Almeida Garrett |
DISCURSO DE ALMEIDA GARRETT
Discurso proferido por Almeida Garrett em 8 de Fevereiro de 1840, na Câmara dos Deputados, na discussão da "Resposta ao Discurso da Coroa", em resposta a José Estêvão, conhecido como o Discurso do Porto Pireu, alusão a uma passagem da intervenção do orador anterior. |
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Não
é isso o que a nação quer, não são dessas tredas louvainhas as que lhe
afagam os ouvidos: que se desenganem os seus cortesãos. A Nação bem sabe
que, se o Povo fez serviços à causa da Liberdade, também a classe média
os fez, também a aristocracia – e também o trono. Digam a verdade,
digam-na toda; que a metade só da verdade é tinia mentira inteira. A Nação
não distinguiu classes, não as mediu, e sobretudo não desconfiou,
não abriu devassa de suspeitas, quando se levantou em massa – e essas sim
que eram virtuosas massas! -para cair sobre o despotismo. Em
torno do estandarte que se hasteou na Terceira, que desembarcou no Mindelo,
vinha reunir-se o peão com sua nobre espada, o nobre com sua espingarda de
soldado raso. Vimos o desembargador sobraçar a beca para carregar o obus; e
curvar o joelho, na linha de frente, o fidalgo mais preocupado de sua
linhagem histórica. Tais questões de precedência ou preferência, não as
admitia então a Nação porque só queria recuperar a sua liberdade; não
as admite agora porque só quer gozar da sua liberdade. Não
por falta de diligências que agora se não façam, não por falta de esforços
que então se não fizessem. Bem se agitou, bem se declamou, bem se
trabalhou para introduzir em nossas pequenas fileiras o gérmen de discórdia
que já então andava por essas cabeças que sempre me obstinei a chamar
louca, quanto ainda hoje me obstino por lhes achar inocentes os corações.
Bem trabalharam, repito; mas a Ordem triunfou e por isso a Nação venceu. Oh!
virtuosas massas eram aquelas! Ide agora; ide, lançai-as outra vez nas
praias do Mindelo, levantadas desse azedo fermento com que as levedais a
cada instante, e vereis se têm a mesma virtude. - Hão-de tê-la se o
perigo voltar, porque nessa hora os amassadores fogem, o fermento
abate, e só fica a substância compacta e sã da lealdade e do valor de um
povo generoso. O povo não os crê aos falsos publicolas, e respeita e
venera os seus caudilhos verdadeiros. «Ide, lhes responde ele, ide, dizer
aos Suíços que derrubem a estátua de Guilherme Tel, aos Americanos dite
despedacem a do seu Washington, aos Romanos que despenhem da rocha Tarpea as
dos seus Brutos e Camilos. Ide-lhes pregar que a si sós, e não a seus
ilustres capitães, devem a liberdade: endoudecei-os se podeis. Nós
queremos adorar a espada ferrugenta do Condestável, queremos prostrar-nos
diante dos túmulos de João I e de Pedro IV. Queremos por gratidão,
queremos por interesse, porque na hora da angústia bem sabemos com quem nos
havemos de achar.» Ao
menos se estes solecismos políticos não fossem tão escandalosamente mal
soantes! Mas, com a ânsia de deprimir o mérito verdadeiro, de converter o
respeito público em ódio, proferem-se coisas que pasma. Tais há que até
são injuriosas aos próprios que as dizem, e que, se as dissesse outrem,
para si as tomariam por afronta imperdoável e atroz. Disseram
– e como se lhes não engasgou a blasfémia na boca! disseram que eram
maiores os serviços feitos à causa da Liberdade pelas autoridades do
usurpador que tinham alguma indulgência connosco, do que os outros todos,
do que os próprios serviços do campo de batalha! Estas
palavras proferiram-se: é tarde para as negar: gravaram-se-me no coração
para sempre: registou-as o Povo no seu livro grande, a memoria das gerações
que nunca se perde. Ide dizê-lo a esses que nos esmolam ás portas porque
gastaram quanto tinham para nos socorrer e defender! Ide dizê-lo ás viúvas
dos que morreram no campo da honra 1 Ide dizê-lo aos órfãos dos que
expiraram no patíbulo não menos honroso! Ide, que vo-lo agradeçam! São
desses desvarios, são desatinos como esses os que, tanto ou mais do que a
absurda e impossível lei das indemnizações, têm endoudecido as gentes, e
fomentado a desordem das províncias, espécie de anarquia de bairro que
trouxe a tirania de aldeia, assim como a grande anarquia dos povos traz a
grande tirania dos reis. Bem chamou um amigo meu a este estado das nossas
comarcas, o feudalismo dos valentões. Responderam-lhe com
banalidades, invectivaram-no com afrontosas suspeitas. Eu quero para mim
parte do vitupério, porque a mesma expressão adopto, porque faço a mesma
asserção. Que lei tinham os antigos senhores feudais? A de chamar seu a
tudo à roda de si, até onde chegava aponta de sua espada. - Qual é o único
direito que reconhecem esses novos barões feudais das nossas terras? O de
chamar seu a tudo à roda de si até onde alcançam as bocas de seus
arcabuzes, os bicos de suas baionetas: outra diferença não vejo entre
estes dois feudalismos, senão a da hipocrisia da parte dos modernos: porque
os antigos criam piedosamente no seu direito; os nossos sabem, professam e
pregam o contrário do que praticam. Et consules vident!
E nós vemos e tolerámos, e por coroa de vergonhas,
havemos de ir dizer à Rainha, nessa resposta, que o país está tranquilo e
feliz! E
porque houve um homem honesto e corajoso que ousou dizer alto a verdade,
apedrejam-no das mais ponderosas calúnias. Foi o meu amigo o Sr. Deputado
por Beja a quem, por expor, e propor remédio para, o verdadeiro estado de
Portugal, – de todos os crimes acusaram, até de convidar os estrangeiros
para nos virem conquistar! Sem remorsos, sem consideração por um homem
fraco e valetudinario, um lavrador de nenhumas pretensões, modesto, e que não
tira o lugar a ninguém pelo pouco que na sociedade quer ocupar, nele
personalizaram o Evangelho da Ordem tão aborrecido, vestiram-no com a púrpura
do escárnio, coroaram-no dos espinhos da calunia, empunharam-lhe o ceptro
de cana da irrisão, expuseram-no em uma varanda de ignominia, e bradaram ás
turbas concitadas: «Ecce homo!» Eis aí está quem vos quer vender
aos estrangeiros! A
afronta não recaiu sobre o afrontado, toda irá para as faces do que nesta
hedionda e sacrílega farsa se atreveu a ser Pilatos!. . . lave embora as mãos
em quanta agua tem o mar. Não
tinham esse propósito, – não asseveravam tais coisas, – era um modo de
argumentar, uma suposição oratória... Assim se evadem depois a uma
responsabilidade moral que era mais corajoso ao menos ter a desfaçatez de
arrostar. Sabem
que é falso o que dizem; para que o dizem? Suspeitam-no? Pois com meras
suspeitas se acusa em matéria tão grave? - E suspeitam-no como, com que
fundamento? Apontai um único indício, o mais leve. Temos saudades do
despotismo, dizeis. Nós! saudades do despotismo nós! Reparastes bem nestas
caras? Vistes as vossas ao espelho da consciência, antes de proferir tal? Para
tais acusações, por tais acusadores, o desprezo é a única resposta.
Julgue Portugal entre nós, julgue, sem mais alegação, entre os autores e
os réus, que bem nos conhece a todos. Que
haja quem tenha saudades do despotismo nesta terra! Não se receia, não se
crê senão dos que já foram validos e fautores do despotismo. Aonde esses
estão, não sei. - Sei que não estão aqui no centro. Ah!
que se tais saudades nós tivéssemos, bem fácil nos era fartá-las, e
pronto. Ah! que se tal desejássemos, não estaríamos aqui há quatro anos
combatendo a anarquia todos os dias; bradaríamos também com os
desordeiros, ajudá-los-íamos em suas loucuras, excitá-los-íamos em seus
desvarios, porque no fim deles, nós sabemos decerto, nós infalivelmente
contámos que está a tirania E
com tudo, liberais, grandes, generosos, portugueses verdadeiros, eles! Eles
sós; não se passa alvará a mais ninguém A justiça politica, o espírito
essencialmente anti-exclusivo, anti-faccioso da nossa doutrina, nos fez
proclamar a necessidade de restituir aos cargos públicos os que, por mera
diferença de opiniões constitucionais, os tinham perdido - assim como nos
fez desejar ver sair da urna os nomes honestos e distintos de todos os
partidos. Eram verdadeiros os nossos desejos, eram sinceras as nossas
proclamações? Aí está o acto Real de 4 de Abril aconselhado por um
ministério Ordeiro; aí estão as listas Ordeiras da passada eleição em
que aparecem confundidos os nomes da direita e da esquerda. Aí está
finalmente a lei proposta pelo centro na última sessão, só por ela
sustentada e por alguns poucos generosos ânimos da esquerda da Câmara! Aí
estão finalmente os actos do ministério Ordeiro, as suas nomeações, as
suas escolhas. Os
grandes crimes desse ministério eram não ser exclusivo; e todavia os
exclusivos clamavam para a direita: «Uni-vos a nós, homens da Carta,
ajudai-nos a esmagar este centro presunçoso: nós é que somos gente
liberal e generosa: tanto que até tínhamos tenção de enviar uma mensagem
ao Trono para serdes amnistiados.» Não
serão os Ordeiros, não podem ser eles de certo, os que se opunham a tão
fraternal união. Especialmente eu aqui posso dar testemunhas de quanto me
esforcei o ano passado por que se organizasse um ministério de fusão, por
que a direita e a esquerda conviessem em princípios comuns de governação,
para que assim acabasse esta guerra sem nome, sem fim, sem glória, que é a
nossa desgraça e a nossa vergonha. Oh!
porque não aceitaram o convite! Ainda é tempo; juntem-se para esmagar o
centro. Por esse modo, a troco dessa reconciliação, o centro folgará de
ser aniquilado. Perdoávamos-lhes a morte se fossem capazes de no-la dar
assim. Não era isso melhor – e mais fácil do que estar a levantar essas
calúnias que nos dão vida, porque todos as conhecem por tais? Para
que é pintar estes Ordeiros, tão poucos e tão fracos, urdindo conspirações
gigantescas para terríveis reacções? Já armando forcas, já afiando
cutelos! - Será para ter o gosto de nos darem aquele caritativo conselho do
outro dia: «Olhai que haveis de ser vítima deles!»... O orador foi de novo interrompido pelo Sr. José Estêvão, que disse: «Declarei que lhes havíamos de perdoar.» - O orador continuou: Guardem
o seu perdão, que lho rejeitamos; não queremos amnistia: nesse juízo nem
alegar queremos, não lhe reconhecemos competência. Queremos
ser julgados pelo merecimento dos autos e no tribunal da Opinião
nacional. Subam os feitos da nossa vida, dos nossos escritos, das nossas
falas. Mostre-se um facto, um dito, um gesto que indique o pensamento de
querermos apelar para esses meios bárbaros de decidir questões politicas. Os
professores do direito público da guilhotina, os que querem ilustrar a nação
à luz das lanternas, os publicistas canibais, os jornalistas
hotentotes... vejam aonde os acham... no centro bem sabem que não. Quanto
a mim porém, a mim pessoalmente, nenhuma destas calúnias me ofendeu.
Calejei há muito a paciência no espicaçar dessas agulhas ferrugentas:
desprezo os que se aviltam a negociar nesse tráfico negro, que mercadeja de
reputações tão desalmadamente como os liberalíssimos negociantes
de escravos comerceiam dos corpos e almas de seus semelhantes. Piratas ambos
que a civilização vai castigando, e no bando de cujo império os veremos
postos em fim, desaforados e proscritos. Por mim, me não importa o seu Coaxar
de rãs em lodaçal imundo. Os
indivíduos morrem; depois da morte vem a justiça, e começa a imortalidade
das famas honradas. Eu não sou materialista religioso nem político, espero
salvar a minha alma em Jesus Cristo, e o meu crédito na lembrança dos
Portugueses: nessa esperança certa de ressurreição adormeço tranquilo ao
som dos uivos infernais com que presumiam fazer-me desesperar nesta hora que
cuidaram de morte. Mas
não é assim das crenças e opiniões políticas; essas não morrem, essas
precisam desagravadas em vida dos que a professam, e por isso as vim hoje
defender, e aos meus irmãos em doutrina, dos traiçoeiros ataques de seus
inimigos. Por mim, ladrem todas as três gargantas do cão infernal, que nem
me importa açaimá-lo de força, nem uma sopa lhe hei-de deitar para lhe
calar um latido. Como
cidadão nunca renunciei um direito, nem que me custasse a fazenda, a vida,
a pátria: tenho-o provado nos cárceres, no exílio, na miséria... Como
súbdito nunca faltei a uma obrigação: e não menos duramente asselei a
minha lealdade... Como
português, nem um pensamento leve, momentâneo, – chegou a cruzar-me
ainda no cérebro, de que não possa vangloriar-me à face do mundo... Como
funcionário público, quis minha boa estrela que ainda não estivesse em
lugar a que pudessem chegar nem as suspeitas da inveja... Fraco
homem de letras sou, não presumo delas; mas nunca prostitui a minha prosa
numa mentira, os meus versos numa lisonja... Falem esses opúsculos que a Nação
portuguesa ainda tem a indulgência de ler. Fraco
soldado fui, o último, o derradeiro dessa falange em que tantos morreram
para nos imortalizar a todos. Mas nem fiquei (*) nos bailes de Paris
ou nos pasmatórios de Londres, em quanto os meus compatriotas vinham
encerrar-se nos débeis muros do Porto; nem a minha mão, apesar de imbele e
doente, recusou pegar na espingarda de soldado, para ficar nas reservas de
França e de Inglaterra, manejando a pena censória que tudo achava mau
quanto se fazia pelos que expunham a sua vida por eles. Cobri-me do vestido
grosseiro, nutri-me do pão grosseiro do soldado raso, nunca tive outra paga
ou outra etapa, fiz como os outros sem ser valentão; e a débil pegada que
o meu obscuro pé imprimiu nas praias do Mindelo, há-de ficar gravada na
historia, como a dos bravos cujos heróicos feitos rodeiam de uma aureola de
glória os fracos serviços de seus honrados companheiros que, para o comum
empenho, não deram pouco no que deram porque era quanto tinham. - Mas
aqueles podem pleitear serviços connosco, e não o fazem! Quem são esses
que vêem a juízo com as suas preferências? Agradeçam-me que lho não
diga, que lhes não pergunte aonde estavam, que lhes não prove um
vergonhoso álibi que de vis acusadores os faça réus mais que
infames! E
todavia, Senhores, não é tanta minha professada abnegação que me não
doesse, e muito; quando até nas afeições privadas, nas simpatias do coração
me quiseram ofender, porque inocentemente citei o nome de um meu ilustre
amigo - bem como pudera citar muitos outros nacionais e estrangeiros -, para
provar que nem era inconstitucional, nem incurial que entrasse em nova
administração um membro de outra que as votações parlamentares tivessem
obrigado a deitar os negócios. Acertaram-me
com o lado vulnerável, confesso; porque em toda a minha vida pública e
privada – digo-o alto e altivo – nunca traí um amigo, nunca desacatei
um amigo, nunca me esqueci de um favor, de um cumprimento, de uma atenção
leve e de mera civilidade que uma vez me fizessem. Posso discordar em opiniões
dos meus amigos; quero essa liberdade, não a dou por coisa alguma; alterar
os meus sentimentos, falar, obrar contra eles, nunca. Têm-no feito a mim, não
o retribui, não o retribuirei jamais. Pois
doeu-me a insinuação maldosa e má. E mais bem sei que aquele meu amigo
velho de muitos anos, está bem certo de quem o deseja honrar, e de quem
tantas vezes procurou desonrá-lo - de quem neste mesmo lugar, no seio da
representação nacional lhe fez atrocíssimas acusações, de quem o
defendeu delas. De qual seja a gratidão das facções nenhum homem ainda
levou mais completo desengano neste mundo - quando nas ruas de Lisboa a insígnia
brilhante que em seu peito testemunha dos serviços feitos à pátria, da gratidão
do Trono e da Nação - apenas pôde salvá-lo de receber no mesmo peito a nova
condecoração que lhe iam entalhar . . . Mas
para que é falar tão solene e taro deveras? Perdoe-me a Câmara pelo tempo
que perdi em responder sério a meras ironias de gracejo, picantes apenas
pelo sal ático que lhes deu sabor tão fino. Áticos motejos
certamente, galantes em sua própria mordacidade, por mais que diga essa
gente de ruim gosto e paladar depravado, que nem a doida elegância do
estilo de Alcibíades lhe quer achar, nem sequer a crapulosa mas poética felicidade
do género aristofanico! Valha-me
Deus! Pois não o declarou, desde o princípio do seu discurso, o nosso
principal acusador? E eu que só agora reparo nisso! Não declarou ele logo
que todos os pecados dos Ordeiros tinham sido cometidos nos deliciosos
sonhos do porto Pireu, onde como doidos nos achou a imaginar venturas, poder
e mando? E sobrou-lhe o juízo, a ele, chegou-lhe a caridade para nos curar. É
verdade, confessamo-lo estávamos sim no porto Pireu quando vendo entrar
certas caravelas suspeitas, apesar da bandeira Constitucional – monárquica
com que navegavam, não conhecemos, pela mastreação e feitio do casco, as
terras donde vinham; e só vimos, ao descarregar, que era desordem, anarquia
e ambição o que lhe pejava o cavername. - Descemos curados do porto Pireu,
e sem querer mal ao médico. Mas
não fomos nós os únicos que estivemos no porto Pireu. Lá estavam sem dúvida
os que vendo entrar esses bojudos galeões carregados de urnas e de votos,
de actas e de escrutínios, calculando mal a aura popular que lhes enfunava
as velas, imaginaram que toda aquela carga era sua, correram à alfandega,
fizeram os gastos do despacho, e só conheceram a pequena parte que tinham
na sociedade quando viram chegar os donos a tomar posse da maior porção da
carga. No
porto Pireu estavam os que supunham que nenhum poder era possível senão o
seu nesta terra; e que a Nação se havia de levantar em massa virtuosa,
cada vez que o Chefe do Estado ousasse quebrar o que, em sua modéstia, como
privilegio exclusivo se arrogavam, chamando fosse quem fosse aos conselhos
da Coroa, sem ordem ou, pelo menos, sem consentimento de suas altas potências. No
porto Pireu estavam, mas com má e perigosa doidice, os que não duvidaram
transtornar a ordem pública, fazer correr o sangue pelas ruas para que não
entrasse no ministério um homem fortemente suspeito de Ordeiro a quem
declaravam inimigo do Povo e assassino da liberdade - e que daí a pouco
chamaram inimigos do Povo e assassinos da liberdade aos que tiveram a menor
dúvida sobre a conveniência desse mesmo ministério. No
porto Pireu estavam os que, sem virtudes... - ou com elas, de toda a parte
importavam calúnias e injúrias que vendiam a retalho; mercadejando da
reputação dos homens de bem; e que, na momentânea crença que suas
falsidades encontravam-se no vulgo, imaginavam ter estabelecido perpétua fé
que para sempre os fizesse odiosos ao Povo, e só para si ficasse a boa
opinião No
porto Pireu estavam os que sem serviços... ou com eles imaginaram poder
ofuscar os de todos os que não fossem de sua parcialidade, e condenar a
perpétuo ostracismo quantos fizessem sombra a suas pretensões vaidosas. O
Povo não caiu no erro; desenganou-os: dele se queixem, não dos Ordeiros
que os avisaram sempre, e cujos remédios higiénicos, se a tempo os
tomassem, lhes teriam prevenido a fatal moléstia de que adoeceram, com que
tanto mal fizeram, que tão dolorosa cura precisa, No
porto Pireu estavam os que sem talentos... ou com eles, declararam
ignorantes a quantos se não matricularam em suas palestras,
imaginando que o Povo havia de estar pela sentença categórica de sua
infalibilidade cientifica O
Povo não os acreditou por suas palavras, quis antes julgar pelas obras do
que pelas criticas, e conheceu onde estava o saber e onde a ignorância.
Queixem-se do Povo. Estavam
no porto Pireu os que no século décimo nono, contando com a suposta ignorância
e verdadeira inexperiência da nação portuguesa, mandaram a França
vasculhar as tribunas da Constituinte, da Convenção e dos Jacobinos,
e carregaram grossos baixeis com os farrapos desses discursos tribunícios
que hoje somente não são ridículos pela recordação das atrocidades que
causaram, e que apenas trazem já o eco morto de palavras ocas e vãs, que
os povos instruídos e escarmentados conhecem e escarnecera. Viram entrar
esses baixéis, imaginaram-se negociantes de grosso tracto que iam realizar
incalculáveis ganhos; e somente se desenganaram quando, exposta nas lojas a
mercancia tão gabada, o povo não quis comprar os farrapos. Meia dúzia de
logrados que fizeram a experiência, breve se arrependeram da fazenda
avariada que tinham cabido em comprar. No
porto Pireu tinham estado já, sonhando engrandecimento e fortuna, os que na
estatua de ferro da usurpação não viram os pés de barro que a sustinham,
e, imaginando que eram seus exclusivamente estes reinos, contra os
constitucionais vociferaram e bradaram, até que, derrubada a estatua,
tiveram de descer daquele porto Pireu: mas sem vergonha o fizeram, porque,
logo noutro ídolo igualmente falso, o da anarquia, puseram as suas esperanças,
e subindo de novo ao porto Pireu, cuidaram que, por gritar mais que nós,
por bradar mais alto que todos, a Nação esqueceria os serviços de uns, e
o procedimento de outros, e os acreditaria mais liberais que ninguém. No
porto Pireu estavam os que, cobrindo as casacas bordadas de barões feudais
com a sotana de tribuno, escondendo debaixo dela as decorações aristocráticas,
iam fraternizar para os clubes republicanos a certas horas do dia; e
noutras, despida a sotana, iam ás escondidas introduzir-se nos salões
Reais, forrar as paredes do Paço, e desforrar-se, em orgulho e vaidade, das
horas da compressão em que tinham sido obrigados a afectar lhanesa e
humildade. Como nos tempos de glória da velha Rua dos Condes e do Salitre,
quando o rei encoberto desabotoava o casacão, e proferindo a solene palavra
Reconheces-me? cabia tudo aos pés do rei de teatro, e o teatro com
palmas e bravos; assim sucederá a estes quando o povo, em mais vasta
plateia, abrindo-lhes a sotana de tribunos, vir por baixo as fardas bordadas
em todas as costuras, o orgulho de fidalgos novos, a presunção da gralha
com as penhas do pavão. Também o teatro há-de vir então abaixo, não com
palmas, mas com assobios e apupos! No
porto Pireu estavam os que imaginaram que este honrado Povo português se
tinha esquecido de que pela Legitimidade lhe viera a Liberdade, que, na
fidelidade dos seus Reis tinha a melhor garantia dela, e a única de sua
independência; que na religião de Jesus Cristo – a só crença que
professa a igualdade do homem – tinha o mais seguro amparo e fortaleza de
seus direitos. Que assentaram que bastava dizer insultos ao Trono para que o
Trono ficasse impopular; que bastava mofar da religião, para que o Povo
abjurasse a religião de seus pais!... O Povo zombou deles! O Povo curou-os
de sua loucura, desenganando-os, amando a religião, respeitando o Trono e
querendo a liberdade com ambos. O Povo foi o seu médico, queixem-se dele se
podem, mas as receitas aí estão - e as visitas do médico, ao menos não
as pagaram. (*)
Estas palavras de amarga censura foram repetidas pelo orador unicamente
porque o Sr. José Estêvão, de cujo discurso as tomou, as lançara de
acusação aos deputados do centro. |
Parte 3/3 |
Discurso do Sr. Deputado pela Terceira J. - B. de Almeida Garrett, na
discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, pronunciado na Sessão de 8 de
Fevereiro de 1840,
Almeida Garrett, visconde de, Maria de Fátima Bonifácio
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