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D. João V e a essência do amor
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Na tarde de 10 de Maio de 1742, mal tinham
batido as quatro horas na torre da Capela Real. D. João V mandou chamar à
sala dos Embaixadores o cardeal da Mota. Principiou o despacho. De repente,
quando o rei se debruçava, empunhando o óculo de ouro, sobre um alvará de
mercê, um acidente cerebral fulmina-o. Levam-no em braços para o quarto,
arrancam-lhe a cabeleira de França, despem-no até às servilhas e às
meias-calças, e balofo, inerte, a boca flácida soprando, estendem-no sobre a
cama. Correm archeiros. A rainha grita. A notícia espalha-se. Médicos,
cirurgiões, boticários invadem o quarto, gesticulam, farejam, verificam a
paralisia do lado esquerdo, estendem os pescoços em volta do rei, sarjam-no,
sangram-no nas mãos, aconchegam-lhe aos pés tijolos em brasa, metem-lhe pela
boca abaixo purgas de xarope áureo e de pós cornichinos. Os corredores do
Paço coalham-se de frades, de comunidades, de imagens, de relíquias, - os
marianos com o braço de Santa Teresa, os dominicanos com a Senhora do
Rosário, os teatinos com o Senhor dos Passos. Franciscanos, lóios,
baltasares, barbadinhos, saem, de cruz alçada, em procissão pelas ruas. A
rainha, aos berros no oratório, quer que a deixem ir à Madre de Deus,
descalça, rezar pelo rei. Ouvem-se preces. Há sinos que dobram, pelos
mosteiros, cuidando o rei morto. A guarda dos tudescos forma, lampejando
alabardas. É o Patriarca que chega, debaixo de pálio, com a bênção papal.
D. João V, soerguido nos braços dos cardeais da Cunha e da Mota, gelatinoso,
hediondo, recebe o barrete de Santo André Avelino, advogado contra as
apoplexias que os padres caetanos lhe enfiam na cabeça. A tarde cai, num
clarão tranquilo. Os médicos da junta, chamados à pressa, reúnem-se na
sala dos Escudeiros, em volta duma bacia de prata e dum gomil de água às
mãos, vociferando, interrogando-se, discutindo. Não falta um só. Estão
todos: o doutor António da Costa Falcão, capelo amarelo do Paço,
cirurgião-mor do reino; o doutor Pestana, sempre de capa, volta e cabeleira
de nós, à antiga; o médico Kaupers, que põe carmim e usa
"moscas" como uma dama; o doutor "Carapinho", que não
larga a sua mula de gualdrapa cinzenta; o velho Bernardes; o arguto Ortigão,
predilecto do rei; o austríaco Witte, que viera com a rainha. As opiniões
dividem-se. Kaupers e Falcão atribuem o acidente ao mau hábito de D. João V
dar despacho depois de comer; o "Carapinho", o doutor Ortigão e o
médico Witte acusam os cirurgiões José Ricord e Pedro de Arvelos Spínola
de terem produzido a
doença do monarca, secando-lhe com unguento de oiro as úlceras que ele tinha
nas pernas; o doutor Pimenta, sibilino, afirma que Sua Majestade teria evitado
o mal "se não comesse tanto doce e não ouvisse tantas histórias da
carochinha"; mas o parecer que produz verdadeira sensação
entre os médicos é o do velho e rabugento doutor Bernardes, múmia enorme
cheia de reumatismo, de insolência e de cruzes brancas de Malta: "o que
há-de matar el-rei é a cómica Petronilha e é a essência de âmbar que lhe
dá João Jaques". Os capelos do Paço entreolham-se. O cardeal da Mota,
que assiste ao fim da junta, tem uma ligeira crispação de beiços, compõe
sobre a murça vermelha a sua dupla cruz bizantina e conclui franzindo os
sobrolhos :
- Pois sairá da corte a italiana!
Petronilha Trabó Brazilii era uma medíocre
cantora
de ópera, estrábica e escultural, por cujo seio um Médicis podia ter
moldado a sua taça de oiro, e que passava em Roma por ter sido amante do
cardeal Cavallarini. Viera para Lisboa, em 1725, com a companhia das irmãs
Paghetti, e D. João V enamorara-se dela, vendo-a, em 1739, através da
rótula duma frisura dos Condes, fazer o travesti de
Aniceto num drama per música de D. Bernardo Gayo. Mas. ao tempo, D.
João V tinha já cinquenta e dois anos, - e, pelo menos, trinta e oito duma
vida sexual intensa, em que semeara pelos mosteiros de clarissas e de
bernardas a faixa contraveirada de prata das bastardias, passara de catre em
catre, por braços de saloias e de ciganas, de mulatas e de regateiras, e
chegara até ao desvio homossexual, como o avô D. João IV com o cantor
Pissano. pelas noites de mistério e de maresia, do terreiro do Paço da
Ribeira. Estava fatigado por toda a casta de excessos e por um senium
precoce de fim de raça, que trouxera ao seu orgulho de amoroso a ameaça da
decrepitude. Essa ameaça espreitava-o de longe. Já, anos antes, ordenara a
D. Luís da Cunha que consultasse o grande Boerhaave acerca da raiz do ginsão,
que Curvo Semedo considerava "admirável remédio para qualquer enfermo
prostrado, desfalecido ou esfalfado". O fauno ficara a dormir, bêbado de
água-benta, sobre as pias de prata de Odivelas. Os encantos de Petronilha
não tinham conseguido despertá-lo. Pedira ao velho médico Bernardes um
remédio que, como o elixir de ouro de Roger Bacon, o restituísse à
mocidade: nessa mesma noite fora encontrar, aberto à cabeceira da
cama, o Elogio da Velhice, de Cícero. Em 1778. Artur William Costigan,
no seu livro Sketches of Society and manners in Portugal in a series of letters
from to his brother in London, de que existe uma versão portuguesa
manuscrita no códice 612 da Pombalina, diz que "D. João V
dissipou a sua vida com clérigos e mulheres, e, decaído pela idade, tomou
cantáridas, que o reduziram a uma suma frouxidão". Não foram
cantáridas: foi a essência de âmbar. Era um soluto alcalino do "âmbar
gris", "ambarum griseum", "ambra cineritia", que em
1735 o autor da Farmacopéa Tubalense considerava "um excelente
fortificante
do cérebro, coração e estômago", e que João Jaques de Magalhães
mandava preparar, ao que parece em França, para uso secreto de Sua Majestade.
O bispo do Grão-Pará mete o caso no seu capuz de escândalos: "João
Jaques de Magalhães deu a essência de âmbar ao senhor D. João V, de que
resultaram os sabidos efeitos, para os quais o acompanhava um Manuel da Costa.
Dizia o doutor Bernardes, seu físico-mor: Cure-o João Jaques que sabe o que
lhe fez, e Manuel da Costa, que sabe o que ele fez". Durante quase
três anos, desde que instalara a italiana numa casa a par do convento de
Santo António dos Capuchos, até que caíra fulminado, na Sala dos
Embaixadores, aos pés do cardeal da Mota, D. João V nunca mais tinha entrado
na alcova da Petronilha, para ser recebido in vestito di confidenza,
sem sentir, sem palpar primeiro, dentro da algibeira da casaca, o vidrinho
doirado da essência de âmbar:
- Mò via, dime de si, mia cocoleta!
Um mês depois do acidente, o rei melhora.
Fala-se em banhos sulfurosos. No dia em que move o braço leso, os frades, em
procissão, trazem-lhe o braço de prata com as relíquias de S. Bento. O
cardeal da Cunha, embrulhado a tremer na sua púrpura, cheio de medos de
bruxas e de trovões, benze tudo em volta do rei, - o leito, as cadeiras, as
relíquias, as imagens, as tijelinhas da sangria, os frascos das bichas, a
grande cabeleira de França que Sua Majestade enfia para ouvir missa e para
receber os embaixadores estrangeiros. Cinquenta e dois dias depois, D. João V
já move a perna. Em sinal de júbilo, eleva à dignidade de monsenhores doze
cónegos da Basílica Patriarcal. Pela primeira vez, quando os oratorianos lhe
trazem para a cabeceira da cama a imagem da Senhora das Necessidades, o rei
fala a Frei Gaspar, ao médico Ortigão e ao cardeal da Mota no seu desejo de
ir vêr a Petronilha. Dissuadem-no. D. João V insiste. Prometem-lhe que
a verá na volta das Caldas. Logo que o rei embarca no cais da Índia, vestido
de negro amparado ao jesuíta Carbone e ao cirurgião Soares Freire, - o
cardeal da Mota manda o corregedor do Rossio com dois meirinhos à casa de
Santo António dos Capuchos intimar a italiana a retirar-se imediatamente para
Espanha. Três dias depois, de noite, a Petronilha, em coche da Casa Real,
seguida - diz o cavaleiro de Oliveira - de trinta azêmolas carregadas de
pratas e de alfaias., saía da corte com destino desconhecido.
- Há ainda estes frascos de essência de
âmbar, - diz João Jaques de Magalhães, apresentando ao secretário de
Estado três pequenos frascos de vidro de Veneza, mordidos de flores de oiro,
como três jóias. - Vossa Eminência quer que se deitem ao rio?
O velho cardeal da Mota remira-os, hesita, olha
em
volta, pisca um olho voluptuoso de Sileno e estende a mão trémula a João
Jaques:
- Ao rio? Não. Dá cá...
Júlio Dantas
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