DAS MEMÓRIAS DA CONDESSA DE ATOUGUIA


Relação da vida de D. Mariana Bernarda de Távora, última condessa de Atouguia, filha mais velha dos marqueses de Távora, de Setembro a Janeiro de 1759 - do atentado ao rei D. José até à sua entrada no Convento do Grilo, onde ficará até 1777.

Estas memórias são muito interessantes, pela descrição da vida social da alta nobreza, pela apresentação da relação do padre jesuíta Malagrida com os Távoras, pela compreensão de que nem sempre os sermões versavam só assuntos religiosos mas podiam ter um interesse filosófico, mas também por pôr em causa o que a historiografia portuguesa, baseada em relatos de viajantes estrangeiros, tem escrito sobre a mulher aristocrata do século XVIII, quando afirma que as aristocratas saíam pouco e viviam recatadas. De facto, a liberdade de movimentos da condessa de Atouguia ainda hoje daria que falar !

Nota: As ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».

 

O Patíbulo de Belém

O Patíbulo onde os Távoras foram mortos,
em 13 de Janeiro de 1759.

[A TENTATIVA DE ASSASSINATO DO REI D. JOSÉ, PELO DUQUE DE AVEIRO, E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A FAMÍLIA TÁVORA.]

No dia 3 de Setembro de 1758 levou el-rei D. José um tiro de que eu não soube nada senão cinco dias depois, quando esta infelicidade se começou a romper; na mesma ignorância estiveram meus pais, meus dois irmãos e o Conde de Atouguia. Todos morreram inocentes. Foi em um domingo à noite, e pela manhã do dito dia me tinha eu ido confessar à barraca do Rato que lá tinham os frades de S. Francisco da cidade 1, como costumava em todos os domingos; e à noite fui para casa da minha mãe, onde a maior parte dos dias costumava o Conde de Atouguia ir também, e dali nos recolhíamos ambos para casa; mas neste dia não foi lá, porque se recolheu para casa às Ave Marias 2 pelo que adiante referirei; meu pai veio para casa à noite, não muito tarde; e meu irmão segundo José Maria de Távora  também ali estava connosco. Às dez horas da noite, ou pouco mais, mandei chegar a carruagem para me ir embora para minha casa, e depois de ela chegada, pegou o meu irmão José Maria em um papel, que era um sermão de São Felipe Neri, feito pelo Pde. João Baptista, da Congregação, cujas obras eu não conhecia e me tinha dado o marquês de Louriçal havia dias, para eu admirar. Eu o tinha ali deixado sem o ver, mas começando o dito meu irmão a ler as primeiras regras, gostei tanto dele que deixando estar posta a carruagem, o ouvi ler todo, estando presentes meu pai e mãe que igualmente se agradaram muito da sua discrição e doutrina. O sermão era muito grande, e, quando meu irmão acabou de o ler, vim-me embora para casa, onde achei o Conde de Atouguia, e era quase meia-noite. O Conde me disse: «Ora Você que quando estou em casa da sua mãe, em sendo dez horas da noite está fervendo para vir para casa, hoje que eu me recolhi ás Ave Marias, porque nesta madrugada hei de entrar de guarda 3 na Ajuda e quis fazer contas e governar a casa antes, para a não incomodar, logo hoje é que fez Rosa Divina 4 em casa de seus pais, e veio tão tarde! Como não sabia já em que gastar o tempo chamei os meus filhos e estive entretendo-me com eles, e brincando com o pequeno» (que era o António que tinha treze meses). Eu lhe respondi que por lermos o sermão é que viera àquelas horas, e pedindo logo a ceia para a mesa ceámos e nos fomos deitar, e na madrugada para a segunda feira foi o Conde entrar de guarda na Ajuda e eu de tarde fui para fora. Quando à noite me recolhi, estando ceando só, por o Conde estar de guarda, disse-me o meu escudeiro António Caldeira, que me servia à mesa: «Sabe V. Ex.ª que ontem à noite deram um tiro em Pedro Teixeira 5 e que se foi curar à casa do marquês de Angeja?» Respondi-lhe com verdade que não.

No dia seguinte, que era terça-feira, estando eu em casa da minha mãe cantando ao cravo, e acompanhando-me nele um tocador chamado João Pereira disse-nos: «V. Ex.as sabem que el-rei está sangrado?» Dissemos ambas que não. Acrescentou ele: «Pois está, porque Domingo à noite, estando Sua Majestade conversando com Sebastião José, deu-lhe uma vertigem, que caiu no chão, e por conta dela se sangrou». Respondemos ambas que não sabíamos nada, como assim era; e como se andava então de luto pela Rainha de Castela, irmã de el-rei, minha mãe acrescentou que tanto o não sabíamos, que o marquês de Távora tinha saído de luto. Daí a poucos instantes, que era depois das Avé Marias chegando meu pai a casa, o tal tocador lhe deu também a mesma notícia; meu pai, sem perda de tempo, vestido de grande gala, conforme o uso do Paço quando se sangram as pessoas reais, foi logo ao Paço saber de Sua Majestade, e tornando para casa com brevidade, disse que vinha de lá, onde achara de semana o Visconde de Ponte de Lima, pai do Visconde hoje Secretário de Estado, e que o dito Visconde, pai, lhe dissera que Sua Majestade estava sangrado, mas que ele ignorava o que Sua Majestade tinha, só sabia que Domingo passado, pelas duas horas da noite, se fora chamar Sebastião José para ir ao Paço, e que quando este saíra dissera ao Visconde: «Senhor, Sua Majestade está muito doente, e olhe que está muito molestado», e com estas palavras se fora embora; ele não sabia mais nada. Toda esta relação que meu pai trouxe do Paço, ouvi eu ainda sentada ao cravo, onde com todo o descanso tinha ficado cantando as minhas árias, e minha mãe ouvindo-as.

No dia seguinte que era quarta-feira começou-se a espalhar que el-rei estava sangrado por ter dado uma queda, mesmo no Paço; e nisto se variava, uns dizendo que fora queda, outros que era vertigem, não estou certa; nessa mesma quarta-feira ou na quinta haviam umas serenatas por dinheiro em que cantava uma cantarina, onde iam fidalgos e povo. Nesse dia estando sangrada a marquesa de Louriçal D. Josefa, eu a fui visitar com a minha mãe, a achando lá infinita gente de fidalgos e senhoras, entre estas, veio a marquesa de Angeja; eu cheia de sinceridade e ignorância do caso disse alto e diante de todos à marquesa de Angeja; «Aqui está quem me pode tirar da dúvida, de uma novidade que me deu o meu escudeiro na segunda-feira à noite, que o Pedro Teixeira no domingo à noite levara um tiro a que se fora curar a casa de Você; é certo marquesa de Angeja ou não?» A Marquesa respondeu muito perturbada: «É certo que ali perto de nós mora um cirurgião». Do modo com que ela me respondeu, percebi que teria havido alguma coisa que ela me não queria dizer, mas não sabia o quê. Só fiquei com pena de lhe ter perguntado coisa que percebi que ela não queria dizer. Despedi-me para me vir embora. Na casa de fora disse-me o marquês de Louriçal ao ouvido, muito em segredo: «Que tem el-rei?» Disse-lhe: «Não sei». Respondeu ele em segredo: «Uma bala.» Eu estava tão fora do que, era, que não o entendi e respondi-lhe: «Uma bala, eu não sei que queixa seja essa». O marquês me respondeu: «Uma bala, um tiro, indo com Pedro Teixeira». Fiquei pasmada, e metendo-me na carruagem com minha mãe, disse-lhe: «Estou pasmada do que me disse agora o marquês de Louriçal»: e minha mãe também o ficou e me respondeu, «Jesus! que infeliz príncipe, isso será verdade? mas se o é? que confiança, um tiro a um Rei!»

Fui pôr minha mãe em casa, a ao mesmo tempo chegava meu pai da serenata e perguntou-me o que havia de novo. Eu lhe contei o que acabava de me dizer o marquês de Louriçal, e ele me respondeu: «Assim se rompeu na serenata» e esta foi a primeira vez que ouvimos que el-rei tinha levado um tiro, o qual meu pai sentiu tanto, que daí a alguns dias, tendo-se dito, que el-rei tinha uma erisipela no lugar dele e que estava mal, vi chorar meu pai, por el-rei, a dizer estas palavras : «Sinto infinito, porque tenho natural inclinação a el-rei».

Cresceram cada vez mais os desejos que eu tinha de ser santa, a de me adiantar no serviço de Deus, e no dia quatro de Outubro desse mesmo ano de 1758, que era o de S. Francisco, e aquele em que fazia anos que eu tinha recebido a água do baptismo, indo no dito dia à barraca que os Frades de S. Francisco da Cidade tinham feito no sitio do Rato, para se acomodarem nela depois do terramoto, visitando a Igreja em que estava o Santíssimo exposto, pondo eu os olhos na Hóstia, vi nela esculpida a figura do Senhor e assim a modo de cor sanguínea, parecida de alguma maneira à do Sudário, com diferença de mais vermelho no manto, mãos presas etc. E não vi isto imaginariamente senão com os olhos do corpo; mas fiquei tão confundida e perturbada que até tinha escrúpulo de dar crédito ao que estava passando pelos meus olhos, não obstante não ser rápida a vista disto, porque olhava, via o mesmo, mas o respeito com que por vezes pus os olhos, vendo sempre o mesmo, fazia que logo tornava a baixá-los, e conhecendo que eu não era capaz destas coisas, tinha escrúpulo até de assentar que eu vira isto, e assentei vencê-lo, não fazendo caso de tal, e querendo-me persuadir eu mesma que tal não tinha sido, e que a minha vista se teria enganado, e que assim, não era coisa de que eu desse conta ao Padre por escrito, e não lha dei, porque só em pronunciar o que se passou pelos meus olhos me parecia atrevimento, e temia fosse ofensa a Deus.

Estando eu um dia conversando com o Conde de Atouguia, de repente me veio à boca dizer-lhe estas palavras: «Ó Conde, ora eu já lhe dei cinco filhos para a sucessão de sua casa; Você tem boa capacidade para a governar daqui por diante; vai sendo tempo de eu perder a beleza e de Você ficar sofrendo o jugo de uma mulher velha 6. Você dava-se-lhe se eu fosse para um convento?» Ele em ar sério me disse: «É fatal despropósito; sim, dava-se-me muito». Eu quando comecei a dizer-lhe aquilo, que repentinamente me lembrou, não foi com total tenção de o fazer, mas no acto que acabei de lhe dizer fiz tenção de ver a resposta que ele me dava, para com ela tomar a minha resolução, mas como me deu aquela não me passou mais tal pela imaginação. Mas como eu o amava muito, cresciam-me também cada vez mais os desejos que eu tinha da sua salvação dele, de sorte que como naquele tempo, pela misericórdia de Deus, não lhe conhecia vício algum, eram as minhas petições continuas a Deus para que mo salvasse e não lhe punha condições, dizendo: «Senhor, este homem que eu amo tanto nesta vida, salvai-mo, seja como for, para vos gozarmos ambos na outra, eternamente.» Tinha quase continuadamente este pensamento, e às vezes passava a parecer-me delírio, porque chegava a levantar-me muitas vezes no dia da cadeira em que estava assentada na minha casa, ia ao oratório dar este recado ao meu Senhor Crucificado que nele tinha, dizendo: «Senhor! Salvação do Conde de Atouguia, seja como for!» Isto me sucedeu vendo-o moço e com boa saúde; ao menos não tendo nele coisa em, que lhe temesse perigo, porque só tinha moléstia de estômago.

Passado pouco tempo escreveu-me o Padre dizendo-me que como eu lhe pedia o exercício, de alguma virtude, ele me recomendava o zelo da salvação das almas, e que este me não era impróprio, porque não era só reservado aos pregadores; que todas as pessoas de qualquer estado o podiam exercitar; com o conselho e bom modo se podiam evitar muitas ofensas a Deus, e que estes bens repartidos por amigos e por pessoas que os necessitassem, supriam o lugar de sermões; e que esta era a virtude que ele muito me recomendava que eu tivesse, porque esta todos a podiam ter nesta vida sem serem sacerdotes.

Indo eu dali a alguns dias a casa do meu tio Óbidos, visitar a Condessa, sua mulher, achei com ela seu tio, o monteiro-mor Velho 7, e a Condessa de Óbidos, diante dele, voltando-se para mim, disse: «Ó Condessa de Atouguia, você quer morrer mártir?» Respondi-lhe que sim. Perguntando-lhe eu a causa, disse-me que andava uma profecia de que no mês de Janeiro havia de haver em Lisboa sangue de Mártires, de Fidalgos e Senhoras, ao que a Condessa acrescentou, que se a degolassem que estava pronta para o martírio, mas que se lhe metessem caninhas pelas unhas, que para esses vagares não sabia se teria constância. Estivemos ali rindo e brincando com a tal profecia, mas nem eu soube de quem era nem averiguei se nisso havia maior certeza; por certo que me não lembrou que se verificaria em nós, e indo para casa de meus pais, assim mesmo brincando com a tal novidade os convidei dizendo-lhes: «V. Ex.as querem morrer Mártires?» e depois lhes contei o que me dissera a Condessa de Óbidos. Dali a nada entrou a Duquesa de Aveiro e digo-lhe: «Você quer morrer mártir?» Caindo-lhe lágrimas ela me disse: «Arrenego de tal novidade», e eu rindo-me da sua fraqueza lhe dei uma vaia, dizendo-lhe: «Já sei que você não tem espírito de Mártir», mas isto brincando, sem jamais assentar que a profecia seria certa, e com toda a sinceridade falei nela sem rebuço e não a tomando certamente para nós.

Decorrendo algum tempo depois disso escreveu-me o Padre Malagrida a carta de instrução de cada mês, que se repartia pelas três; esta foi a última que nos escreveu. Era formada sobre a eleição de estado e sobre as duas bandeiras, perguntando qual queria seguir e convidando-me para a de Jesus Cristo, em que dizia: «Breve penar para eterno gozar». Eu respondi: «À vista da instrução deste mês, queira V. Rev.ma alistar-me logo na bandeira de Jesus Cristo, que com muito gosto escolho, fazendo total renuncia à de Satanás».

Como estávamos no mês de Dezembro de 1758, ainda que o Padre não podia pregar nem confessar, como a sua conversação sempre era de Deus, tinha vontade de o ouvir falar espiritualmente, já, que não podia fazer os exercícios com ele. Como a Duquesa de Aveiro e seu marido estavam em Azeitão, a eu nunca tinha visto o palácio 8 que eles lá tinham, assim como a casa que o conde de São Lourenço, D. João de Noronha, também lá possuía, onde costumava ir com o Padre, fui eu mesma falar ao dito Conde e disse-lhe se me queria fazer o favor de me mandar lá pôr pronta a sua casa, para lá ter o Padre Malagrida, a quem eu queria visitar, e que como a Companhia estava malquista, não queria pedir conselhos se devia lá ir, para que me não dissessem que não, mas que emprestando-me ele a casa para o Padre, eu iria para a dos Duques de Aveiro, meus tios. Como se não repararia que eu os fosse ver, e daí podia eu aproveitar-me da vizinhança do Padre, sem que isto se estranhasse em Lisboa, o Conde respondeu-me que mandaria pôr pronta a casa. Fiquei muito contente para avisar o Padre que fosse; lá, e indo da minha casa para a da minha irmã, a marquesa de Alorna que estava doente, encontrei um corcovado, que costumava trazer-me cartas do Padre, quando estava em Setúbal. Fiquei. muito contente por achar aquela boa ocasião de o avisar sem mandar lá um criado. Perguntei-lhe: «Como está lá o Padre?» Respondeu-me o corcovado: «Pode mandá-lo saber a Santo Antão 9, onde ele neste instante acaba de chegar». Fiquei pasmada, e muito contente de o ter em Lisboa, com tenção de o ir visitar no outro dia de manhã a Santo Antão, e dali mesmo eu a minha mãe mandámos a Santo Antão o nosso escudeiro a saber dele, e trouxe por resposta que lhe não falara e que o Padre lhe tivera mandado dizer pelo Pde. Diogo da Câmara, que não vinha falhar-lhe porque estava em oração pelas nossas casas e famílias. Dali a pouco tempo chegou meu pai e se demorou pouco, porque ia para um baile; minha mãe e eu ficámos ali com a marquesa de Alorna, minha irmã, e esgotada a conversação pegámos em luzes e começámos a ver as pinturas da sua casa; entre elas nos demorámos em admirar uma que me lembro era a Agonia do Senhor no horto, muito bem, retratada a aflição do Senhor, sustentado nela por dois anjos. Aí estivemos ambas admirando a pintura como bem feita, mas [notámos] que o anjo que confortara fora só um e que o pintor pusera dois, que era só a impropriedade que tinha o painel, tudo o mais estava excelente ao nosso parecer. E daí fomos para as nossas casas, sem nos vir ao pensamento nenhum mal para nós; eu muito alvoroçada para ir na manhã seguinte visitar o Padre. Assim me deitei na cama, porém sem ter nada andei às voltas nela e não podia dormir; o Conde de Atouguia também, sem estar doente, o senti por vezes acordado a às voltas; dormiu pouco.

Pelas seis horas da manhã, que era dia de Santa Luzia, a 13 de Dezembro de 1758 nos veio chamar um criado grave, que tinha criado o Conde de Atouguia, chamado Diogo de Morais, dizendo: «Senhor Conde, acorde, que está a casa cercada desde as três horas da noite e parece coisa de prisão». 0 Conde calçou as chinelas e vestiu uma roupa de chambre e saiu para a casa de fora. Entrou logo outra vez para o quarto onde eu estava, com um Desembargador o qual me achou ainda na cama, onde me intimou a ordem que tinha de levar o Conde preso, a que a Rainha D. Mariana Vitória, que então estava governando, me ordenava que ficasse eu também presa em minha casa, com toda a minha família da qual seria obrigada a dar-lhe conta. Eu tinha em casa perto de quarenta pessoas, de que fiquei responsável.

Recebi a ordem, cheia de respeito, sem nenhum remorso na consciência de culpa contra ninguém, muito menos contra as Pessoas Reais, nem contra a Rainha D. Mariana Vitória, a quem eu amava, como o meu coração, e lhe tinha uma natural inclinação. Perguntei ao Desembargador para onde me levava o Conde, e se lhe podia ir de comer da sua casa. Respondeu-me que ia para a Quinta do Meio 10 e que ao mais me mandaria a resposta. Saindo para a casa de fora e ficando eu só com o Conde, disse em alta voz: «Oh, Virgem Santíssima, socorrei-me!» e o Conde me disse estas palavras: «Condessa, não se aflija, – porque não sei o que isto é, mas não pode ser coisa que valha» e saindo para a casa de fora, assim mesmo despido, disse ao ministro que ele estava pronto para ir preso e obedecer em tudo a el-rei. 0 ministro lhe respondeu que podia ir para o seu quarto vestir-se, para ir com toda a decência, e indo com ele para este fim foi também logo à sua papeleira, para lhe ver os papéis em que não achou nada mais que o dinheiro que o Conde tinha para governar a casa, do qual (o Conde) tirou oito moedas que levou na algibeira, e o mais me mandou, dizendo-me que desejava ter muito que me deixar, mas que deixava tudo quanto tinha, e acabado de vestir, disse ao Ministro, que estava pronto para partir. Este lhe perguntou se queria tornar ao meu quarto para se despedir de mim, ao que o Conde lhe respondeu que se não atrevia a pôr os olhos na minha aflição, e partiu, ficando a casa toda cercada de soldados; e o dinheiro que tinha e me deixou seria o que bastasse para acabar as despesas daquele mês em que foi preso. Assim que ele partiu me disseram que o Ministro que o prendeu trazia na mão duas pistolas, que escondeu quando entrou na minha casa, sendo móvel bem escusado para intimar a ambos uma Ordem Régia, porque esta infunde mais respeito aos vassalos honrados do que quantas armas de fogo possam haver.

Imediatamente depois da partida do Conde de Atouguia me disseram que meu irmão, o marquês de Távora, Luís Bernardo, que morava perto de mim tinha também ido preso a que a sua casa estava também cercada de soldados, que à mesma hora que deitaram cerco à minha, o puseram na dele. Pedi papel e tinta para escrever a meus pais; dando-lhes a notícia que o Conde tinha ido preso, lhes ocultei ser eu quem lhes dissesse que meu mano também tinha ido preso, porque sendo as prisões tão públicas não faltaria quem lhas dissesse; só lhes disse que me tinham levado o Conde sem eu saber porquê, a que só sabia que fora para a Quinta do Meio, e que também estava presa em casa a com ela cercada de tropa, que lhes pedia viessem ter comigo para com mais acerto me aconselharem nas diligências que devia fazer.

Quando chegou o meu escrito a meus pais, ainda eles não tinham cerco em sua casa, imediatamente se meteram na carruagem para virem para a minha casa, mas as tropas que guarneciam os caminhos dela não os deixaram passar, por cuja razão foram para casa da minha tia condessa da Ribeira, e meu pai, deixando ali minha mãe, foi direito ao Paço e mandou dizer a el-rei D. José, que via a novidade de se lhe prender toda a sua família, que não sabia a razão, mas que ia saber se Sua Majestade queria também dele alguma coisa, ou se o queria preso, que nomeasse a Torre ou prisão em que o queria, que. ele mesmo iria meter-se nela.

O marquês de Pombal, que lá encontrou meu pai e lhe ouviu este recado, disse-lhe: «Senhor, sinto a sua infelicidade, e dali mesmo o mandou preso para a mesma parte dos outros dois; e quando lhe mandaram tirar a espada por D. Luís da Cunha para o levar preso, ele lhe disse: «Aqui a entrego a Sua Majestade com a mesma honra com que sempre a trouxe à cinta e foi para a prisão; porém D. Luís da Cunha logo começou a tratá-lo com muita grosseria, o que lhe foi muito sensível. Minha mãe pediu carruagem a minha tia Condessa da Ribeira para se ir pôr em casa, a qual achou já cercada de soldados, e meu irmão José Maria de Távora já preso; porque quando meus pais saíram para fora com tenção de irem para a minha casa, ele ficou primeiro almoçando na de meus pais, onde assistia, depois foi mesmo a pé para a minha casa por aquelas terras do Rio Seco; no caminho encontrou as tropas que iam deitar o cerco à de meus pais, e perguntando-lhes se aquilo era também com ele, responderam-lhe que sim; foi preso para onde estavam os mais. Minha mãe teve também ordem de ficar presa em sua [casa] e a sua família; porém minha mãe sempre teve guardas à vista, e eu só as tinha à porta.

Como se ia já fazendo muito tarde, e eu sabia que estes e meu tio José Maria de Lorena 11 estavam todos juntos na mesma casa, e me não vinha o prometido aviso do Desembargador, se o comer havia ou não ir de casa, resolvi mandar nesse dia de jantar com toda a decência da minha casa, e que chegasse para todos; mas eram seis horas da tarde quando lá chegou, e como o aceitaram, avisei a minha mãe do que tinha feito, e ela na suposição que os conservariam juntos ajustou de um dia eu o mandar para todos, e outro dia ela o mandaria, e que conservássemos esta alternativa. Porém no dia seguinte minha mãe mandou de almoçar, o que já lá não aceitaram porque naquela manhã os tinham separado a todos e metido cada um em seu cárcere.

Pela uma hora da tarde desse mesmo dia, chegando minha mãe à janela e avistando uma partida de cavalaria, disse: «Quem será o miserável a quem ela vai buscar?» porém dentro de poucos instantes viu que era para ela, e me escreveu dizendo: «Agora chega o Desembargador João Marques Bacalhau com ordem de Sua Majestade para me levar para as Grilas; faz da minha parte este aviso às tuas irmãs 12 e cunhada; se nos não tornarmos a ver nesta vida, seja na presença de Deus. Tua mãe que sempre te amou e amará». Quando minha mãe recebeu o decreto para a sua partida para as Grilas, pôs-se de joelhos, e, pondo o decreto no alto da sua cabeça, disse ao Desembargador que ela agradecia a Sua Majestade dar-lhe meios tão seguros para se salvar, e partiu.

Vendo-me assim destituída de tudo quanto mais amava neste mundo, faltando-me a comunicação do Padre Malagrida, porque nesse mesmo dia foi posto o cerco de tropa aos Padres da Companhia, eu comecei com mais força a pôr em execução tudo quanto ele me tinha ensinado na sua santa escola, e oferecendo a Deus tudo quanto então estava passando, perdoando aos inimigos tão horrendos danos e testemunhos, e tudo quanto era preciso para a salvação em tão exorbitante trabalho.

Começou-se logo o sequestro em tudo que era de casa de meus pais, e dai a pouco veio também ordem para se fazer em todos os bens móveis e de raiz do Conde de Atouguia. Eu, assim que me vi privada dele, não fiz mais caso da bagatela dos outros bens que me queriam sequestrar, ainda que fosse tudo quanto tínhamos. Com todo o despego dei ao sequestro não só tudo quanto o Conde tinha de seu, mas até o dinheiro que me tinha deixado para comer; e disse ao Ministro que lho entregava, e que depois disso pedia a Sua Majestade me desse uma esmola para me sustentar e à minha família presa.

Como fiquei sem nada do Conde, naquela noite me serviu de castiçal para pôr a vela que me alumiava uma garrafa destas ordinárias de vinho, porque não tinha outra coisa. Não tinha nada para comprar de cear, de sorte que naquela noite me mandou a marquesa de Tancos por caridade um saco de pão, dois perus e um presunto; porque como tudo me tinham levado e não vinha a esmola que eu, estando presa pedia a el-rei, vi-me em termos de morrer de fome, com os meus cinco filhos, de que o mais velho tinha dez anos, e as quarenta pessoas presas da família que tinha em casa. Isto sucedeu só a mim, porque à duquesa de Aveiro, quando lhe sequestraram na mesma ocasião os bens do seu marido, lhe mandaram dar três moedas cada dia para se sustentar e à sua família, enquanto não foi para o Convento do Rato 13.

Como no aviso para o sequestro do Conde de Atouguia que por escrito me mostrou o Ministro, não falava em sequestrar os meus bens, eu os não dei naquela ocasião, e valendo-me então da prata do meu toucador, que parte se tinha derretido pelo terramoto, mandava todos os dias vender desta prata porção que bastasse para naquele dia eu, meus filhos e família comermos; isto é, comíamos unicamente sopa, arroz e vaca, até ver se me vinha o socorro que pedi a El-Rei. Em lugar dele me veio uma grande repreensão do seu Ministro, mandando-me dizer pelo Desembargador Afonso da Silveira, executador do sequestro, homem de bom coração e em quem eu conhecia a violência que fazia em ser mandado a tal diligência; com as lágrimas saltando pelos olhos me disse que dando parte a Sebastião José de Carvalho, da exactidão com que eu dera todos os bens do Conde de Atouguia ao sequestro, ficando sem nada dele, nem mesmo o que me era de absoluta necessidade, ele lhe respondera que eu nisso fizera bem, mas que obrara muito mal em não entregar igualmente ao sequestro o que era meu, e logo o fizesse; porém esta ordem não era por escrito, era vocal. Eu logo peguei em seis diamantes muito bons que tinha salvado do fogo do terramoto, e que havia poucos dias que eu tinha ido enfeitada com eles à casa do dito Sebastião José, e os entreguei ao Desembargador com as mais coisas do meu uso de roupa branca, vestidos etc.; só não entreguei a prata que restava do meu toucador, porque concebi que a ideia seria matar-nos ali todos à fome; portanto dali fui comendo como acima digo 14.  Entre toda esta aflição, um rendeiro do Conde de Atouguia que não obstante o Conde lhe dever dinheiro e de o ver a ele já sem nada e a mim também fez esta guapissima acção de vir a minha casa ver-me; e quando viu as minhas tristes circunstâncias, abriu a sua bolsa, em que só tinha doze mil oitocentos, e mos deu para eu não morrer de fome, dizendo que sentia não ter ali muito para me deixar, porém que me dava quanto tinha. Respondi-lhe que a dúvida que eu tinha em lhe aceitar era que me via já sem nada para lhe pagar. Respondeu-me que não importava e mos deixou.

Logo que se prendeu o Conde e que eu não podia consultar o Pde. Malagrida nem pedir-lhe conselho sobre as minhas penitências, as acrescentei sem ele, e não dormi mais em cama mas sim no chão, na tábua dela sem colchão; o comer alem de não ser outro do que acima disse, desse mesmo escolhi o pior, até que veio a minha casa um frade de S. Francisco confessar-me, chamado Frei João da Graça, a quem algumas vezes eu antecedentemente tinha-me confessado por várias vezes; proibiu-me absolutamente que dormisse ria tábua, e só me permitiu que dormisse vestida, mas sobre o colchão, e também me disse que segundo o estado a as disposições em que achava a minha alma, se fora meu director me daria naquela ocasião a Comunhão todos os dias. Então lhe contei da permissão que tinha do meu director para a receber quatro vezes na semana de que não tinha aproveitado senão duas, mas que agora a faria das quatro, como de facto fiquei fazendo, durante o tempo que ainda estive em casa, a nela me ocupava em oração e lição espiritual, entregando-me em tudo a Deus, a quem rogava por todos, a tudo isto oferecia a Nossa Senhora pelos meus presos, a pela sua salvação.

Numa daquelas tristes noites me sucedeu um caso muito estranho, a que até agora não sei o que foi. Deitando-me numa noite sobre o colchão, como costumava, senti sobre mim um peso que parecia me esmagava, e a este se seguiu um tormento em meu corpo, que com unhas de ferro me era despedaçada toda a carne dele. E não sei se Nosso Senhor repartiria comigo nesta forma as dores dos tratos que, me diziam o Conde estava levando, assim como os mais companheiros, por que, escrevendo isto, me lembro, que dando-me grande cuidado o temor que lhe faltasse a paciência para os suportar, ou que neles desesperasse e lhe prejudicasse a sua salvação, pedia a Nosso Senhor que lhe diminuísse antes a ele as dores e mas desse a mim, para as sofrer por seu amor; só as tive aquela noite, mas foi coisa horrorosa, e não foi em sonho, porque me parece estava acordada, mas não vi quem me dava aquele tormento; nele chamei por Nosso Senhor, quem me valesse, e dai por diante rodeava a minha cama com água benta antes de me deitar. Depois do Conde ir para a prisão algum tempo lhe foi de casa roupa branca que lá aceitaram, e pediam velas: depois de se fazer o sequestro nunca mais quiseram lá roupa branca, e só pediram as velas, que sempre as mandei enquanto me deixaram em minha casa por isso mesmo é que eu fazia ideia do cárcere ser muito escuro, porque se pediam para todo o dia.

Quando me vinham os portadores uns atrás dos outros dizer: «Já se arremataram as bestas, agora levaram a prata, já não há carruagem,» eu tinha na memória toda a carta de instrução das calamidades de Job, para dizer com ele: «Deus o deu, Deus o tirou: louvado seja tão bom o Senhor». No meio de toda esta aflição apareceu-me um pintor, meu conhecido, que me trazia uma carta do Pde. Malagrida; trouxe-a metida nas costas, entre a camisa e a pele, e assim passou pelas guardas da casa a as de Santo Antão; porque ainda não havia a proibição da pena de morte, que se estipulou muitos meses depois, para não se escrever aos Padres da Companhia nem tratar com eles, mas eu com a família toda presa não tinha por quem escrever ao Padre, nem ele a mim, e de tudo se fazia um crime que podia perder o homem. Nesta tal cartinha me dizia o Padre que esperava que depois de tantas instruções suas, eu estivesse firme, resignada e constante nesta grande prova que o Senhor queria fazer do meu amor; e que remetesse a minha mãe a carta que vinha junta, o que não pude fazer por não ter modo de lha introduzir nas Grilas; portanto tornei a mandá-la ao Padre, mas do modo com que ele me escreveu, logo eu temi que o mundo estava para mim acabado.

No dia 4 de Janeiro de 1759; que era a oitava dos Inocentes 15, e em que fazia três meses justos que eu tinha visto na Hóstia o que já relatei, me entraram pela porta dentro dois Desembargadores que tinham vindo em seges do Paço, e me intimaram a ordem de Sua Majestade para me levarem naquele dia para o Convento das Religiosas de Sacavém 16 com a minha filha Leonor de Ataíde, e que meus dois filhos D. Luís e D. Francisco de Ataíde fossem para o Convento de Rilhafoles 17. Perguntei que faria com a minha filha Clara e meu filho D. António que tinha 16 meses de idade e ainda mamava na ama. Respondeu o Desembargador João Pacheco 18, que era o que veio levar-me para o Convento que fossem também estes dois, de que se não sabia, para o Convento. Repliquei dizendo que sendo António rapaz, se havia de criar entre Religiosas de tão austero Instituto. Respondeu-me que sim. Representei igualmente que indo eu com três crianças tão pequenas para aquele lugar, sem uma criada, que ainda que eu lhes fizesse o serviço que pudesse, não deixava de dar algum incómodo às Religiosas. Acudiu o Desembargador Eusébio Tavares 19, que veio buscar os meus filhos, dizendo ao outro, que a minha petição era muito justa, e me deviam conceder que levasse uma criada, qual eu quisesse. E nomeando eu uma, que era aia de Leonor, a tal criada, com todo o desembaraço disse que ela era muito moça e se não queria sujeitar a ir para um convento tão apertado; ao que o tal Pacheco respondeu que não importava, que iria ainda que não quisesse. Eu lhe pedi que não fosse assim, por que já que me via sem nada para premiar a minha família, não queria que se lhe fizessem violências e representando eu que tinha uma china que criara da idade de oito anos e que por não ter pai nem mãe, nem parentes, eu pedia a Sua Majestade que a não desamparasse, a ama que criava o António lembrou aos Ministros que ela podia ir visto ter muito jeito para lidar com crianças, porém como ficaram indecisos, e para dar parte do que se queria nesta matéria, não foi logo comigo; e por consequência era tempo de eu ser a que partisse para obedecer à ordem que tinha, e como a gente que ia era mais do que vinha no rol da partida, faltava uma carruagem. Entrando-se em dúvida onde havia de ir a minha segunda filha Clara, que ainda não tinha quatro anos completos, sendo o Desembargador João Pacheco muito grosseiro no seu modo, eu temi não se resolvesse ele a ser quem levasse a minha filha consigo, por cuja razão soltei eu esta dúvida, dizendo-lhe que as minhas filhas, onde iam com mais decência, era na mesma carruagem comigo, e não duvidando ele disso, eu lhe pedi licença para levar comigo os livros Espirituais que andava lendo, que eram parte das obras de Frei Luís de Granada, e para ir ao meu oratório despedir-me do meu Senhor Crucificado; e pondo os olhos nele, e em minha Mãe Santíssima levando pela mão os meus dois filhos, que me tiravam, aos pés da mesma Senhora Lhe pedi, mos amparasse a os tomasse à sua conta como filhos seus.

Então tornando com eles para irmos para onde Sua Majestade nos destinava, e para nos separarmos, indo o mais velho ainda oral convalescido de uma grande doença que tinha tido, nos metemos nas carruagens, deixando a minha família numerosa presa e sem socorro algum para comerem, porque até mesmo no dia em que partimos lho não deram.

A graça de Deus me socorreu com tanta força neste triste lance que me senti com uma desusada constância e fortaleza, entregando-me toda a Deus, servindo de consolação a lembrança de que chegando Sua Majestade a tirar-me de minha casa, me mandasse para um Convento da Religiosas, que tinham sempre lá dentro do coro o Santíssimo Sacramento. E ainda que no dito Convento não conhecia nem uma só pessoa, podia lá adorar o Santíssimo Sacramento a todo o instante; este bem me pareceu tão grande, que supriu toda e qualquer outra falta de conhecimento, enxugando-se os meus olhos das continuas lágrimas que deles corriam, desde a hora em que prenderam o Conde.

Assim cheia de fortaleza, à vista dos dois Ministros e de muita tropa, que cercava a minha casa, e da partida de cavalaria com o oficial, que vinha conduzir-me, em voz alta disse aos meus dois filhos Luís de Ataíde e Francisco de Ataíde: «Vocês têm melhor Mãe, que é Nossa Senhora, a quem roguei os aceitasse como filhos; Deus os faça mais ditosos do que seu pai e avós, mas basta que sejam tão honrados como eles, e tão fiéis a Sua Majestade como eles sempre foram». E metendo-me na carruagem com as minhas duas filhas, e a ama com o António, em uma sege, que tinha sido minha, e que já me tinham sequestrada mas que eu lembrei que se podiam servir dela, visto estar na cavalariça ainda, e assim deste modo, levei comigo mais aquele filho, arrancando-me eles só os dois maiores; fomos todos juntos com os dois Ministros, e uma partida de bastantes soldados, para com estas forças e aparatos se guardar uma infeliz mulher, com cinco filhos crianças.

E como a carruagem em que ia era a primeira desta nada pomposa procissão, quando cheguei à ponte de Alcântara 20, mandei parar, para me encomendar a S. João Nepomuceno 21, cuja protecção eu tanto necessitava; veio-me logo uma repreensão do Ministro, dizendo-me que não parasse no caminho por devoções, porque tinha ordem de me levar direita ao Convento, não obstante eu não ter torcido nada do caminho. Vindo de Santo Amaro para Sacavém era caminho direito, assim como o do Livramento 22, onde tinha feito também tenção de parar, e mesmo à porta rezar a Nossa Senhora e lhe pedir me valesse: mas para não levar terceira repreensão por estes avaliados defeitos, com grande mágoa minha passei pelo Livramento sem parar, porém sendo por isso mesmo mais fortes os rogos que no meu interior fiz à mesma Senhora. Continuámos na nossa marcha todos até o Campo de Santana, onde me separei dos dois filhos, que ficaram em Rilhafoles, prosseguindo eu para diante a minha viagem, mas no dito sítio ainda que não chorei, quando vi a divisão deste resto de infeliz família, senti na minha natureza um golpe tão terrível, que me parecia se me arrancava o coração; mas tudo passou no interior, conservando no exterior a minha fortaleza começada, sem deitar uma lágrima. Continuando assim o caminho para Sacavém com os dois filhos, assim que de longe começámos a avistar o Convento, Leonor que tinha seis anos de idade começou a chorar muito, e eu, parecendo-me que eram saudades de sua aia, a quem ela era muito pegada, e não achando com que lhas tirar, ao menos pretendi moderar-lhas, dizendo-lhe que a sua aia lhe não merecia tantas lágrimas por que ela mesma a quisera deixar e não vir com ela, a que assim devia enxugar as suas lágrimas, e com esta razão que a menina aceitou consegui calá-la.

Chegámos ao Convento à hora das Completas 23, e antes de entrar para dentro me lembrou que tinha algumas dívidas pequenas, que, como as ia pagando enquanto tinha a minha casa, que as não deixara declaradas. E dizendo eu ao Desembargador que eu não era criança, e que como tinha estas dívidas que não declarara e não sabia as ordens com que ia para ali, nem o tempo que ali estaria, desejava papel e tinta para as declarar antes de entrar, respondeu-me ele que não tinha ordem alguma apertada, senão só de ir para aquele lugar, e que seria por poucos dias.

Assim que entrei para dentro, pus-me de joelhos e beijei a mão à Prelada, como sua súbdita, e vendo-a a ela a às freiras chorar, lhe disse muito firme e enxuta que não chorasse porque eu ia àquele santo lugar consolar-me; e perguntando-lhe que ordens havia ali a meu respeito, respondeu-me que para não tratar nem escrever a pessoa alguma de fora; assim me vi presa em Sacavém como traidora sem o ser.

E para triunfo da Graça de Deus que é quem pode tudo, e para o crédito da doutrina que me tinha dado o Padre Gabriel Malagarida da Sagrada Companhia de Jesus, digo que quando me levantaram este horrendo testemunho, havia quatro anos que eu ouvia a sua santa doutrina, de que três fui formalmente sua dirigida e pela sua direcção, ajudada da graça de Deus, nos ditos três anos, até o dia em que entrei em Sacavém, não tinha pecado venalmente com advertência, por cuja razão não achei impróprio comungar três vezes na semana, e no dia que el-rei levou o tiro, pela manhã, que era no domingo, tinha eu ido confessar-me à Barraca do Rato dos frades de S. Francisco, que bem prova a minha inocência no dito caso, porque era uma antecedência nada própria para um delito tão horroroso; e havendo três anos que eu não cometia pecado venal com advertência concorreria eu para um tão mortalíssimo! Louvado seja Deus, que nem eu, nem meu marido, nem meus pais, nem meus irmãos, soubemos de tal, e que se padecemos, todos fomos inocentes.

Fechada a porta do Convento a fechada eu nele, soube que o Desembargador João Pacheco que para lá me levou, foi deixando às Religiosas este pregão: «Aí fica a Condessa de Atouguia; melhor fora que sua Majestade em lugar dela lhes mandasse a V. R.as cinco moios de trigo.»


Notas:

1. O Convento de S. Francisco da Cidade, fundado em 1217, foi completamente destruído pelo terramoto de 1755. Ficava na zona que é ocupada actualmente pelo bloco formado pelo Governo Civil de Lisboa, o Museu do Chiado e a Faculdade de Belas Artes. Começou a ser reedificado logo a seguir ao terramoto mas a sua construção foi abandonada em 1839, com a demolição do que já tinha sido edificado. (regressar)

2. As Avé Marias eram os três toques dados pelos sinos das Igreja, ao nascer do dia, ao meio dia e ao anoitecer, e é utilizado aqui, como normalmente o era, para referir o fim da tarde. (regressar)

3. Segundo parece o conde era oficial da Guarda Real dos Archeiros, que compreendia duas companhias, uma Portuguesa e outra «Alemã». Os serviços no Paço tinham uma rotatividade semanal. (regressar)

4. Rosa Divina é o Rosário, rezado normalmente à noite, e demorando algum tempo, por ser cumprido pela recitação de cento e cinquenta Ave Marias e de quinze Pai Nossos, intercalados em cada dezena. (regressar)

5. O criado particular de D. José, era cabo no Forte da Cruz Quebrada quando em 1751 foi promovido a capitão de Ordenanças. Em Setembro de 1755 foi promovido a Sargento-mor (Major) no Regimento dos Privilegiados da Corte, um dos regimentos de Ordenanças de Lisboa. (regressar)

6. A condessa faria 36 anos no dia 24 de Setembro! (regressar)

7. Fernão Teles da Silva (n.1698), tio materno da condessa de Óbidos, filho do 4.º conde de Tarouca, o embaixador de D. João V na Áustria, era monteiro-mor em sucessão do sogro. (regressar)

8. O Palácio fica em Vila Nogueira de Azeitão, e foi onde foram presos os duques da Aveiro em Dezembro de 1758. Mais tarde, em 1759, foi onde ficaram retidos alguns Jesuítas até à sua expulsão de Portugal. (regressar)

9. O convento de Santo Antão o Novo, o actual Hospital de São José, começou a ser edificado em 1579, tendo recebido os primeiros membros da Companhia de Jesus em 1593. (regressar)

10. A Quinta do Meio, comprada por D. João V ao conde de São Lourenço, assim como uma outra quinta comprada anteriormente, em 1726, ao conde de Aveiras, conhecida pela Quinta de Baixo, compõem o que é actualmente o Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da República portuguesa. Na Quinta de Cima foi construído o Palácio da Ajuda. Os prisioneiros ficaram encarcerados no pátio dos Bichos. (regressar)

11. José Maria de Távora (n.1726), irmão mais novo do marquês de Távora, cónego, cavaleiro da Ordem de Malta, esteve preso nas prisões da Junqueira, onde endoideceu. Como o apelido Távora foi proibido, o apelido usado pelos membros da família passou a ser o Lorena. (regressar)

12. D. Ana (n.1727), D. Leonor (n.1729), marquesa de Alorna, e D. Inês (n.1731). (regressar)

13. Convento de freiras trinitárias, construído no século XVII, tendo como padroeiro Luís Gomes de Sá e Meneses, por alcunha o Rato. (regressar)

14. Num papel à parte; intercalado no manuscrito do Sr. Conde de Bertiandos, vem o trecho que segue, que pela linguagem e estilo deve ter pertencido certamente ao original. 

«Assim que me vi sem nada começaram os desenganos deste mundo a crescer, porque as minhas criadas, que eu cuidava eram mais minhas amigas se despediram do meu serviço a se queriam ir embora, sendo a primeira a minha aia, que me tinha criado, o que me causava grande aflição não poder condescender com elas pela ordem que tinha de dar conta de todas. Os criados não foram assim e todos eles me mostraram grande afecto, e um hóspede fez proezas de caridade comigo, porque podendo-se ir logo embora por não ser criado, disse-me que por isso mesmo me não queria deixar, e que, como estava solto e podia sair fora, o queria fazer para me servir em tudo, e o fez. Era homem muito nobre, irmão de um criado meu e se chamava Estevão Caldeira».
Chamo a atenção do leitor para o epíteto nobre dado ao irmão dum criado, é que D. Mariana reconhecia foros de nobreza ao coração. (nota do editor) (regressar)

15. A Oitava dos Inocentes, porque no calendário litúrgico o dia dos Santos Inocentes se comemora oito dias antes, no dia 28 de Dezembro. (regressar)

16. O Convento das Grilas, como era conhecido o Mosteiro das Religiosas Descalças de Santo Agostinho, fundado pela rainha D. Luísa de Gusmão, mulher de D. João IV, ficava no local onde era a Manutenção Militar na actual rua do mesmo nome, em Xabregas, na zona oriental de Lisboa, na zona do Grilo, onde existem a Rua e a Calçada do Grilo. (regressar)

17. O Convento de São Francisco de Paula, em Rilhafoles, da Congregação do Oratório de São Filipe Nery, foi fundado em 1717. É actualmente o Hospital de Miguel Bombarda, o antigo manicómio de Lisboa, conhecido durante muito tempo por Hospital de Rilhafoles. Fica na Rua de Gomes Freire, perto do Campo dos Mártires da Pátria, o antigo campo de Santana. Quer isto dizer que os filhos da condessa foram para um convento onde seriam convenientemente educados. (regressar)

18. O Desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcelos era natural da Baía, de pais originários do Norte de Portugal. (regressar)

19. O Desembargador Eusébio Tavares de Sequeira, natural de Coimbra, era o procurador dos réus. (regressar)

20. A Ponte de Alcântara atravessava a ribeira do mesmo nome, a actual Avenida de Ceuta, ligando aquilo que era Lisboa propriamente dita à zona da Junqueira e Belém, os arrabaldes ocidentais da capital. (regressar)

21. Na ponte de Alcântara havia uma estátua de São João Nepomuceno erigida em 1743, e de autoria do italiano João António de Pádua. (regressar)

22. O Convento de Nossa Senhora do Livramento, da Ordem da Santíssima Trindade, situava-se em Alcântara, tendo sido construído em 1679 e reedificado em 1698. A rainha D. Mariana Vitória era muito devota da imagem de N.ª Sr.ª do Livramento. (regressar)

23. A hora das Completas é a última hora canónica. Quer dizer que o grupo entrou no Convento mesmo antes de ele fechar. (regressar)

 

Fonte:
Pde. Valério R. Cordeiro (ed.),
Memórias da última Condessa de Atouguia,
2.ª ed., Braga, 1917 (1.ª ed., 1916),
págs.60 - 89.


A ver também:

 
  • Outras histórias
    A lista completa de documentos pessoais ordenada alfabeticamente.

| Página Principal |
| A Imagem da Semana | O Discurso do Mês | Almanaque | Turismo histórico | Estudo da história |
| Agenda | Directório | Pontos de vista | Perguntas mais frequentes | Histórias pessoais | Biografias |
| Novidades | O Liberalismo | As Invasões Francesas | Portugal Barroco | Portugal na Grande Guerra |
| A Guerra de África | Temas de História de Portugal | A Grande Fome na IrlandaAs Cruzadas |
| A Segunda Guerra Mundial | Think Small - Pense pequeno ! | Teoria Política |

Escreva ao Portal da História

© Manuel Amaral 2000-2008