Estas memórias são muito interessantes, pela descrição da vida social da alta nobreza, pela apresentação da relação do padre jesuíta Malagrida com os Távoras, pela compreensão de que nem sempre os sermões versavam só assuntos religiosos mas podiam ter um interesse filosófico, mas também por pôr em causa o que a historiografia portuguesa, baseada em relatos de viajantes estrangeiros, tem escrito sobre a mulher aristocrata do século XVIII, quando afirma que as aristocratas saíam pouco e viviam recatadas. De facto, a liberdade de movimentos da condessa de Atouguia ainda hoje daria que falar ! Nota: As ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».
[A TENTATIVA DE ASSASSINATO DO REI D. JOSÉ, PELO DUQUE DE AVEIRO, E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A FAMÍLIA TÁVORA.] No
dia 3 de Setembro de 1758 levou el-rei D. José um tiro de que eu não
soube nada senão cinco dias depois, quando esta infelicidade se começou
a romper; na mesma ignorância estiveram meus pais, meus dois irmãos e
o Conde de
Atouguia. Todos morreram inocentes. Foi em um domingo à
noite, e pela manhã do dito dia me tinha eu ido confessar à barraca do
Rato que lá tinham os frades de S. Francisco da cidade 1, como costumava
em todos os domingos; e à noite fui para casa da minha
mãe, onde a
maior parte dos dias costumava o Conde de Atouguia ir também, e dali
nos recolhíamos ambos para casa; mas neste dia não foi lá, porque se
recolheu para casa às Ave Marias 2 pelo que adiante referirei;
meu pai
veio para casa à noite, não muito tarde; e meu irmão segundo José
Maria de Távora também ali estava connosco. Às dez horas da noite, ou
pouco mais, mandei chegar a carruagem para me ir embora para minha casa,
e depois de ela chegada, pegou o meu irmão José Maria em um papel, que
era um sermão de São Felipe Neri, feito pelo Pde. João
Baptista, da
Congregação, cujas obras eu não conhecia e me tinha dado o marquês
de Louriçal havia dias, para eu admirar. Eu o tinha ali deixado sem o
ver, mas começando o dito meu irmão a ler as primeiras regras, gostei
tanto dele que deixando estar posta a carruagem, o ouvi ler todo,
estando presentes meu pai e mãe que igualmente se agradaram muito da
sua discrição e doutrina. O sermão era muito grande, e, quando meu
irmão acabou de o ler, vim-me embora para casa, onde achei o Conde de
Atouguia, e era quase meia-noite. O Conde me disse: «Ora Você que
quando estou em casa da sua mãe, em sendo dez horas da noite está
fervendo para vir para casa, hoje que eu me recolhi ás Ave Marias,
porque nesta madrugada hei de entrar de guarda 3
na Ajuda e quis fazer
contas e governar a casa antes, para a não incomodar, logo hoje é que
fez Rosa Divina 4 em casa de seus pais, e veio tão tarde! Como não sabia
já em que gastar o tempo chamei os meus filhos e estive entretendo-me
com eles, e brincando com o pequeno» (que era o António que tinha
treze meses). Eu lhe respondi que por lermos o sermão é que viera àquelas
horas, e pedindo logo a ceia para a mesa ceámos e nos fomos deitar, e
na madrugada para a segunda feira foi o Conde entrar de guarda na Ajuda
e eu de tarde fui para fora. Quando à noite me recolhi, estando ceando
só, por o Conde estar de guarda, disse-me o meu escudeiro António
Caldeira, que me servia à mesa: «Sabe V. Ex.ª que ontem à noite
deram um tiro em Pedro Teixeira 5 e que se foi curar à casa do marquês
de Angeja?» Respondi-lhe com verdade que não. No
dia seguinte, que era terça-feira, estando eu em casa da minha mãe
cantando ao cravo, e acompanhando-me nele um tocador chamado João
Pereira disse-nos: «V. Ex.as sabem que el-rei está
sangrado?» Dissemos ambas que não. Acrescentou ele: «Pois está,
porque Domingo à noite, estando Sua Majestade conversando com Sebastião
José, deu-lhe uma vertigem, que caiu no chão, e por conta dela se
sangrou». Respondemos ambas que não sabíamos nada, como assim era; e
como se andava então de luto pela Rainha de Castela, irmã de el-rei,
minha mãe acrescentou que tanto o não sabíamos, que o marquês de Távora
tinha saído de luto. Daí a poucos instantes, que era depois das Avé
Marias chegando meu pai a casa, o tal tocador lhe deu também a mesma
notícia; meu pai, sem perda de tempo, vestido de grande gala, conforme
o uso do Paço quando se sangram as pessoas reais, foi logo ao Paço
saber de Sua Majestade, e tornando para casa com brevidade, disse que
vinha de lá, onde achara de semana o Visconde de Ponte de
Lima, pai do
Visconde hoje Secretário de Estado, e que o dito Visconde, pai, lhe
dissera que Sua Majestade estava sangrado, mas que ele ignorava o que
Sua Majestade tinha, só sabia que Domingo passado, pelas duas horas da
noite, se fora chamar Sebastião José para ir ao Paço, e que quando
este saíra dissera ao Visconde: «Senhor, Sua Majestade está muito
doente, e olhe que está muito molestado», e com estas palavras se fora
embora; ele não sabia mais nada. Toda esta relação que meu pai trouxe
do Paço, ouvi eu ainda sentada ao cravo, onde com todo o descanso tinha
ficado cantando as minhas árias, e minha mãe ouvindo-as. No
dia seguinte que era quarta-feira começou-se a espalhar que el-rei
estava sangrado por ter dado uma queda, mesmo no Paço; e nisto se
variava, uns dizendo que fora queda, outros que era vertigem, não estou
certa; nessa mesma quarta-feira ou na quinta haviam umas serenatas por
dinheiro em que cantava uma cantarina, onde iam fidalgos e povo. Nesse
dia estando sangrada a marquesa de Louriçal D. Josefa, eu a fui visitar
com a minha mãe, a achando lá infinita gente de fidalgos e senhoras,
entre estas, veio a marquesa de Angeja; eu cheia de sinceridade e ignorância
do caso disse alto e diante de todos à marquesa de Angeja; «Aqui está
quem me pode tirar da dúvida, de uma novidade que me deu o meu
escudeiro na segunda-feira à noite, que o Pedro Teixeira no domingo à
noite levara um tiro a que se fora curar a casa de Você; é certo
marquesa de Angeja ou não?» A Marquesa respondeu muito perturbada:
«É certo que ali perto de nós mora um cirurgião». Do modo com que
ela me respondeu, percebi que teria havido alguma coisa que ela me não
queria dizer, mas não sabia o quê. Só fiquei com pena de lhe ter
perguntado coisa que percebi que ela não queria dizer. Despedi-me para
me vir embora. Na casa de fora disse-me o marquês de Louriçal ao
ouvido, muito em segredo: «Que tem el-rei?» Disse-lhe: «Não sei».
Respondeu ele em segredo: «Uma bala.» Eu estava tão fora do que, era,
que não o entendi e respondi-lhe: «Uma bala, eu não sei que queixa
seja essa». O marquês me respondeu: «Uma bala, um tiro, indo com Pedro
Teixeira». Fiquei pasmada, e metendo-me na carruagem com minha mãe,
disse-lhe: «Estou pasmada do que me disse agora o marquês de Louriçal»:
e minha mãe também o ficou e me respondeu, «Jesus! que infeliz príncipe,
isso será verdade? mas se o é? que confiança, um tiro a um Rei!» Fui
pôr minha mãe em casa, a ao mesmo tempo chegava meu pai da serenata e
perguntou-me o que havia de novo. Eu lhe contei o que acabava de me
dizer o marquês de Louriçal, e ele me respondeu: «Assim se rompeu na
serenata» e esta foi a primeira vez que ouvimos que el-rei tinha levado
um tiro, o qual meu pai sentiu tanto, que daí a alguns dias, tendo-se
dito, que el-rei tinha uma erisipela no lugar dele e que estava mal, vi
chorar meu pai, por el-rei, a dizer estas palavras : «Sinto infinito,
porque tenho natural inclinação a el-rei». Cresceram
cada vez mais os desejos que eu tinha de ser santa, a de me adiantar no
serviço de Deus, e no dia quatro de Outubro desse mesmo ano de 1758,
que era o de S. Francisco, e aquele em que fazia anos que eu tinha
recebido a água do baptismo, indo no dito dia à barraca que os Frades
de S. Francisco da Cidade tinham feito no sitio do Rato, para se
acomodarem nela depois do terramoto, visitando a Igreja em que estava o
Santíssimo exposto, pondo eu os olhos na Hóstia, vi nela esculpida a
figura do Senhor e assim a modo de cor sanguínea, parecida de alguma
maneira à do Sudário, com diferença de mais vermelho no manto, mãos
presas etc. E não vi isto imaginariamente senão com os olhos do corpo;
mas fiquei tão confundida e perturbada que até tinha escrúpulo de dar
crédito ao que estava passando pelos meus olhos, não obstante não ser
rápida a vista disto, porque olhava, via o mesmo, mas o respeito com
que por vezes pus os olhos, vendo sempre o mesmo, fazia que logo tornava
a baixá-los, e conhecendo que eu não era capaz destas coisas, tinha
escrúpulo até de assentar que eu vira isto, e assentei vencê-lo, não
fazendo caso de tal, e querendo-me persuadir eu mesma que tal não tinha
sido, e que a minha vista se teria enganado, e que assim, não era coisa
de que eu desse conta ao Padre por escrito, e não lha dei, porque só
em pronunciar o que se passou pelos meus olhos me parecia atrevimento, e
temia fosse ofensa a Deus. Estando
eu um dia conversando com o Conde de Atouguia, de repente me veio à
boca dizer-lhe estas palavras: «Ó Conde, ora eu já lhe dei cinco
filhos para a sucessão de sua casa; Você tem boa capacidade para a
governar daqui por diante; vai sendo tempo de eu perder a beleza e de
Você ficar sofrendo o jugo de uma mulher velha 6. Você dava-se-lhe se eu
fosse para um convento?» Ele em ar sério me disse: «É fatal despropósito;
sim, dava-se-me muito». Eu quando comecei a dizer-lhe aquilo, que
repentinamente me lembrou, não foi com total tenção de o fazer, mas
no acto que acabei de lhe dizer fiz tenção de ver a resposta que ele
me dava, para com ela tomar a minha resolução, mas como me deu aquela
não me passou mais tal pela imaginação. Mas como eu o amava muito,
cresciam-me também cada vez mais os desejos que eu tinha da sua salvação
dele, de sorte que como naquele tempo, pela misericórdia de Deus, não
lhe conhecia vício algum, eram as minhas petições continuas a Deus
para que mo salvasse e não lhe punha condições, dizendo: «Senhor,
este homem que eu amo tanto nesta vida, salvai-mo, seja como for, para
vos gozarmos ambos na outra, eternamente.» Tinha quase continuadamente
este pensamento, e às vezes passava a parecer-me delírio, porque
chegava a levantar-me muitas vezes no dia da cadeira em que estava
assentada na minha casa, ia ao oratório dar este recado ao meu Senhor
Crucificado que nele tinha, dizendo: «Senhor! Salvação do Conde de
Atouguia, seja como for!» Isto me sucedeu vendo-o moço e com boa saúde;
ao menos não tendo nele coisa em, que lhe temesse perigo, porque só
tinha moléstia de estômago. Passado
pouco tempo escreveu-me o Padre dizendo-me que como eu lhe pedia o exercício,
de alguma virtude, ele me recomendava o zelo da salvação das almas, e
que este me não era impróprio, porque não era só reservado aos
pregadores; que todas as pessoas de qualquer estado o podiam exercitar;
com o conselho e bom modo se podiam evitar muitas ofensas a Deus, e que
estes bens repartidos por amigos e por pessoas que os necessitassem,
supriam o lugar de sermões; e que esta era a virtude que ele muito me
recomendava que eu tivesse, porque esta todos a podiam ter nesta vida
sem serem sacerdotes. Indo
eu dali a alguns dias a casa do meu tio Óbidos, visitar a Condessa, sua
mulher, achei com ela seu tio, o monteiro-mor Velho 7, e a Condessa de Óbidos,
diante dele, voltando-se para mim, disse: «Ó Condessa de Atouguia, você
quer morrer mártir?» Respondi-lhe que sim. Perguntando-lhe eu a causa,
disse-me que andava uma profecia de que no mês de Janeiro havia de
haver em Lisboa sangue de Mártires, de Fidalgos e Senhoras, ao que a
Condessa acrescentou, que se a degolassem que estava pronta para o martírio,
mas que se lhe metessem caninhas pelas unhas, que para esses vagares não
sabia se teria constância. Estivemos ali rindo e brincando com a tal
profecia, mas nem eu soube de quem era nem averiguei se nisso havia
maior certeza; por certo que me não lembrou que se verificaria em nós,
e indo para casa de meus pais, assim mesmo brincando com a tal novidade
os convidei dizendo-lhes: «V. Ex.as querem morrer Mártires?»
e depois lhes contei o que me dissera a Condessa de Óbidos. Dali a nada
entrou a Duquesa de Aveiro e digo-lhe: «Você quer morrer mártir?»
Caindo-lhe lágrimas ela me disse: «Arrenego de tal novidade», e eu
rindo-me da sua fraqueza lhe dei uma vaia, dizendo-lhe: «Já sei que
você não tem espírito de Mártir», mas isto brincando, sem jamais
assentar que a profecia seria certa, e com toda a sinceridade falei nela
sem rebuço e não a tomando certamente para nós. Decorrendo
algum tempo depois disso escreveu-me o Padre Malagrida a carta de instrução
de cada mês, que se repartia pelas três; esta foi a última que nos
escreveu. Era formada sobre a eleição de estado e sobre as duas
bandeiras, perguntando qual queria seguir e convidando-me para a de
Jesus Cristo, em que dizia: «Breve penar para eterno gozar». Eu
respondi: «À vista da instrução deste mês, queira V. Rev.ma
alistar-me logo na bandeira de Jesus Cristo, que com muito gosto
escolho, fazendo total renuncia à de Satanás». Como
estávamos no mês de Dezembro de 1758, ainda que o Padre não podia
pregar nem confessar, como a sua conversação sempre era de Deus, tinha
vontade de o ouvir falar espiritualmente, já, que não podia fazer os
exercícios com ele. Como a Duquesa de Aveiro e seu marido estavam em
Azeitão, a eu nunca tinha visto o palácio 8 que eles lá tinham, assim
como a casa que o conde de
São Lourenço, D. João de Noronha, também lá
possuía, onde costumava ir com o Padre, fui eu mesma falar ao dito
Conde e disse-lhe se me queria fazer o favor de me mandar lá pôr
pronta a sua casa, para lá ter o Padre Malagrida, a quem eu queria
visitar, e que como a Companhia estava malquista, não queria pedir
conselhos se devia lá ir, para que me não dissessem que não, mas que
emprestando-me ele a casa para o Padre, eu iria para a dos Duques de
Aveiro, meus tios. Como se não repararia que eu os fosse ver, e daí
podia eu aproveitar-me da vizinhança do Padre, sem que isto se
estranhasse em Lisboa, o Conde respondeu-me que mandaria pôr pronta a
casa. Fiquei muito contente para avisar o Padre que fosse; lá, e indo
da minha casa para a da minha irmã, a marquesa de Alorna que estava
doente, encontrei um corcovado, que costumava trazer-me cartas do Padre,
quando estava em Setúbal. Fiquei. muito contente por achar aquela boa
ocasião de o avisar sem mandar lá um criado. Perguntei-lhe: «Como está
lá o Padre?» Respondeu-me o corcovado: «Pode mandá-lo saber a Santo
Antão 9, onde ele neste instante acaba de chegar». Fiquei pasmada, e
muito contente de o ter em Lisboa, com tenção de o ir visitar no outro
dia de manhã a Santo Antão, e dali mesmo eu a minha mãe mandámos a
Santo Antão o nosso escudeiro a saber dele, e trouxe por resposta que
lhe não falara e que o Padre lhe tivera mandado dizer pelo Pde. Diogo da
Câmara, que não vinha falhar-lhe porque estava em oração pelas
nossas casas e famílias. Dali a pouco tempo chegou meu pai e se demorou
pouco, porque ia para um baile; minha mãe e eu ficámos ali com a
marquesa de Alorna, minha irmã, e esgotada a conversação pegámos em
luzes e começámos a ver as pinturas da sua casa; entre elas nos demorámos
em admirar uma que me lembro era a Agonia do Senhor no horto, muito bem,
retratada a aflição do Senhor, sustentado nela por dois anjos. Aí
estivemos ambas admirando a pintura como bem feita, mas [notámos] que o
anjo que confortara fora só um e que o pintor pusera dois, que era só
a impropriedade que tinha o painel, tudo o mais estava excelente ao
nosso parecer. E daí fomos para as nossas casas, sem nos vir ao
pensamento nenhum mal para nós; eu muito alvoroçada para ir na manhã
seguinte visitar o Padre. Assim me deitei na cama, porém sem ter nada
andei às voltas nela e não podia dormir; o Conde de Atouguia também,
sem estar doente, o senti por vezes acordado a às voltas; dormiu pouco. Pelas
seis horas da manhã, que era dia de Santa Luzia, a 13 de Dezembro de
1758 nos veio chamar um criado grave, que tinha criado o Conde de
Atouguia, chamado Diogo de Morais, dizendo: «Senhor Conde, acorde, que
está a casa cercada desde as três horas da noite e parece coisa de
prisão». 0 Conde calçou as chinelas e vestiu uma roupa de chambre e
saiu para a casa de fora. Entrou logo outra vez para o quarto onde eu
estava, com um Desembargador o qual me achou ainda na cama, onde me
intimou a ordem que tinha de levar o Conde preso, a que a Rainha D.
Mariana Vitória, que então estava governando, me ordenava que ficasse
eu também presa em minha casa, com toda a minha família da qual seria
obrigada a dar-lhe conta. Eu tinha em casa perto de quarenta pessoas, de
que fiquei responsável. Recebi
a ordem, cheia de respeito, sem nenhum remorso na consciência de culpa
contra ninguém, muito menos contra as Pessoas Reais, nem contra a
Rainha D. Mariana Vitória, a quem eu amava, como o meu coração, e lhe
tinha uma natural inclinação. Perguntei ao Desembargador para onde me
levava o Conde, e se lhe podia ir de comer da sua casa. Respondeu-me que
ia para a Quinta do Meio 10 e que ao mais me mandaria a resposta. Saindo
para a casa de fora e ficando eu só com o Conde, disse em alta voz: «Oh,
Virgem Santíssima, socorrei-me!» e o Conde me disse estas palavras: «Condessa,
não se aflija, – porque não sei o que isto é, mas não pode ser
coisa que valha» e saindo para a casa de fora, assim mesmo despido,
disse ao ministro que ele estava pronto para ir preso e obedecer em tudo
a el-rei. 0 ministro lhe respondeu que podia ir para o seu quarto
vestir-se, para ir com toda a decência, e indo com ele para este fim
foi também logo à sua papeleira, para lhe ver os papéis em que não
achou nada mais que o dinheiro que o Conde tinha para governar a casa,
do qual (o Conde) tirou oito moedas que levou na algibeira, e o mais me
mandou, dizendo-me que desejava ter muito que me deixar, mas que deixava
tudo quanto tinha, e acabado de vestir, disse ao Ministro, que estava
pronto para partir. Este lhe perguntou se queria tornar ao meu quarto
para se despedir de mim, ao que o Conde lhe respondeu que se não
atrevia a pôr os olhos na minha aflição, e partiu, ficando a casa
toda cercada de soldados; e o dinheiro que tinha e me deixou seria o que
bastasse para acabar as despesas daquele mês em que foi preso. Assim
que ele partiu me disseram que o Ministro que o prendeu trazia na mão
duas pistolas, que escondeu quando entrou na minha casa, sendo móvel
bem escusado para intimar a ambos uma Ordem Régia, porque esta infunde
mais respeito aos vassalos honrados do que quantas armas de fogo possam
haver. Imediatamente
depois da partida do Conde de Atouguia me disseram que meu irmão, o
marquês de Távora, Luís Bernardo, que morava perto de mim tinha também
ido preso a que a Quando chegou o meu escrito a
meus pais, ainda eles não tinham cerco em sua casa, imediatamente se
meteram na carruagem para virem para a minha casa, mas as tropas que
guarneciam os caminhos dela não os deixaram passar, por cuja razão
foram para casa da minha tia condessa da
Ribeira, e meu pai, deixando
ali minha mãe, foi direito ao Paço e mandou dizer a el-rei D. José,
que via a novidade de se lhe prender toda a sua família, que não sabia
a razão, mas que ia saber se Sua Majestade queria também dele alguma
coisa, ou se o queria preso, que nomeasse a Torre ou prisão em que o
queria, que. ele mesmo iria meter-se nela. O marquês de Pombal, que lá
encontrou meu pai e lhe ouviu este recado, disse-lhe: «Senhor, sinto a
sua infelicidade, e dali mesmo o mandou preso para a mesma parte dos
outros dois; e quando lhe mandaram tirar a espada por D. Luís da Cunha
para o levar preso, ele lhe disse: «Aqui a entrego a Sua Majestade com
a mesma honra com que sempre a trouxe à cinta e foi para a prisão; porém
D. Luís da Cunha logo começou a tratá-lo com muita grosseria, o que
lhe foi muito sensível. Minha mãe pediu carruagem a minha tia Condessa
da Ribeira para se ir pôr em casa, a qual achou já cercada de
soldados, e meu irmão José Maria de Távora já preso; porque quando
meus pais saíram para fora com tenção de irem para a minha casa, ele
ficou primeiro almoçando na de meus pais, onde assistia, depois foi
mesmo a pé para a minha casa por aquelas terras do Rio Seco; no caminho
encontrou as tropas que iam deitar o cerco à de meus pais, e
perguntando-lhes se aquilo era também com ele, responderam-lhe que sim;
foi preso para onde estavam os mais. Minha mãe teve também ordem de
ficar presa em sua [casa] e a sua família; porém minha mãe sempre
teve guardas à vista, e eu só as tinha à porta. Como se ia já fazendo muito
tarde, e eu sabia que estes e meu tio José Maria de Lorena
11 estavam
todos juntos na mesma casa, e me não vinha o prometido aviso do
Desembargador, se o comer havia ou não ir de casa, resolvi mandar nesse
dia de jantar com toda a decência da minha casa, e que chegasse para
todos; mas eram seis horas da tarde quando lá chegou, e como o
aceitaram, avisei a minha mãe do que tinha feito, e ela na suposição
que os conservariam juntos ajustou de um dia eu o mandar para todos, e
outro dia ela o mandaria, e que conservássemos esta alternativa. Porém
no dia seguinte minha mãe mandou de almoçar, o que já lá não
aceitaram porque naquela manhã os tinham separado a todos e metido cada
um em seu cárcere. Pela uma hora da tarde desse
mesmo dia, chegando minha mãe à janela e avistando uma partida de
cavalaria, disse: «Quem será o miserável a quem ela vai buscar?» porém
dentro de poucos instantes viu que era para ela, e me escreveu dizendo:
«Agora chega o Desembargador João Marques Bacalhau com ordem de Sua
Majestade para me levar para as Grilas; faz da minha parte este aviso às
tuas irmãs 12 e cunhada; se nos não tornarmos a ver nesta vida, seja na
presença de Deus. Tua mãe que sempre te amou e amará». Quando minha
mãe recebeu o decreto para a sua partida para as Grilas, pôs-se de
joelhos, e, pondo o decreto no alto da sua cabeça, disse ao
Desembargador que ela agradecia a Sua Majestade dar-lhe meios tão
seguros para se salvar, e partiu. Vendo-me assim destituída de
tudo quanto mais amava neste mundo, faltando-me a comunicação do Padre
Malagrida, porque nesse mesmo dia foi posto o cerco de tropa aos Padres
da Companhia, eu comecei com mais força a pôr em execução tudo
quanto ele me tinha ensinado na sua santa escola, e oferecendo a Deus
tudo quanto então estava passando, perdoando aos inimigos tão
horrendos danos e testemunhos, e tudo quanto era preciso para a salvação
em tão exorbitante trabalho. Começou-se logo o sequestro em
tudo que era de casa de meus pais, e dai a pouco veio também ordem para
se fazer em todos os bens móveis e de raiz do Conde de Atouguia. Eu,
assim que me vi privada dele, não fiz mais caso da bagatela dos outros
bens que me queriam sequestrar, ainda que fosse tudo quanto tínhamos.
Com todo o despego dei ao sequestro não só tudo quanto o Conde tinha
de seu, mas até o dinheiro que me tinha deixado para comer; e disse ao
Ministro que lho entregava, e que depois disso pedia a Sua Majestade me
desse uma esmola para me sustentar e à minha família presa. Como fiquei sem nada do Conde,
naquela noite me serviu de castiçal para pôr a vela que me alumiava
uma garrafa destas ordinárias de vinho, porque não tinha outra coisa.
Não tinha nada para comprar de cear, de sorte que naquela noite me
mandou a marquesa de Tancos por caridade um saco de pão, dois perus e
um presunto; porque como tudo me tinham levado e não vinha a esmola que
eu, estando presa pedia a el-rei, vi-me em termos de morrer de fome, com
os meus cinco filhos, de que o mais velho tinha dez anos, e as quarenta
pessoas presas da família que tinha em casa. Isto sucedeu só a mim,
porque à duquesa de Aveiro, quando lhe sequestraram na mesma ocasião
os bens do seu marido, lhe mandaram dar três moedas cada dia para se
sustentar e à sua família, enquanto não foi para o Convento do Rato
13. Como no aviso para o sequestro
do Conde de Atouguia que por escrito me mostrou o Ministro, não falava
em sequestrar os meus bens, eu os não dei naquela ocasião, e
valendo-me então da prata do meu toucador, que parte se tinha derretido
pelo terramoto, mandava todos os dias vender desta prata porção que
bastasse para naquele dia eu, meus filhos e família comermos; isto é,
comíamos unicamente sopa, arroz e vaca, até ver se me vinha o socorro
que pedi a El-Rei. Em lugar dele me veio uma grande repreensão do seu
Ministro, mandando-me dizer pelo Desembargador Afonso da Silveira,
executador do sequestro, homem de bom coração e em quem eu conhecia a
violência que fazia em ser mandado a tal diligência; com as lágrimas
saltando pelos olhos me disse que dando parte a Sebastião José de
Carvalho, da exactidão com que eu dera todos os bens do Conde de
Atouguia ao sequestro, ficando sem nada dele, nem mesmo o que me era de
absoluta necessidade, ele lhe respondera que eu nisso fizera bem, mas
que obrara muito mal em não entregar igualmente ao sequestro o que era
meu, e logo o fizesse; porém esta ordem não era por escrito, era
vocal. Eu logo peguei em seis diamantes muito bons que tinha salvado do
fogo do terramoto, e que havia poucos dias que eu tinha ido enfeitada
com eles à casa do dito Sebastião José, e os entreguei ao
Desembargador com as mais coisas do meu uso de roupa branca, vestidos
etc.; só não entreguei a prata que restava do meu toucador, porque
concebi que a ideia seria matar-nos ali todos à fome; portanto dali fui
comendo como acima digo 14.
Entre toda esta aflição, um rendeiro do
Conde de Atouguia que não obstante o Conde lhe dever dinheiro e de o
ver a ele já sem nada e a mim também fez esta guapissima acção de
vir a minha casa ver-me; e quando viu as minhas tristes circunstâncias,
abriu a sua bolsa, em que só tinha doze mil oitocentos, e mos deu para
eu não morrer de fome, dizendo que sentia não ter ali muito para me
deixar, porém que me dava quanto tinha. Respondi-lhe que a dúvida que
eu tinha em lhe aceitar era que me via já sem nada para lhe pagar.
Respondeu-me que não importava e mos deixou. Logo que se prendeu o Conde e
que eu não podia consultar o Pde. Malagrida nem pedir-lhe conselho sobre
as minhas penitências, as acrescentei sem ele, e não dormi mais em
cama mas sim no chão, na tábua dela sem colchão; o comer alem de não
ser outro do que acima disse, desse mesmo escolhi o pior, até que veio
a minha casa um frade de S. Francisco confessar-me, chamado Frei João
da Graça, a quem algumas vezes eu antecedentemente tinha-me confessado
por várias vezes; proibiu-me absolutamente que dormisse ria tábua, e só
me permitiu que dormisse vestida, mas sobre o colchão, e também me
disse que segundo o estado a as disposições em que achava a minha
alma, se fora meu director me daria naquela ocasião a Comunhão todos
os dias. Então lhe contei da permissão que tinha do meu director para
a receber quatro vezes na semana de que não tinha aproveitado senão
duas, mas que agora a faria das quatro, como de facto fiquei fazendo,
durante o tempo que ainda estive em casa, a nela me ocupava em oração
e lição espiritual, entregando-me em tudo a Deus, a quem rogava por
todos, a tudo isto oferecia a Nossa Senhora pelos meus presos, a pela
sua salvação. Numa daquelas tristes noites me
sucedeu um caso muito estranho, a que até agora não sei o que foi.
Deitando-me numa noite sobre o colchão, como costumava, senti sobre mim
um peso que parecia me esmagava, e a este se seguiu um tormento em meu
corpo, que com unhas de ferro me era despedaçada toda a carne dele. E não
sei se Nosso Senhor repartiria comigo nesta forma as dores dos tratos
que, me diziam o Conde estava levando, assim como os mais companheiros,
por que, escrevendo isto, me lembro, que dando-me grande cuidado o temor
que lhe faltasse a paciência para os suportar, ou que neles
desesperasse e lhe prejudicasse a sua salvação, pedia a Nosso Senhor
que lhe diminuísse antes a ele as dores e mas desse a mim, para as
sofrer por seu amor; só as tive aquela noite, mas foi coisa horrorosa,
e não foi em sonho, porque me parece estava acordada, mas não vi quem
me dava aquele tormento; nele chamei por Nosso Senhor, quem me valesse,
e dai por diante rodeava a minha cama com água benta antes de me
deitar. Depois do Conde ir para a prisão algum tempo lhe foi de casa
roupa branca que lá aceitaram, e pediam velas: depois de se fazer o
sequestro nunca mais quiseram lá roupa branca, e só pediram as velas,
que sempre as mandei enquanto me deixaram em minha casa por isso mesmo
é que eu fazia ideia do cárcere ser muito escuro, porque se pediam
para todo o dia. Quando me vinham os portadores
uns atrás dos outros dizer: «Já se arremataram as bestas, agora
levaram a prata, já não há carruagem,» eu tinha na memória toda a
carta de instrução das calamidades de Job, para dizer com ele: «Deus
o deu, Deus o tirou: louvado seja tão bom o Senhor». No meio de toda
esta aflição apareceu-me um pintor, meu conhecido, que me trazia uma
carta do Pde. Malagrida; trouxe-a metida nas costas, entre a camisa e a
pele, e assim passou pelas guardas da casa a as de Santo Antão; porque
ainda não havia a proibição da pena de morte, que se estipulou muitos
meses depois, para não se escrever aos Padres da Companhia nem tratar
com eles, mas eu com a família toda presa não tinha por quem escrever
ao Padre, nem ele a mim, e de tudo se fazia um crime que podia perder o
homem. Nesta tal cartinha me dizia o Padre que esperava que depois de
tantas instruções suas, eu estivesse firme, resignada e constante
nesta grande prova que o Senhor queria fazer do meu amor; e que
remetesse a minha mãe a carta que vinha junta, o que não pude fazer
por não ter modo de lha introduzir nas Grilas; portanto tornei a mandá-la
ao Padre, mas do modo com que ele me escreveu, logo eu temi que o mundo
estava para mim acabado. No dia 4 de Janeiro de 1759;
que era a oitava dos Inocentes 15, e em que fazia três meses justos que eu
tinha visto na Hóstia o que já relatei, me entraram pela porta dentro
dois Desembargadores que tinham vindo em seges do Paço, e me intimaram
a ordem de Sua Majestade para me levarem naquele dia para o Convento das
Religiosas de Sacavém 16 com a minha filha Leonor de Ataíde, e que meus
dois filhos D. Luís e D. Francisco de Ataíde fossem para o Convento de
Rilhafoles 17. Perguntei que faria com a minha filha Clara e meu filho D.
António que tinha 16 meses de idade e ainda mamava na ama. Respondeu o
Desembargador João Pacheco 18, que era o que veio levar-me para o Convento
que fossem também estes dois, de que se não sabia, para o Convento.
Repliquei dizendo que sendo António rapaz, se havia de criar entre Então tornando com eles para
irmos para onde Sua Majestade nos destinava, e para nos separarmos, indo
o mais velho ainda oral convalescido de uma grande doença que tinha
tido, nos metemos nas carruagens, deixando a minha família numerosa
presa e sem socorro algum para comerem, porque até mesmo no dia em que
partimos lho não deram. A graça de Deus me socorreu
com tanta força neste triste lance que me senti com uma desusada constância
e fortaleza, entregando-me toda a Deus, servindo de consolação a
lembrança de que chegando Sua Majestade a tirar-me de minha casa, me
mandasse para um Convento da Religiosas, que tinham sempre lá dentro do
coro o Santíssimo Sacramento. E ainda que no dito Convento não
conhecia nem uma só pessoa, podia lá adorar o Santíssimo Sacramento a
todo o instante; este bem me pareceu tão grande, que supriu toda e
qualquer outra falta de conhecimento, enxugando-se os meus olhos das
continuas lágrimas que deles corriam, desde a hora em que prenderam o
Conde. Assim cheia de fortaleza, à
vista dos dois Ministros e de muita tropa, que cercava a minha casa, e
da partida de cavalaria com o oficial, que vinha conduzir-me, em voz
alta disse aos meus dois filhos Luís de Ataíde e Francisco de Ataíde:
«Vocês têm melhor Mãe, que é Nossa Senhora, a quem roguei os
aceitasse como filhos; Deus os faça mais ditosos do que seu pai e avós,
mas basta que sejam tão honrados como eles, e tão fiéis a Sua
Majestade como eles sempre foram». E metendo-me na carruagem com as
minhas duas filhas, e a ama com o António, em uma sege, que tinha sido
minha, e que já me tinham sequestrada mas que eu lembrei que se podiam
servir dela, visto estar na cavalariça ainda, e assim deste modo, levei
comigo mais aquele filho, arrancando-me eles só os dois maiores; fomos
todos juntos com os dois Ministros, e uma partida de bastantes soldados,
para com estas forças e aparatos se guardar uma infeliz mulher, com
cinco filhos crianças. E como a carruagem em que ia
era a primeira desta nada pomposa procissão, quando cheguei à ponte de
Alcântara 20, mandei parar, para me encomendar a S. João
Nepomuceno
21, cuja
protecção eu tanto necessitava; veio-me logo uma repreensão do
Ministro, dizendo-me que não parasse no caminho por devoções, porque
tinha ordem de me levar direita ao Convento, não obstante eu não ter
torcido nada do caminho. Vindo de Santo Amaro para Sacavém era caminho
direito, assim como o do Livramento 22, onde tinha feito também tenção
de parar, e mesmo à porta rezar a Nossa Senhora e lhe pedir me valesse:
mas para não levar terceira repreensão por estes avaliados defeitos,
com grande mágoa minha passei pelo Livramento sem parar, porém sendo
por isso mesmo mais fortes os rogos que no meu interior fiz à mesma
Senhora. Continuámos na nossa marcha todos até o Campo de Santana,
onde me separei dos dois filhos, que ficaram em Rilhafoles, prosseguindo
eu para diante a minha viagem, mas no dito sítio ainda que não chorei,
quando vi a divisão deste resto de infeliz família, senti na minha
natureza um golpe tão terrível, que me parecia se me arrancava o coração;
mas tudo passou no interior, conservando no exterior a minha fortaleza
começada, sem deitar uma lágrima. Continuando assim o caminho para
Sacavém com os dois filhos, assim que de longe começámos a avistar o
Convento, Leonor que tinha seis anos de idade começou a chorar muito, e
eu, parecendo-me que eram saudades de sua aia, a quem ela era muito
pegada, e não achando com que lhas tirar, ao menos pretendi
moderar-lhas, dizendo-lhe que a sua aia lhe não merecia tantas lágrimas
por que ela mesma a quisera deixar e não vir com ela, a que assim devia
enxugar as suas lágrimas, e com esta razão que a menina aceitou
consegui calá-la. Chegámos ao Convento à hora
das Completas 23, e antes de entrar para dentro me lembrou que tinha
algumas dívidas pequenas, que, como as ia pagando enquanto tinha a
minha casa, que as não deixara declaradas. E dizendo eu ao
Desembargador que eu não era criança, e que como tinha estas dívidas
que não declarara e não sabia as ordens com que ia para ali, nem o
tempo que ali estaria, desejava papel e tinta para as declarar antes de
entrar, respondeu-me ele que não tinha ordem alguma apertada, senão só
de ir para aquele lugar, e que seria por poucos dias. Assim que entrei para dentro,
pus-me de joelhos e beijei a mão à Prelada, como sua súbdita, e
vendo-a a ela a às freiras chorar, lhe disse muito firme e enxuta que não
chorasse porque eu ia àquele santo lugar consolar-me; e perguntando-lhe
que ordens havia ali a meu respeito, respondeu-me que para não tratar
nem escrever a pessoa alguma de fora; assim me vi presa em Sacavém como
traidora sem o ser. E para triunfo da Graça de
Deus que é quem pode tudo, e para o crédito da doutrina que me tinha
dado o Padre Gabriel Malagarida da Sagrada Companhia de Jesus, digo que
quando me levantaram este horrendo testemunho, havia quatro anos que eu
ouvia a sua santa doutrina, de que três fui formalmente sua dirigida e
pela sua direcção, ajudada da graça de Deus, nos ditos três anos, até
o dia em que entrei em Sacavém, não tinha pecado venalmente com advertência,
por cuja razão não achei impróprio comungar três vezes na semana, e
no dia que el-rei levou o tiro, pela manhã, que era no domingo, tinha
eu ido confessar-me à Barraca do Rato dos frades de S. Francisco, que
bem prova a minha inocência no dito caso, porque era uma antecedência
nada própria para um delito tão horroroso; e havendo três anos que eu
não cometia pecado venal com advertência concorreria eu para um tão
mortalíssimo! Louvado seja Deus, que nem eu, nem meu marido, nem meus
pais, nem meus irmãos, soubemos de tal, e que se padecemos, todos fomos
inocentes. Fechada a porta do Convento a
fechada eu nele, soube que o Desembargador João Pacheco que para lá me
levou, foi deixando às Religiosas este pregão: «Aí fica a Condessa
de Atouguia; melhor fora que sua Majestade em lugar dela lhes mandasse a
V. R.as cinco moios de trigo.» Notas: 1. O Convento de S. Francisco da Cidade, fundado em 1217, foi completamente destruído pelo terramoto de 1755. Ficava na zona que é ocupada actualmente pelo bloco formado pelo Governo Civil de Lisboa, o Museu do Chiado e a Faculdade de Belas Artes. Começou a ser reedificado logo a seguir ao terramoto mas a sua construção foi abandonada em 1839, com a demolição do que já tinha sido edificado. (regressar) 2. As Avé Marias eram os três toques dados pelos sinos das Igreja, ao nascer do dia, ao meio dia e ao anoitecer, e é utilizado aqui, como normalmente o era, para referir o fim da tarde. (regressar) 3. Segundo parece o conde era oficial da Guarda Real dos Archeiros, que compreendia duas companhias, uma Portuguesa e outra «Alemã». Os serviços no Paço tinham uma rotatividade semanal. (regressar) 4. Rosa Divina é o Rosário, rezado normalmente à noite, e demorando algum tempo, por ser cumprido pela recitação de cento e cinquenta Ave Marias e de quinze Pai Nossos, intercalados em cada dezena. (regressar) 5. O criado particular de D. José, era cabo no Forte da Cruz Quebrada quando em 1751 foi promovido a capitão de Ordenanças. Em Setembro de 1755 foi promovido a Sargento-mor (Major) no Regimento dos Privilegiados da Corte, um dos regimentos de Ordenanças de Lisboa. (regressar) 6. A condessa faria 36 anos no dia 24 de Setembro! (regressar) 7. Fernão Teles da Silva (n.1698), tio materno da condessa de Óbidos, filho do 4.º conde de Tarouca, o embaixador de D. João V na Áustria, era monteiro-mor em sucessão do sogro. (regressar) 8. O Palácio fica em Vila Nogueira de Azeitão, e foi onde foram presos os duques da Aveiro em Dezembro de 1758. Mais tarde, em 1759, foi onde ficaram retidos alguns Jesuítas até à sua expulsão de Portugal. (regressar) 9. O convento de Santo Antão o Novo, o actual Hospital de São José, começou a ser edificado em 1579, tendo recebido os primeiros membros da Companhia de Jesus em 1593. (regressar) 10. A Quinta do Meio, comprada por D. João V ao conde de São Lourenço, assim como uma outra quinta comprada anteriormente, em 1726, ao conde de Aveiras, conhecida pela Quinta de Baixo, compõem o que é actualmente o Palácio de Belém, residência oficial do Presidente da República portuguesa. Na Quinta de Cima foi construído o Palácio da Ajuda. Os prisioneiros ficaram encarcerados no pátio dos Bichos. (regressar) 11. José Maria de Távora (n.1726), irmão mais novo do marquês de Távora, cónego, cavaleiro da Ordem de Malta, esteve preso nas prisões da Junqueira, onde endoideceu. Como o apelido Távora foi proibido, o apelido usado pelos membros da família passou a ser o Lorena. (regressar) 12. D. Ana (n.1727), D. Leonor (n.1729), marquesa de Alorna, e D. Inês (n.1731). (regressar) 13. Convento de freiras trinitárias, construído no século XVII, tendo como padroeiro Luís Gomes de Sá e Meneses, por alcunha o Rato. (regressar) 14. Num papel à parte; intercalado no manuscrito do Sr. Conde de Bertiandos, vem o trecho que segue, que pela linguagem e estilo deve ter pertencido certamente ao original. «Assim que me vi sem nada começaram os desenganos deste
mundo a crescer, porque as minhas criadas, que eu cuidava eram mais
minhas amigas se despediram do meu serviço a se queriam ir embora,
sendo a primeira a minha aia, que me tinha criado, o que me causava
grande aflição não poder condescender com elas pela ordem que tinha
de dar conta de todas. Os criados não foram assim e todos eles
me mostraram grande afecto, e um hóspede fez proezas de caridade
comigo, porque podendo-se ir logo embora por não ser criado, disse-me
que por isso mesmo me não queria deixar, e que, como estava solto e
podia sair fora, o queria fazer para me servir em tudo, e o fez. Era
homem muito nobre, irmão de um criado meu e se chamava Estevão
Caldeira».
15. A Oitava dos Inocentes, porque no calendário litúrgico o dia dos Santos Inocentes se comemora oito dias antes, no dia 28 de Dezembro. (regressar) 16. O Convento das Grilas, como era conhecido o Mosteiro das Religiosas Descalças de Santo Agostinho, fundado pela rainha D. Luísa de Gusmão, mulher de D. João IV, ficava no local onde era a Manutenção Militar na actual rua do mesmo nome, em Xabregas, na zona oriental de Lisboa, na zona do Grilo, onde existem a Rua e a Calçada do Grilo. (regressar) 17. O Convento de São Francisco de Paula, em Rilhafoles, da Congregação do Oratório de São Filipe Nery, foi fundado em 1717. É actualmente o Hospital de Miguel Bombarda, o antigo manicómio de Lisboa, conhecido durante muito tempo por Hospital de Rilhafoles. Fica na Rua de Gomes Freire, perto do Campo dos Mártires da Pátria, o antigo campo de Santana. Quer isto dizer que os filhos da condessa foram para um convento onde seriam convenientemente educados. (regressar) 18. O Desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcelos era natural da Baía, de pais originários do Norte de Portugal. (regressar) 19. O Desembargador Eusébio Tavares de Sequeira, natural de Coimbra, era o procurador dos réus. (regressar) 20. A Ponte de Alcântara atravessava a ribeira do mesmo nome, a actual Avenida de Ceuta, ligando aquilo que era Lisboa propriamente dita à zona da Junqueira e Belém, os arrabaldes ocidentais da capital. (regressar) 21. Na ponte de Alcântara havia uma estátua de São João Nepomuceno erigida em 1743, e de autoria do italiano João António de Pádua. (regressar) 22. O Convento de Nossa Senhora do Livramento, da Ordem da Santíssima Trindade, situava-se em Alcântara, tendo sido construído em 1679 e reedificado em 1698. A rainha D. Mariana Vitória era muito devota da imagem de N.ª Sr.ª do Livramento. (regressar) 23. A hora das Completas é a última hora canónica. Quer dizer que o grupo entrou no Convento mesmo antes de ele fechar. (regressar)
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