|
|
«Alfamista» |
|
|
Batem as Avé-Marias em Santo Estêvão de Alfama. Respondem em volta,
picando a névoa da tarde, as garridas
de bronze de todos os mosteiros. Os últimos gaivotões bravos
revoam para as bandas do rio. O céu esplende como um grande mosaico doirado.
É a hora.
O alfamista abotoa a sua polaina de saragoça; enfia um barrete de lã verde
com orelheiras; entesta sobre o barrete o seu chapéu chamorro de abalroar;
deita o capote às costas; mete na manga uma choupa flamenga bem afiada, - e
ele aí vai, quando a última badalada do sino espanta o revoo da última
pomba, a caminho da sua Cítéra de tairocas e de cães, de mendigos e de
navalhas, de violas e de oratórios: a rua-suja. Mete a uma betesga alpendrada de ressaltos; galga uma escaleira de pedra
esbeiçada; pára, tomando o vento, na volta dum cunhal de armas;
benze‑se de arremesso ao cruzar as grades dum nicho; - conhecido como cão
ruivo entre a mafra‑baixa do bairro; achapoira o sombreiro para os
olhos, amortece os passos, rebuça‑se na mura do ferragoulo, e enfia, de
perna à facaia, pela viela lageada das mancebas. Aquela hora, a alfurja
mourisca, amparada de gigantes e bocejando pátios, semeada de postigos e de
painéis da Virgem, a ponta alta dos telhados holandeses batida dos últimos
raios de sol, - formiga de michos, de lacaios, de marujos, de ratinhos, de
mariolas de capote, de leigarraços vadios, de ciganos, de eguariços, de
capigorros, de patifes de viola, de estudantes de verdemilho, de toda a
sensualidade vagabunda dos corros e dos palácios, das cavalariças e dos
mosteiros, que fura, e grunhe, e fareja, rodeando fregonas tronchudas de mantéu
amarelo e socos, mulatas enormes tilintantes de soalhas doiradas e de verónicas
de Santa Rita de Cássia, saloias mitradas de carapuças de veludo, com
sobrancelhas ramalhudas e carnaças de abadessa, dríadas chulas de rengo
branco e rolete, desnalgando-se, sapateando, rebolando os peitos na dança do
arromba e do taco-taraco. O alfamista escoa-se, ouve aqui um zangarreio de
viola, dá de ombros além a uma rascoa conhecida, esguelha os olhos quando
uma pataca de prata retine na pedra dum poial, - mas passa de largo. Limita-se
a espiar, a vigiar. É a hora dos outros. A dele, senhor daquele beco, galo
daquele poleiro, - não chegou ainda. Vem mais tarde, noite feita, com a arca
repilgada e a candeia acesa, quando os postigos se fecham, as rótulas caiem e
a rua dorme. Ele é a ave nocturna. Ele é o rufião preferido e adorado. De
dia, quando as mulheres se acocoram ao sol pelos poiais das portas e os
ciganos trazem os macacos para as catarem, o alfamista assiste, familiar,
lendo alto nos soalheiros a Princesa
Maga!ona e a Clara Lopes, cristaleira de Coimbra, enramando corais, gemendo tonilhos
brejeiros, assobiando aos cães da viela, que espalham com o focinho as
testeiradas de esterco. Se alguém as insulta, é ele que responde. Se alguém
lhes toca, é ele que salta. Vêem naquela rascoa guaparrona que ali vai,
trigueira, saracoteada, de saia de carro de curo e chapins altos de Valença?
Possui-la, - quem quer a possui. Mas um só homem tem o direito de a ultrajar,
de a ensanguentar, de a pisar a pés, de a arrastar pelos cabelos no Iagedo da
rua: é ele. Durante as horas em que a michéla é de toda a gente, - o
alfamista espia-a de longe, calcula-lhe as pratas ganhas, cruza-lhe a porta.
Depois, quando a noite avança, e os cães fogem, e os cegos da sanfona
desaparecem, e os frades goliardos, enxalmados em capotes de saragoça, saem
das tabernas, e a tumba negra da Misericórdia recolhe os mortos, - a mulher
assoma e espreita ao poial; levanta três vezes a luz da candeia; um assobio
estridente responde-lhe de longe, e o alfamista, Dom Quixote de ruas-sujas,
mendigo de amor, orgulhoso como um grande de Espanha, arrasta-se, entesta o
sombreiro, esconde a cara no rebuço como mandam as regras da gualtaria, avança,
chega-se, rasteja, ganha a porta, - e entra. Mas, às vezes, os silvos que
respondem são dois, são três. O catre e os braços da fregona vão ser
disputados a sangue. Três capuzes avançam na sombra. três ferros chispam.
É o instante da navalha.
O quitó foi, no século XVIII, o símbolo do amor galante. A navalha, ou
melhor, a choupa flamenga, pode considerar-se o símbolo do amor plebeu. É em
volta desse palmo e meio de ferro resplandecente que se jogam Iodos os ciúmes,
todas as preferências, todas as rivalidades. À sua vista, os pelos eriçam-se,
as pistolas aperram-se os quadrilheiros tremem e apavorara-se. Todos os cadáveres
encontrados, em poças de sangue, nas calejas da Alfama, nas ruelas da
Mouraria, nas alfurjas da Madragoa e do Bairro Alto, têm os ventres rasgados
por choupas como reses de sacrifício. Já D. Pedro II, pelo alvará de 23 de
Julho de 1678, proibira, sob pena de degredo para Angola e cinquenta cruzados
para cativos, que se trouxessem «facas agudas, de ponta de diamantes, de
sovela e de ponta de oliveira» verdadeiros punhais dos alfamistas e marujos,
estendendo a proibição, por alvará de 18 de Novembro de 1687, aos bordões
e facas que costumavam trazer de noite os liteireiros, os sota-cocheiros, os
lacaios e os mochilas das casas nobres. Apesar disso, as mortes sucedem-se. Os
próprios corregedores vacilam na repressão. Em 24 de Outubro de 1702, Manuel
Dias, que fora criado da rainha D. Catarina de Inglaterra, escreve a D. Luís
da Cunha: «O convento de S. Vicente está cheio de criminosos refugiados:
todos os dias se matam homens; o mais que os assassinos fazem é fugir para
Setúbal». Em 7 de Abril de 1705, o desembargador Brochado diz para Londres
ao Conde de Viana: «Um destes dias se fez uma morte defronte do Espírito
Santo com arma curta, e foi o morto um neto de Vitório Zagalo, de quem não
havia queixa; não conto isto por novidade, porque esta terra já está
acostumada a ver semelhantes horrores e sempre na Quaresma se desobriga com
umas poucas de mortes». Mal bruxoleia nas ruas, de longe em longe, a candeia
dum oratório. A escuridão profunda favorece os crimes. «Todas as noites há
mortos e feridos, sem tom nem som, sem tir-te nem guar-te - escreve José
Soares da Silva na sua Gazeta - e isto logo das Avé Alarias por diante». Encharcadiços e
marujos infestam a Alfama, embrulhados em ferragoulos de burel, arruados de
choupas agudas, disputando o leito das maranhoas o a prata amoedada dos seus
baús. «Em todas as mortes que se faziam com facadas e que eram muito
frequentes - diz o irmão de Manuel de Figueiredo, evocando a Lisboa de 1740 -
se nomeavam marujos, destros e instruídos em brigai, tragando o capote no braço
esquerdo, e com um punhal de três quinas na mão direita, peça rica a que
chamavam faca de ponta de diamante, atacavam ainda aos que traziam espada ou
também com choupa, ou faca flamenga, peça de pouco valor e tão vulgar nas
tendas como «queijo flamengo». D. Joâo V passa os últimos anos da sua vida
combatendo essas duas inflorescências da rua -suja: o capuz e a faca. Em 1742
assina o «alvará dos capuzes», proibindo os embuçados e mandando perseguir
os vadios pelas portarias dos conventos; em 1749, a dois passos da morte,
expede o «alvará das facas», proibindo, sob pena de polé, o uso das
sovelas e das choupas de Flandres. Nada se consegue. De armas de duelo e de
bravura, de nobreza plebeia e de orgulho amoroso, as choupas flamengas, as
facas de ponta de diamante e de ponta de oliveira, tornam-se, com o andar do
tempo, armas de traição e de roubo. A cavalaria rusticana converte-se na
pilhagem imunda. «Os ladrões nesta corte são tantos - diz o Folheto
de Lisboa, jornal manuscrito de 9 de Janeiro de 1740 - que ninguém pode
sair de noite fora de casa depois das Avé-Marias». De nada vale a sola do
carrasco, nem a marca a fogo no Limoeiro. Em Maio de 1742 armam-se no Rocio
duas polés pintadas de verde, para apolear quem roube para além dum cruzado.
Inútil também. Os «palmilhas-suadas» atacam as seges e os coches, põem as
choupas aos feitos dos fidalgos, pedem a bolsa, - e não tiram senão dezanove
vinténs. O horror da faca invade os próprios estrangeiros. Twiss, viajante
inglês que nos visita em 1773, fala impressionantemente da escuridão das
ruas de Lisboa, onde, poucos dias antes, vira matar um italiano, e descreve o
povo, com sugestões de Espanha: «Os homens usam capotes compridos, grande
chapéu derrubado, e trazem escondida na manga uma faca de fio tão fino, que
é capaz de cortar pelo meio um escudo de ouro».
Procurou-se, durante um século, remédio para crimes das ruas-sujas, onde
as rascoas já traziam choupas nas ligas, amavam às facadas, roubavam a prata
das Igrejas e usavam bolsilhos falsos nos guarda-pés de milanesa vermelha.
Ninguém o encontrou, - nem Diogo de Mendonça, nem o cardeal da Mota, nem
frei Gaspar Moscoso, nem o jesuíta Carbone, nem Pombal, nem a saltimbarca de
todos os quadrilheiros, nem a vara de prata de todos os corregedores. Pois
bem: esse milagre, que ninguém fizera, fê-lo em 1780 um homem gordo, plácido,
metódico, que apareceu um dia na corte com o hábito de Cristo ao pescoço e
o Tratado de Polícia de Willebrand
debaixo do braço: o Intendente Diogo Inácio de Pina Manique. Como?
Levantando forcas? Derramando sangue? Não. Muito simplesmente: iluminando a
cidade.
Nesse dia, o terror da rua-suja
acabou.
Júlio Dantas
|
|