Almeida Garrett

Almeida Garrett

 

DISCURSO DE ALMEIDA GARRETT

 

Discurso proferido por Almeida Garrett em 8 de Fevereiro de 1840, na Câmara dos Deputados, na discussão da "Resposta ao Discurso da Coroa", em resposta a José Estêvão, conhecido como o Discurso do Porto Pireu, alusão a uma passagem da intervenção do orador anterior.

 

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As facções não têm aqui órgão; todos somos de um partido. Mas, quando não é para se lamentar profundamente que a tal ponto tenham as facções confundido as coisas mais simples, sofismado os princípios mais claros, que até aqui cheguem ecos de suas desvairadas e irracionais pretensões transmitidos por lábios, aliás honestos, que eu suponho verdadeiros mas iludidos mas que repetem as fátuas aberrações de um cérebro confundido, enredado no labirinto que à volta de toda a gente de bem formam essas facções perversas para a desorientar e perder!

Iludidos!.. . Sim, sois iludidos vós todos os que, desejando o bem, fazeis tanto Dia]; vós que, abdicando a razão que Deus vos deu para guia de vossas acções, – o entendimento, a vontade, as palavras, as opiniões, tudo sujeitais ao capricho de uma vã, de uma falsa e morredoura popularidade; que cerrais os ouvidos à voz da consciência, quando ela vos brada: É falso! e, conhecendo o erro das turbas, sem coração nem piedade, bradais ás turbas: Têm razão!

Sim, sois iludidos: e quem nestes vinte anos de oscilação não tem sido? Todos o fomos, a todos nos têm enganado as facções; todos, cuidando pregar as nossas doutrinas, temos sido pregadores de falsa lei; todos, cuidando trabalhar em nossa lavoura, todos temos granjeado a fazenda alheia; uns pelo Povo, outros pelo Rei, todos lidando em vão na nossa causa, todos obedecendo, sem o sabermos, aos motores encobertos que nos dirigem, que zombam de nossas fadigas, e se divertem com estes movimentos de manequim em que nós sós nos afadigamos, e eles sós aproveitam. Sic vos non vobis.

Temos, temos todos, mais ou menos, abraçado a nuvem por Juno; todos nos temos enganado com a espécie do bem, todos erramos: porque o não confessaremos todos?

Porque as facções não querem, porque as facções nos aturdem os ouvidos, nos azoinam as cabeças, nos espicaçam o coração, nos alvoroçam o amor-próprio: e excitando em nós quanto tem de ignóbil, de pequeno e de vil a nossa pobre natureza, de seus imundos vapores toldam o fraco lume da Razão divina que em nós está.

É assim, é; porque as facções não querem que se discutam as questões, não querem que nós saibamos o que queremos. Querem-nos, a todos, neste vácuo escuro e de sempiterno horror cm que tudo é desordem e confusão, em que vinguem a si mesmo se percebe, em que uns bradamos contra os outros sem saber o quê nem porque bradamos, e lutando nas trevas, digladiando-nos na escuridão, por fim nos destruamos uns aos outros, raça fadada de Cadmo, - porque só nessa desordem e açougaria pôde caber o momentâneo reinado das facções - só nesse momento em que não há governo possível, de nenhuma forma, de nenhuma cor, de nenhum principio.

Portanto, venha de que lado vier, seja qual. for o principio, a ideia política a que a ordem queira dar consistência, organizando a sociedade, toda a facção contra ela se levanta. Nada há louvável, nada há desculpável em quem uma vez falou em ordem. É a túnica do Centauro que o lambe de chamas, e o devora de angústias. Tenha perdido a mocidade e a saúde sobre os livros, – fica ignorante. Desempenhasse honrada e zelosamente os cargos da republica, - é um peculador, um Verres. Fosse bom pai, bom filho, bom esposo, cidadão útil, cristão temente a Deus. - A um vão-lhe desenterrar os cadáveres dos pais, e com os ossos carcomidos dos seus o apedrejam; a outro, vão-lhe devassar nos pecados da sua gente para lhos lançar à cara como crime e afronta própria. - Perdesse, um a um, na defesa da pátria os membros mutilados; - resuscitar-lhos-hão de escárnio, e o motejarão por seus gloriosos defeitos. Sente-se à direita ou à esquerda, tenha sido sempre leal aos seus amigos políticos, e mais ainda aos seus princípios políticos; não lia fraternidade de opiniões, não lia vínculos de amizade. Falou em ordem? Morra por ela. Não lia epítetos injuriosos, não há alcunhas chocarreiras, não há vitupérios que não mereça: é um monstro, é um traidor, um insignificante, um fidalgote de aldeia que se quer aparentar com as famílias da corte. - Que miséria!

Que miséria na verdade! Quando e como nos quisemos nós aparentar com essas famílias ilustres E quais são elas, e aonde estão elas, essas famílias ilustres?

Vai em quatro anos que os mais moços na vida parlamentar aqui estamos sentados em nosso canto: quando procurámos a vossa aliança política, homens dos extremos? Seria impugnando sempre vossas erradas doutrinas, seria combatendo sempre os vossos argumentos, denunciando sempre à opinião os vossos sofismas? Não nos combatestes vós também sempre? Não ficámos, nós poucos e mal ouvidos, não ficámos nós vencidos sempre pelos vossos votos? Convencidos dos vossos argumentos, nunca. Em toda a discussão de princípios políticos – dos questionáveis se entende – estivemos alguma vez de acordo? Deixastes vós jamais, em todas essas ocasiões, de nos acusar, de nos denunciar como sustentadores das mesmas doutrinas que defendemos hoje, que advogámos, sempre, que sempre vos foram obnóxias? Mas vós prezais-vos de coerentes porque ainda hoje as impugnais; e a nós porque ainda hoje as defendemos também, ousais-nos acusar de versáteis e inconsistentes!

E porquê? Porque hoje votámos com a direita? A vós o pergunto, deputados da esquerda se os nossos princípios achassem impugnadores no lado direito da Câmara, se alguma vez os tem achado, não votaríeis vós, não tendes vós votado com eles?

Pois o mesmo fazemos, o mesmo faremos sempre: a coerência politica é de princípios não de pessoas; esta fé professamos, por este único voto estamos ligados, aos nossos constituintes o prometemos, de nós o espera a Nação a quem o jurámos.

Onde está, no nosso actual procedimento, onde esteve no que sempre fizemos, a prova desse fátuo desejo de nos aparentarmos com vossas ilustres famílias, a quem modestamente destes brasão e timbre, sem audiência de reis de armas - Portugal, que não teria pouco que dizer na matéria? - Nós não; que vos não disputamos a fidalguia, mas só o direito de primogenitura que usurpais fraudulentos; e, com o poeta da Religião e da Liberdade, com esse grande génio que Deus suscitou no meio da França para glória do Cristianismo e para açoite dos tartufos políticos, nós vos perguntamos: «Quando foi que, Esaús da liberdade, nós renunciámos ao nosso quinhão da herança?» Donde vos vem o direito que vos arrogais – não só de primeiros, mas de filhos únicos?

Ilustre família! E donde vos vem a ilustração? Dos martírios da Liberdade? Também nós os padecemos. Da gloria que adquiristes para a Nação? Afias por feitos de armas, não há secção, não há fracçãozinha de partido em Portugal que não tenha parte neles. Mas por letras... Oh! aí nos humilhamos nós diante de todos, até de vós.

Tristíssima e de mau gosto foi essa irónica saudade com que, fingindo que só agora nos separávamos, de nós se despediu um orador da extrema, com quem, ao vê-lo tão saudoso, pareceria que sempre estivemos unidos em sentimentos e doutrinas politicas. Jamais o fomos bem o sabe ele, nem ousará negá-lo, que lhe fora mister renegar todas essas teorias obsoletas que aqui tem defendido sempre, contra nós que lhas condenámos sempre, porque sempre as tivemos e demonstrámos absurdas. Jamais os nossos votos se acordaram com os seus senão nas questões económicas gerais, em que, reassumindo a sua natural razão, muitas vezes a tem o ilustre deputado, e por tal o apoiou o centro. E bem sabe ele que em semelhantes questões se pôde contar com os nossos votos.

Nós não queremos dominar as votações, mas queremos obstar ás votações cerradas de compadrio. Queremos votar com a esquerda ou com a direita segundo tiver razão uma ou outra. Entendemos fazer assim a nossa obrigação de centro, entendemos desempenhar assim uma impopular mas indispensável função parlamentária; estamos certos de seguir assim a opinião nacional que inquestionável, e provadamente – quanto no governo representativo pode provar-se – com seus votos tem confirmado ora o procedimento de uma, ora o de outra das duas secções do partido constitucional.

Nós entendemos assim o voto popular; e se ele nos engana (o que não creio), culpai as vossas leis que lhe regularam a expressão.

E sobre quem ousaria o enfático orador, tão precipitado em liberalizar títulos, sobre quem ousaria ele cuspir o de bastardos? Não sei. Bastardos há de certo na casa da liberdade, bastardos que a desonram espúrios que a desacreditam. Esses ramos degenerados de uma árvore ilustre, esses que a todo o vento de opinião flutuam, hão-de ser de certo os que na factura da Constituição querem um princípio, e cavilham depois a sua execução nas leis orgânicas. Hão-de ser de certo os que hoje acusam de liberticida uma lei, e que amanhã a defendem como paladino de liberdade. Hão-de ser talvez os que serviram a tirania em quanto ela era poderosa, que depois serviram a demagogia quando a julgaram omnipotente, que hoje querem servir ainda – porque para servirem nasceram – e já nem sabem a quem. Buscai-os esses homens não sei aonde; procurai-os não sei onde estão... Mas não os haveis de achar no centro.

Bastardos hão-de ser da casa da liberdade esses Gracos ridículos, esses Publicolas palhaços que ora se enfeitam da coroa cívica nos Comícios, ora das pérolas de barão feudal nos palácios. Procurai-os, não sei onde os achareis. Aqui não: não temos cá barões no centro.

E não hão-de as facções vociferar quando se fala em ordem, ordem que é razão e justiça, ordem que, sobre tudo e mais que tudo, é verdade? - Não, que ele era doce invocar o nome de Jesus Cristo para só lhe tosquiar em vez de lhe apascentar o rebanho, e vir, horas mortas, ao altar comer as oblações da enganada piedade. - E a Ordem pulveriza de cinza o pavimento para mostrar no outro dia ao povo as pegadas dos seus embaladores...

Não que ele era doce invocando o nome do Rei, reinar mais que ele, e governá-lo a ele, aclamar absoluto o seu poder por imediato a Deus, e transferi-lo todo para uma Camarilha usurpadora.

Não, que ele era mais doce ainda, mais suave que tudo, dominar as turbas com a lisonja; dispor da força bruta, que tanto mais serva e escreva é quanto mais cuida mandar; concentrar em si todos os direitos, monopolizar toda a liberdade para si só; - ter as honras de Catão e o poder de César; almoçar no fórum os rábanos do Fabrício, e banquetear-se a noite nos temulentos palácios de Lúculo!

E a emprazadora da ordem e os importunos dos Doutrinários a patentear ao Povo estes mistérios Eleusinos, a abrir diante de seus olhos as austeras, as desenganadoras páginas da história, a mostrar-lhes aí como dos Gracos se fazem Catilinas, e dos Mários ditadores, como o tribuno se converte sempre em áulico, o publícola em palaciano, mal as turbas se fatigam de seu reinado nominal, e o Poder, por sua natural tendência, ou se concentra no feixe consular, ou na vara ditatorial, ou no diadema imperial, ou no simples bastão do protectorado - em qualquer símbolo da Realeza que se destruiu mentindo, que mentindo se restabelece.

E há de se deixar falar a Ordem, e há-de consentir-se que a oiça o Povo! Não: rufem-se-lhe as caixas da anarquia, sumam-se esses brados de verdade como se sumiram os últimos clamores de perdão com que a Real Vítima da França envergonhava do cadafalso os seus algozes.

E para essa França aponta a Ordem a cada instante, e a mostra de exemplo e escarmento ao Povo! E lhe mostra esses declamadores da Constituinte e da Convenção rasgando aos pés de Bonaparte a Declaração dos direitos do homem; ajoelhados diante do Papa na cerimonia cristã da sagração do novo ídolo, com a mesma devoção com que ouviram no altar da pátria a sacrílega missa de um bispo apóstata, com que nas profanadas basílicas, ébrios de vinho e de sangue, entoaram diante da prostituta deusa da Razão seus asquerosos ditirambos ao som da guilhotina reformadora! E o barrete frigio do Sans-cullote é coroa ducal hoje; e os lictores de Robespierre andam agora na tábua, ou boleiam agaloados as seges da casa do primeiro cônsul; e os mais furiosos niveladores da república una e indivisível, disfarçadamente alardeiam, diante do logrado povo de Paris, as fardas bordadas de criados do imperador Napoleão!

Mal do povo Português se não ouvir e entender, ao menos a historia do seu tempo, para aprender nos erros alheios! Mal dele se, em estrada taro conhecida e trilhada, não vir as pegadas de sangue que os outros povos aí deixaram!

Em tudo lho mentem a esta pobre Nação, tudo lhe desfiguram para que ela não entenda. Pois, de que se trata agora? De mudar a constituição, de destruir as leis existentes? Quem tal propôs, quem tal sustentou? 0 que se tem proposto e nós advogamos, é dar comprimento e desenvolvimento à Constituição do Estado, com a reforma das leis orgânicas, não introduzindo leis novas (é falso; não destruindo as antigas (é mais falso ainda); mas procurando emendar aqueles defeitos que a experiência tem mostrado, e a cujo exame sincero só pode proceder-se com ordem e tranquilidade, de nenhum modo entre clamores de praça, entre vaias de açougue.

E, a nós nos dizem que queremos rasgar as leis! Rasgar as leis nós!... Quando o fizemos, quando aprovámos quem o fizera? Para diante da Nação Portuguesa vos emprazamos, que bem sabe se de nós o deve temer ou de quem.

Mas as facções não argumentam nem discutem, porque nem sabem nem podem discutir; só querem, só podem, unicamente sabem praguejar, insultar, caluniar, blasfemar, tomando em vão, os santos nomes da Liberdade, do Povo, do Rei e de Deus! E jurar que os Ordeiros são os inimigos de tudo, que a Ordem é o animal do Apocalipse, que mata, que destrói, que devora. E então levantam um grande clamor desatinado e confuso que ensurdece os ouvidos; e suscitam do abismo uma grande cerração de trevas que obceca os olhos há multidão e que, não lhe deixando ver nada do que é, prepara o entendimento para crer tudo o que não é.

Pois não ouvimos nós aqui um ilustre orador do lado esquerdo da Câmara, sem fazer justiça a seu próprio coração, abdicando o seu raciocínio natural, soltar, em vez de argumentos que podia e sabia fazer, meros sofismas em frases redondas e bem soantes? Nesse género de dizer lhe reconheço inquestionável e superior talento. Verba et praeterea nihil lhe chamou já outro orador que se senta ao meu lado.

Dizem-se aqui, Senhores, proferem-se categoricamente e como axiomas, absurdos tais que até são injuriosos para aqueles cuja causa se defende, cujas opiniões se querem sustentar, cujos actos pretendem desculpar-se. Assim dogmaticamente foi dito que o Poder criado pela Carta tinha sido destruído. -Como, quando, quem destruiu o Poder criado pela Carta? A revolução de Setembro! É falso, é calunioso. Não cometeu esse crime a revolução, teve mais juízo que isso. Se a alguém veio tal desejo; se nesses obscuros sótãos, se nessas escondidas aguas furtadas, onde, pelo testemunho do mesmo orador com quem falo, sabemos que estavam covardemente agachados os anónimos conspiradores, os envergonhados instigadores desse acto que nunca ousaram confessar, nem depois que a tolerância e a adopção nacional, remindo-o da culpa, converteu as suas consequências em legalidades nesses, (o que eu não creio facilmente) houve tão atroz pensamento, tão impopular, tão anti-português - não ousaram manifestá-lo ao Povo. Que seria da revolução se tal fizessem!

A revolução não destruiu o Poder criado pela Carta, o poder constitucional do Rei na pessoa e dinastia de sua actual e augusta Representante, e o do Parlamento nacional com duas Câmaras: confessou-o, confirmou-o, proclamou-o desde o seu primeiro brado; e por isso achou aderentes e defensores, que, sem tais protestos, todos saem em Portugal e fora dele, nunca havia de encontrar. . .

Aqui foi o Orador interrompido pelo Sr. Deputado José Estêvão, que disse: - «O poder criado pela Carta era o Sr. José da Silva Carvalho.» - O Orador continuou, apontando para o deputado que o interrompera:

Ali está, Senhores, a confissão ingénua de todas as minhas acusações; naquelas palavras está o testemunho irrecusável de que todas as questões aqui seio pessoais, de que tudo se reduz a mesquinhas, a miseráveis considerações de indivíduos, que os mais graves objectos, que os maiores interesses desaparecem diante destas pequenezas! Um homem é o princípio! A três homens que se juntem, chama-se-lhes um partido! Ao simples ministro do príncipe chamam-lhe um poder criado pela Constituição!

O Poder criado pela Carta não se destruiu; mas a sociedade, já desorganizada ou não organizada ainda para o novo poder, chegou mais perto da dissolução: as pedras do edifício, ainda não cimentadas, e que mal se tinham por sua justaposição, caíram muitas e desconjuntaram-se todas. Quis arquitectá-las de novo este Código administrativo que agora vamos reconsiderar: a experiência provou que não pôde; quantos a fizeram, o declararam. E agora negam o que já confessaram, – agora falam contra o que escreveram e assinaram; e o Código administrativo é a arca santa, é o testamento da aliança em que não é permitido tocar.

Tal é a matéria dos pretendidos argumentos com que nos combatem. A forma não é somenos. Um dos meus amigos que tem lugar no centro, cortesmente foi arguido de não entender os livros de Guizot, cujas palavras com a mesma civilidade lhe disseram que só textualmente sabia traduzir. E logo o mesmo polido orador, dando-nos, do alto de sua infalibilidade, a interpretação autêntica das doutrinas do grande publicista e ordeiro francês, resolvei. a questão do censo, declarando que ele era impossível em Portugal, porque Mr. Guizot, tinha mostrado que as classes sociais eram diversamente constituídas em Franca, do que na Inglaterra e nos Estados Unidos. Não argumentou dessas diferenças para o que devia haver no modo e quota do censo, não, para a proporcional diferença que a diferente constituição das classes portuguesas demanda: não; concluiu que o censo era impossível!

Só o chamar a esta questão a questão do censo, é a maior das muitas decepções com que a opinião pública cm Portugal anda ludibriada. Por Deus, falemos um dia a verdade. - A questão que se trata é a da prova do censo. São coisas muito diferentes. A questão do censo resolveu-a a Constituição, não se pode tratar dela. Mas pode, deve e há-de se tratar a da prova, porque no-lo manda a Constituição, porque o exige, porque a quebramos, e ao juramento que lhe demos, se a não tratarmos e resolvermos.

Esta famosa e arteiramente complicada questão é todavia clara e simplicíssima: reduz-se a saber se há-de estabelecer-se uma prova fixa, legal e verdadeira do censo que a Constituição marcou, prova igual para todos, e protegedora dos direitos políticos dos cidadãos, – ou se há-de ficar como tem estado, inconstitucionalmente entregue ao arbítrio das autoridades que, segundo a geral confissão de toda a Câmara e de todo o reino, por querenças e malquerenças pessoais, por simpatias e antipatias de partido, por ódiozinhos e amisadezinhas, por espírito de bairro e por compadrio, encurtam e estendem, a seu capricho, a medida que têem nas mãos e que não é aferida pelo vero-peso da lei.

Esta é a sincera verdade: mas porque se não diz? Porque é necessário caluniar os Ordeiros, e clamar que eles querem tirar os direitos ao Povo, que para o excluir da urna propuseram a lei do censo.

Nós não propusemos lei nenhuma de censo; torno a dizê-lo; a lei está feita na Constituição. Porque se mente pois ao Povo? Porque se lhe não diz: «Nessa constituição que reformámos, que jurastes, e que tanto dizem que amais, foi feita esta lei: o vago em que ali está expressada tem dado causa a mil fraudes e abusos, que todos (e note-se bem, todos) temos reconhecido. É nossa obrigação e vosso interesse que lhe fixemos regras claras e positivas.» - Mas isto era falar verdades lisas que não aproveitam; e vale mais dizer: «Os Ordeiros inventaram esta quimera do censo que não serve senão para vos excluir da urna e para a entregar nas mãos do Poder.» - É uma falsidade, é uma calúnia: bem o sabe quem o diz; mas diz-se.

Até com a formação do actual ministério, e com a questão estrangeira quiseram enredar esta nossa questão da prova do censo. E já nós a tínhamos proposto nas Cortes Constituintes, e já na passada sessão ordinária a instaurou de novo a penúltima administração, e o Centro forcejou em vão por que se tratasse. E permanentemente devia ela ter sido nesta Câmara desde que se votou a Constituição. Não é nossa culpa se o não foi.

Dizem-se em verdade aqui pasmosas e incríveis coisas! «Esta lei, clamam, esta lei do censo vai excluir da urna os próprios defensores da Legitimidade e da Liberdade, que deram o seu sangue por que nós gozássemos desse direito.» . . . Se tal é, Senhores, se tal fosse, voto desde já contra este, contra todos os projectos de um Ministério tão insolente que tal ousa vir propor a uma Câmara de deputados portugueses. Mas é falso! e quando lá chegarmos a essa questão (se nos deixarem chegar a essa ou outra qualquer de verdadeiro interesse público) então veremos se uma lei necessária para realizar a Constituição, sem a qual a Constituição é mentira, a representação nacional um absurdo, pode excluir ninguém da urna. Então veremos se os direitos políticos dos cidadãos de todas as classes podem ser melhor qualificados pela ridícula infalibilidade de uma junta de paróquia, de uma câmara muitas vezes nem eleita, de um conselho de distrito que nem representa nem conhece o distrito, mas só a terra em que moram os seus membros que, por moradores e não por sabedores, a tal conselho são chamados.

De toda a parte têem vindo os sofismas. À própria desgraçada Irlanda, à última Bretanha se foram buscar; e entrados por contrabando, com ofensa das pautas, do senso comum, aqui os trouxeram para combater verdades que nós apresentámos francamente, despachadas na alfândega como tracto claro e leal que são. «Vejam a Irlanda, olhem para a Bretanha» – exclamou, veemente e triunfante, um orador do lado esquerdo: «quem as reduziu a esse mísero estado em que se acham? A Ordem. Quem as oprime e avexa? Os Ordeiros.» Pode-se ter o riso com este modo de argumentos, pode haver algum mais contraproducente, mais para fazer compaixão? Exemplo das calamidades da ordem, a Irlanda! A Irlanda que tem sido vítima da desordem, vítima de um sistema exclusivo e faccioso! - (Tudo quanto é faccioso é exclusivo, tudo quanto é exclusivo é faccioso.) Que contra seus hábitos e crenças, contra sua fé e costumes, a quis sujeitar a uma religião repugnante, a uma política especulativa e absurda ! Perguntem-no a O'Connell, perguntem-no ao mestre agitador O'Connell, se os primeiros respiros folgados que soltaram, se a primeira aurora de felicidade e liberdade que naquela votada ilha apareceu, não foi quando a Ordem, impondo silencio ás facções exclusivas; triunfou no parlamento Britânico, chamando à comunhão política aqueles cidadãos que os facciosos faziam facciosos, como todos os partidos exclusivos fazem.

O mesmo direi da Bretanha, desgraçada e facciosa em quanto os facciosos de Paris lhe queriam impor lima religião de loucos, uma lei civil de bárbaros, - pacificada e obediente logo que, liberto dos facciosos, o governo da França lhe levou, com a ordem, o regime da tolerância e da razão.

E não seriam os absurdos facciosos os que dilaceraram e atrasaram aquelas duas tão belas e ricas porções de dois grandes impérios? E não seria a Ordem que as restituiu e chamou à civilização? A Ordem que desfaz o exclusivo insultante e usurpador das facções, que dá a cada um o que lhe é devido, que a todos os partidos chama indistintamente aos cargos, aos empregos, ás honras, à protecção, à liberdade; que os não quer património de nenhumas famílias privilegiadas como dantes eram, nem de nenhuns partidos como hoje se queriam fazer. E tão mau é para o Povo que as dignidades e funções públicas, que o gozo exclusivo de todos os direitos andem de juro e herdade numa casta ou numa classe, como que andem enfeudadas num partido ou numa seita. Ao Povo convêm, a Ordem exige, que os talentos e as virtudes sejam chamadas sem distinção ao serviço do Povo e do Rei; e que, assim como já não pode o Cristão velho excluir o Cristão-novo, nem o fidalgo o peão, também não possa um partidário excluir a outro. - Ora os Ordeiros querem anular esse veto usurpador e insuportável, que a própria família liberal ia dividindo em tantas fracçõesinhas quantas eram já quase os seus indivíduos – e este crime é imperdoável! É certamente, nos tribunais facciosos deve sê-lo.

No sôfrego e imprecatado desejo de deprimir uns para lisonjear outros, excitando a desconfiança e a guerra entre todos, se brada ao Povo que nada deve aos seus capitães, aos que nas fileiras ordenadas da Liberdade o tem sempre levado, a ele Povo, a triunfar da usurpação ultimamente, a sustentar a sua independência nas guerras antigas. Ah Senhores! Na monarquia livre não é necessário o ostracismo. 0 primeiro lugar está sempre ocupado pela lei: nem os serviços de Temistócles nem as virtudes de Aristides metem medo à nossa república. Bendita seja a nova e preciosa forma da liberdade moderna!

 

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Fontes:

Discurso do Sr. Deputado pela Terceira J. - B. de Almeida Garrett, na discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, pronunciado na Sessão de 8 de Fevereiro de 1840,
Lisboa, Na Imprensa Nacional, 1840;

Almeida Garrett, visconde de,
Discursos Parlamentares e Memórias Biográficas, coleccionados por C. Guimarães,
2.ª ed., Lisboa, Empreza Histórica de Portugal («Obras completas do Visconde de Almeida Garrett, XXIII»), 1900/1901

Maria de Fátima Bonifácio
Apologia da História Política: Estudos sobre o século XIX Português,
Lisboa, Quetzal, 1999

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