Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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A Essência de Âmbar

D. João V e a essência de âmbar

D. João V e a essência do amor


 

Na tarde de 10 de Maio de 1742, mal tinham batido as quatro horas na torre da Capela Real. D. João V mandou chamar à sala dos Embaixadores o cardeal da Mota. Principiou o despacho. De repente, quando o rei se debruçava, empunhando o óculo de ouro, sobre um alvará de mercê, um acidente cerebral fulmina-o. Levam-no em braços para o quarto, arrancam-lhe a cabeleira de França, despem-no até às servilhas e às meias-calças, e balofo, inerte, a boca flácida soprando, estendem-no sobre a cama. Correm archeiros. A rainha grita. A notícia espalha-se. Médicos, cirurgiões, boticários invadem o quarto, gesticulam, farejam, verificam a paralisia do lado esquerdo, estendem os pescoços em volta do rei, sarjam-no, sangram-no nas mãos, aconchegam-lhe aos pés tijolos em brasa, metem-lhe pela boca abaixo purgas de xarope áureo e de pós cornichinos. Os corredores do Paço coalham-se de frades, de comunidades, de imagens, de relíquias, - os marianos com o braço de Santa Teresa, os dominicanos com a Senhora do Rosário, os teatinos com o Senhor dos Passos. Franciscanos, lóios, baltasares, barbadinhos, saem, de cruz alçada, em procissão pelas ruas. A rainha, aos berros no oratório, quer que a deixem ir à Madre de Deus, descalça, rezar pelo rei. Ouvem-se preces. Há sinos que dobram, pelos mosteiros, cuidando o rei morto. A guarda dos tudescos forma, lampejando alabardas. É o Patriarca que chega, debaixo de pálio, com a bênção papal. D. João V, soerguido nos braços dos cardeais da Cunha e da Mota, gelatinoso, hediondo, recebe o barrete de Santo André Avelino, advogado contra as apoplexias que os padres caetanos lhe enfiam na cabeça. A tarde cai, num clarão tranquilo. Os médicos da junta, chamados à pressa, reúnem-se na sala dos Escudeiros, em volta duma bacia de prata e dum gomil de água às mãos, vociferando, interrogando-se, discutindo. Não falta um só. Estão todos: o doutor António da Costa Falcão, capelo amarelo do Paço, cirurgião-mor do reino; o doutor Pestana, sempre de capa, volta e cabeleira de nós, à antiga; o médico Kaupers, que põe carmim e usa "moscas" como uma dama; o doutor "Carapinho", que não larga a sua mula de gualdrapa cinzenta; o velho Bernardes; o arguto Ortigão, predilecto do rei; o austríaco Witte, que viera com a rainha. As opiniões dividem-se. Kaupers e Falcão atribuem o acidente ao mau hábito de D. João V dar despacho depois de comer; o "Carapinho", o doutor Ortigão e o médico Witte acusam os cirurgiões José Ricord e Pedro de Arvelos Spínola de terem produzido a
doença do monarca, secando-lhe com unguento de oiro as úlceras que ele tinha nas pernas; o doutor Pimenta, sibilino, afirma que Sua Majestade teria evitado o mal "se não comesse tanto doce e não ouvisse tantas histórias da carochinha"; mas o parecer que produz verdadeira sensação
entre os médicos é o do velho e rabugento doutor Bernardes, múmia enorme cheia de reumatismo, de insolência e de cruzes brancas de Malta: "o que há-de matar el-rei é a cómica Petronilha e é a essência de âmbar que lhe dá João Jaques". Os capelos do Paço entreolham-se. O cardeal da Mota, que assiste ao fim da junta, tem uma ligeira crispação de beiços, compõe sobre a murça vermelha a sua dupla cruz bizantina e conclui franzindo os sobrolhos :

- Pois sairá da corte a italiana!

Petronilha Trabó Brazilii era uma medíocre cantora
de ópera, estrábica e escultural, por cujo seio um Médicis podia ter moldado a sua taça de oiro, e que passava em Roma por ter sido amante do cardeal Cavallarini. Viera para Lisboa, em 1725, com a companhia das irmãs Paghetti, e D. João V enamorara-se dela, vendo-a, em 1739, através da rótula duma frisura dos Condes, fazer o travesti de
Aniceto num drama per música de D. Bernardo Gayo. Mas. ao tempo, D. João V tinha já cinquenta e dois anos, - e, pelo menos, trinta e oito duma vida sexual intensa, em que semeara pelos mosteiros de clarissas e de bernardas a faixa contraveirada de prata das bastardias, passara de catre em catre, por braços de saloias e de ciganas, de mulatas e de regateiras, e chegara até ao desvio homossexual, como o avô D. João IV com o cantor Pissano. pelas noites de mistério e de maresia, do terreiro do Paço da Ribeira. Estava fatigado por toda a casta de excessos e por um senium precoce de fim de raça, que trouxera ao seu orgulho de amoroso a ameaça da decrepitude. Essa ameaça espreitava-o de longe. Já, anos antes, ordenara a D. Luís da Cunha que consultasse o grande Boerhaave acerca da raiz do ginsão, que Curvo Semedo considerava "admirável remédio para qualquer enfermo prostrado, desfalecido ou esfalfado". O fauno ficara a dormir, bêbado de água-benta, sobre as pias de prata de Odivelas. Os encantos de Petronilha não tinham conseguido despertá-lo. Pedira ao velho médico Bernardes um remédio que, como o elixir de ouro de Roger Bacon, o restituísse à mocidade: nessa mesma noite fora encontrar, aberto à cabeceira da
cama, o Elogio da Velhice, de Cícero. Em 1778. Artur William Costigan, no seu livro Sketches of Society and manners in Portugal in a series of letters from to his brother in London, de que existe uma versão portuguesa manuscrita no códice 612 da Pombalina, diz que "D. João V dissipou a sua vida com clérigos e mulheres, e, decaído pela idade, tomou cantáridas, que o reduziram a uma suma frouxidão". Não foram cantáridas: foi a essência de âmbar. Era um soluto alcalino do "âmbar gris", "ambarum griseum", "ambra cineritia", que em 1735 o autor da Farmacopéa Tubalense considerava "um excelente fortificante
do cérebro, coração e estômago", e que João Jaques de Magalhães mandava preparar, ao que parece em França, para uso secreto de Sua Majestade. O bispo do Grão-Pará mete o caso no seu capuz de escândalos: "João Jaques de Magalhães deu a essência de âmbar ao senhor D. João V, de que resultaram os sabidos efeitos, para os quais o acompanhava um Manuel da Costa. Dizia o doutor Bernardes, seu físico-mor: Cure-o João Jaques que sabe o que lhe fez, e Manuel da Costa, que sabe o que ele fez". Durante quase
três anos, desde que instalara a italiana numa casa a par do convento de Santo António dos Capuchos, até que caíra fulminado, na Sala dos Embaixadores, aos pés do cardeal da Mota, D. João V nunca mais tinha entrado na alcova da Petronilha, para ser recebido in vestito di confidenza, sem sentir, sem palpar primeiro, dentro da algibeira da casaca, o vidrinho doirado da essência de âmbar: 

- Mò via, dime de si, mia cocoleta!

Um mês depois do acidente, o rei melhora. Fala-se em banhos sulfurosos. No dia em que move o braço leso, os frades, em procissão, trazem-lhe o braço de prata com as relíquias de S. Bento. O cardeal da Cunha, embrulhado a tremer na sua púrpura, cheio de medos de bruxas e de trovões, benze tudo em volta do rei, - o leito, as cadeiras, as relíquias, as imagens, as tijelinhas da sangria, os frascos das bichas, a grande cabeleira de França que Sua Majestade enfia para ouvir missa e para receber os embaixadores estrangeiros. Cinquenta e dois dias depois, D. João V já move a perna. Em sinal de júbilo, eleva à dignidade de monsenhores doze cónegos da Basílica Patriarcal. Pela primeira vez, quando os oratorianos lhe trazem para a cabeceira da cama a imagem da Senhora das Necessidades, o rei fala a Frei Gaspar, ao médico Ortigão e ao cardeal da Mota no seu desejo de ir vêr a Petronilha.  Dissuadem-no. D. João V insiste. Prometem-lhe que a verá na volta das Caldas. Logo que o rei embarca no cais da Índia, vestido de negro amparado ao jesuíta Carbone e ao cirurgião Soares Freire, - o cardeal da Mota manda o corregedor do Rossio com dois meirinhos à casa de Santo António dos Capuchos intimar a italiana a retirar-se imediatamente para Espanha. Três dias depois, de noite, a Petronilha, em coche da Casa Real, seguida - diz o cavaleiro de Oliveira - de trinta azêmolas carregadas de pratas e de alfaias., saía da corte com destino desconhecido.

- Há ainda estes frascos de essência de âmbar, - diz João Jaques de Magalhães, apresentando ao secretário de Estado três pequenos frascos de vidro de Veneza, mordidos de flores de oiro, como três jóias. - Vossa Eminência quer que se deitem ao rio?

O velho cardeal da Mota remira-os, hesita, olha em
volta, pisca um olho voluptuoso de Sileno e estende a mão trémula a João Jaques:

- Ao rio? Não. Dá cá...

 

Júlio Dantas

 

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