se, e a não abandonar
voluntariamente o seu posto, assim também pela mesma razão, todas as vezes
que a sua própria conservação não correr risco, deve, tanto quanto lhe
for possível, preservar os outros homens e não pode, salvo se for para
punir o transgressor, tirar, ou pôr em perigo, a vida, ou o que diz respeito
à sua conservação, liberdade, saúde, membros, ou bens doutrem. 7. E para que os homens não
infrinjam os direitos uns dos outros, nem se ofendam mutuamente, e se observe
a lei natural, a qual ordena a paz e conservação do género humano, a execução
da lei natural, naquele estado, compete a cada um individualmente, e por
conseguinte cada um tem o direito de punir os seus transgressores, tanto
quanto for necessário para obstar à sua violação: porquanto a lei natural
seria, bem como todas as outras leis que dizem respeito aos homens neste
mundo, de nenhum efeito, se não houvesse pessoa que, no estado natural,
tivesse o poder para pôr em execução essa lei, e por esse meio proteger o
inocente e coibir os ofensores. E se alguém há, que no estado natural pode
punir a outro por qualquer mal que ele tiver feito, cada hum o pode fazer;
porquanto no estado de perfeita igualdade, aonde não há naturalmente
superioridade, ou jurisdição dum sobre o outro, tudo aquilo que a qualquer
for lícito fazer em comprimento daquela lei, é igualmente lícito a todos
os outros. 8. E assim no estado
natural, hum homem adquire poder sobre outro; mas não hum poder absoluto ou
arbitrário para punir um criminoso, quando ele o tem debaixo de seu poder.
segundo as ardentes paixões, ou ilimitada extravagância da sua própria
vontade; mas somente para lhe retribuir, tanto quanto o ditar a pacífica razão
e consciência, aquilo que for proporcionado à sua transgressão o que é
tanto quanto for necessário para reparação e emenda. Porquanto estas são
as únicas razões porque um homem pode legalmente fazer mal a outrem, que é
o que nós chamamos castigo. Na transgressão da lei natural, o ofensor
declara viver segundo uma regra diferente da da razão e igualdade comum, que
é aquela medida que Deus estabeleceu nas acções dos homens, para sua recíproca
segurança; e assim torna-se perigoso ao género humano; pois que despreza e
quebranta aquele vínculo, que Deus estabeleceu às acções dos homens para
os livrar da opressão e violência: o que sendo uma ofensa feita à espécie
inteira, cuja paz e segurança é garantida pela lei natural, todo o homem
debaixo deste fundamento, pelo direito que tem a preservar o género humano
em geral, pode restringir, ou, quando for necessário, destruir as coisas que
lhe são prejudiciais, e por conseguinte causar a qualquer homem, que tiver
transgredido aquela lei, aquele mal, que for suficiente para o fazer
arrepender da sua violação, e dissuadi-lo por esse meio, e com o seu
exemplo aos outros, de cometer a mesma violação. E neste caso e debaixo
deste princípio, todo o homem tem direito de punir o transgressor, e ser o
executor da lei natural. 9. Eu não duvido que esta
doutrina parecera muito estranha a algumas pessoas; mas, antes de a
condenarem, desejo que me mostrem e digam, com que direito qualquer Príncipe
ou Estado pode sentenciar a morte, ou punir qualquer estrangeiro por qualquer
crime que ele tiver cometido no seu pais? É certo que as suas leis, em
virtude de qualquer sanção que elas recebam da promulgada vontade do
legislativo, não obrigam o estrangeiro: elas não são feitas para ele, e
ainda que o fossem ele não é obrigado a obedecer-lhes. A autoridade
legislativa que as faz obrigatórias a todos seus súbditos, não tem poder
sobre o estrangeiro. Aqueles que têm o supremo poder de legislar em
Inglaterra, França, ou Holanda, são em relação a um Índio, como o resto
do mundo, homens sem poder; e por isso, se pela lei natural todo e qualquer
homem não tem poder para punir as ofensas, que contra ela se cometem,
segundo ele desapaixonadamente julgar que o caso requer, eu não vejo como os
magistrados duma sociedade possam punir um membro doutro país; pois que em
relação a ele, eles não podem ter mais poder do que aquele que qualquer
homem naturalmente pode ter sobre outro. 10. Além do crime, que
consiste na violação da lei, e no desvio da recta razão, por meio do qual
um homem se degenera tanto e declara apartar-se dos ditames da natureza
humana, e ser uma criatura prejudicial, há também agravo comum; uma ou
outra pessoa recebe detrimento da sua transgressão; em cujo caso aquele que
recebeu algum dano, tem alem do direito de punição em comum com os outros
homens, um direito particular para exigir do transgressor a indemnização. E
qualquer outra pessoa que achar isto justo, pode também unir-se com a pessoa
ofendida, e assisti-Ia em recuperar do ofensor tanto quanto for necessário
para indemnização do mal que ela sofreu. 11. Destes dois direitos
distintos, um de punir o crime pela ofensa, e evitar a sua repetição, o
qual compete a todos; o outro de receber a indemnização, que somente
compete à parte ofendida, segue-se, que o magistrado, o qual pelo facto de
ser magistrado tem o direito comum de punição depositado nas suas mãos,
pode muitas vezes, quando o bem público não exigir a execução da lei,
perdoar a punição das ofensas criminais por sua autoridade própria ; mas não
pode perdoar a satisfação devida a qualquer particular pelo prejuízo que
ele tem recebido: pois que aquele que tem sofrido o prejuízo, tem direito a
exigir reparação em seu próprio nome, e só ele pode perdoar. A pessoa
ofendida tem o direito de se assenhorear dos bens ou do serviço do ofensor,
por direito da sua própria conservação, visto que todo o homem tem poder
para punir o crime, a fim de prevenir a sua repetição, em consequência da
parte, que ele tem na conservação de todo o género humano, e de fazer tudo
aquilo que a razão ditar para conseguir esse fim. E por isso segue-se, que
todo o homem, no estado natural, tem o poder de matar o homicida, não só
para impedir aos outros o cometimento dum tal delito, que nenhuma reparação
pode compensar, mas também para desviar os homens das tentações do
criminoso, o qual, tendo renunciado à razão, medida comum. e regra que Deus
deu ao género humano, tem pela injusta violência, e morte que cometeu,
declarado guerra contra todo o género humano, e por isso pode ser destruído
como um leão ou tigre, um desses animais ferozes, com quem os homens não
podem ter sociedade alguma, nem segurança. E sobre isto se funda aquela
admirável lei natural, «Aquele que derramar o sangue do homem, pelo homem
será o seu sangue derramado.» E Caim estava tão intimamente convencido que
todo o homem tinha direito a destruir um tal criminoso que depois da morte de
seu irmão, ele diz, «todo aquele que me achar, matar-me-á;» tão impresso
estava aquele direito nos corações de todos os homens. 12. Pela mesma razão o
homem no estado natural, pode punir as menores infracções daquela lei.
Talvez se pergunte, com a pena de morte? Respondo, cada transgressão
pode punir-se até aquele grau, e severidade, que for suficiente para que o
ofensor conheça que é um mau acto, se arrependa, e atemorize os outros de
obrarem semelhantemente. Toda a ofensa que se pode cometer no estado natural,
pode-se igualmente punir nesse mesmo estado, tanto quanto se pode punir numa
república. Pois ainda que eu excederia o meu intento actual, se aqui
entrasse nas particularidades da lei natural, ou nas suas medidas de punição;
todavia, é certo que existe uma tal lei, e essa tão inteligível e clara a
qualquer criatura, ou entendedores de tal lei, como as leis positivas das repúblicas;
ou antes, tanto mais clara, quanto a razão é mais fácil de se entender, do
que as imaginações e intricados artifícios dos homens, seguindo contrários
e ocultos interesses estabelecidos em palavras; e conforme a isto são na
verdade uma grande parte das leis municipais dos países, as quais somente são
justas, quando são fundadas na lei natural, segundo a qual elas devem ser
reguladas e interpretadas. 13. A esta doutrina, viz. [(isto
é)] que no estado natural, todo o homem tem o poder executivo da lei
natural, não duvido, que alguns hão-de objectar, ser contrario à boa razão
que os homens sejam juízes em causa própria, porque o amor próprio os fará
parciais para consigo mesmos e para com seus amigos, e por outro lado, que o
mau génio, paixão, e vingança os fará castigar os outros com demasiado
excesso; do que não se seguirá senão confusão e desordem, e que por isso
Deus, sem dúvida alguma, estabeleceu o governo para coibir a parcialidade e
violência dos homens. Eu muito facilmente concedo que o governo civil é o
remédio próprio para as inconveniências do estado natural, as quais, na
verdade, devem ser grandes, aonde os homens podem ser juízes em causa própria;
porquanto é fácil de conhecer, que aquele que foi tão injusto que ofendeu
a seu irmão, não será tão justo que se condene a si mesmo por isso. Porém,
desejarei que aqueles que fazem esta objecção, se lembrem, que os Monarcas
Absolutos não são senão homens, e se o governo deve ser o remédio
daqueles males que necessariamente se seguem dos homens serem juízes em
causa própria, e por isso o estado natural se não deva tolerar, desejo
saber que qualidade de governo é aquele, e que vantagens tem sobre o estado
natural, em que um homem, governando uma multidão, tem a liberdade de ser
juiz em causa própria, e pode fazer a todos os seus súbditos aquilo que lhe
agradar, sem a menor objecção ou exame da parte daqueles que satisfazem o
seu prazer? E faça ele o que fizer, quer guiado pela razão, quer por
engano, ou paixão, deve ser sofrido; o que na verdade os homens no estado
natural não estão obrigados a sofrer uns aos outros. E se aquele que julga
em causa própria, ou na doutro, julga mal, ele é responsável por isso aos
outros homens. 14. Pergunta-se muitas
vezes, como uma objecção forte, aonde estão, ou se jamais existiram em
algum tempo homens num tal estado natural? Ao que pode por agora servir de
reposta, que como todos os Príncipes e Chefes dos governos independentes,
estão no estado natural, é claro que o mundo nunca esteve, nem estará,
destituído de homens que vivam nesse estado. Eu mencionei todos os Chefes de
repúblicas independentes, quer eles estejam, ou não, em liga com outros;
porquanto nem todo e qualquer pacto põe fim ao estado natural entre os
homens, mas somente aquele por meio do qual eles concordam todos mutuamente
em se unir numa comunidade e fazer um corpo político; os homens podem fazer
entre si outras promessas e tratados, e todavia permanecerem no estado
natural. As promessas e contratos por escâmbio, etc. entre os dois homens na
ilha deserta, mencionados por Garcilasso de la Vega, na sua Historia do
Peru; ou entre hum Suíço e um Índio, nas matas da América, obriga-os
mutuamente não obstante eles estarem perfeitamente no estado natural um para
com o outro. Porque a verdade e boa fé pertence aos homens, como homens, e não
como membros da sociedade.
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