Bruxedos de Amor | |||||||||
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século XVIII não se limitou a tornar a sério a bruxaria: converteu-a numa
verdadeira obsessão. Sobretudo
durante o tempo de D. João V, houve em Portugal o invencível terror da bruxa
e do feitiço. Não era só o povo obscuro que se enchia de «alambres brancos»,
de cruzes de S. Bento, de vinténs furados de S. Luís; era o alto clero, era
o rei, era a corte, eram os próprios médicos, espíritos superiores alguns,
os primeiros a reconhecer a existência do bruxedo e do malefício, a
pretender determinar‑lhes uma base científica e a instituir contra eles
uma terapêutica rigorosa. D. Nuno da Cunha, inquisidor-mor do reino, espécie
de bicho de seda, embrulhado na púrpura de cardeal, não deixava o rei para
ele conseguir «que o Papa livrasse Portugal de espíritos malignos e de feitiços»,
e ia de coche desendemoninhar-se, todos os dias, a casa da bruxa Catarina do
Espírito Santo; D. João V, por causa das mulatas Salemas, bruxas de Setúbal,
que quiseram com a cumplicidade do padre Bartolomeu de Gusmão e de duas
freiras de Odivelas enfeitiçá-lo a ele e à madre Paula, fez reunir de
madrugada o conselho de Estado e mandou formar os regimentos nas ruas; o
doutor Curvo Semedo, cubiculário do rei, observador dos mais ilustres que tem
tido a Medicina portuguesa, médico insigne que num dos seus livros previu
claramente a origem microbiana da tísica, não se envergonhou de tomar a sério,
como casos clínicos, anedotas vulgares de bruxedo amoroso, e aconselhou, nas
suas Observações Médico Doutrinais,
a infalibilidade de certa bruxaria feita às palmilhas dos sapatos dos
maridos: «Aqueles que havendo sido bem casados, e muito amantes de suas
mulheres, passavam a uma tal metamorfose, ou mudança odiosa, que nem as
podiam ver, nem deitar-se na mesma cama, fiz reconciliar em amizade mandando
que às escondidas untassem a palmilha dos sapatos do homem amancebado icem u
esterco da manceba, e a palmilha dos sapatos da manceba com o esterco do
amancebado; e daquele dia por diante se converteu em desagrado e aborrecimento
de ambos o que até àquele tempo tinha sido cegueira do amor lascivo
ocasionado de algum feitiço...» Seria
interessante estudar e inventariar todos os feitiços que povoaram Lisboa
durante o século XVIII. Aparecem a cada passo nos processos do Santo Ofício,
nas páginas da Anacéphaleosis, nos
livros de medicina, nas Pastorais do clero, nos versos dos poetas, nas drogas
das farmacopeias, nas credencias doiradas dos toucadores. A bruxa é a alma
oculta do século. Debruça-se sobre os leitos quando as crianças nascem;
mete-se pelos anéis de núpcias quando as mulheres casam; senta-se sobre os
gremiais de oiro, nos joelhos dos bispos; ladra como os cães nas alfurjas
silenciosas; - preside a todos os destinos humanos, brinca com todos os corações
descuidados, espreita a todas as portas felizes. Nos actos mais graves, nos
momentos mais sérios da vida; - surgia a bruxa; era a bruxa o primeiro
pensamento. Nascia uma criança numa casa: queimavam-se logo solas de sapatos
velhos para sacudir as bruxas. A criança definhava, adoecia: penduravam-lhe
uma espada nua à cabeceira para afugentar as bruxas que lhe chupavam o
sangue. A última filha era bruxa quando não havia filhos; o último filho
era bruxo quando não havia filhas. Comunidades
inteiras de cruz alçada, atravessavam as ruas para exorcismar casas nobres.
Havia sítios em Lisboa,
como o da Pampulha, que no século XVIII eram viveiros de bruxas: o peixe que
as pampulheiras vendiam sobretudo os safios, não se podia comprar por causa
dos feitiços. Procuravam-se e pagavam-se a peso de oiro os filhos últimos,
que tinham a singular virtude de curar alporcas e de ajudar as mulheres no
trabalho do parto. Uma lagartixa metida na couceira duma porta tornava estéreis
todas as fêmeas que havia na casa. Urna fava negra defumada pelas bruxas
cegava a quem a comia. Uns ossos de serpente dentro dum bizalho alado punham
numa chaga o corpo dum homem. Mas foi designadamente no bruxedo de amor, no «malefício
amatório», na arte de «ligar» e de «desligar», que a liturgia do feitiço
e do contra-feitiço, espécie de veneno e de contra-veneno, atingiu o delírio
e o inverosímil. Chegaram até nós os nomes dos bruxos e bruxas mais
frequentadas no tempo de D. João V: eram a Rastolha, muito querida de freiras
e, em especial, das freiras de Sant'Ana e da amante do infante D. Francisco; o
Donato da Penha de França, bruxo-bobo que corria as ruas descalço, com o
chiote coberto de verónicas, erguendo relicários; Catarina do Espírito
Santo, protegida do cardeal da Cunha, a quem o Cavaleiro de Oliveira se refere
no Amusement Periodique; a Isabel da
Moita, que as francas da corte iam consultar a Alcácer do Sal; Manuel de S.
José, donato capacho, cujo céu da boca resplandecia e que foi penitenciado
no auto-de-fé de 18 de Junho de 1741;
o Anão do Duque; e, por fim, as mulatas Salemas, acusadas em 1736 de terem
procurado, com certo feitiço feito com sangue, peitos de perdiz e pedaços de
marmelada abocanhados por D. João V, substituir no coração
e no leito do rei a madre Paula por certa freirinha bonita de Odivelas. Todas
estes profissionais do bruxedo
de amor usaram os mesmos processos, - quer para fazer amar, quer para fazer
aborrecer, quer ainda para tornar os homens «ligados», isto é,
temporariamente incapazes, por inibição demoníaca, de coabitar ou de
consumar matrimónio com determinadas mulheres. Boticários astutos de capas
negras pingadas e grandes fivelas de prata nos sapatos, enriqueciam vendendo
às bruxas a «erva pombinha» defumada com dentes de defunto lançados sobre
tijolos em brasa, - estranho feitiço que despertava para o amor o organismo
decrépito dos velhos e a frigidez desdenhosa dos moços. O erudito Bernardo
Pereira, na sua Anacéphalensis Médico-Teológica publicada em 1734, esfalfa-se a
aconselhar a todos os «ligados» pelas bruxas um remédio pelo menos tão
singular como o das «palmilhas» de Curvo Semedo: «urinar num cemitério
pela argola da campa duma sepultura, ou, não sendo o malefício inveterado,
urinar pelo anel da desposada». Perante o perigo crescente da bruxa, a
medicina arma-se; os capelos amarelos cogitam; os cárceres da Inquisição
transbordam. - «Sindromas da loucura, vozes da nequícia, apóstatas da Fé,
feiticeiros e feiticeiras, benzedeiras e benzedeiros, bruxos e bruxas, mestres
e mestras, lições do inferno, mulas do diabo, ministros de Satanás, frutos
da figueira de Judas!» - grita o médico Brás Luís de Abreu, envesgando de
cólera o seu olho de vidro. E as fogueiras rechinam; e a procissão amarela
das mitras e das samarras segue a caminho do Campo da Lã. Agora, é o «Tio
de Massarelos», bruxo insigne, cujos ossos assobiam e estalam na fogueira;
logo, é soror Inês de Jesus, freira de S. Francisco, açoitada e degredada
para Angola por fazer feitiços de amor com as contas das camândulas; outro
dia, é soror Mariana do Rosário, religiosa do Sacramento de Alcântara, que
sai penitenciada no auto-de-fé de 20 de Outubro de 1748 por ter dado à luz
sete gatos (Santo Ofício, processo
n.° 3.326); por fim, é uma leiga tonta de S. Domingos; são duas freiras de
Sant'Ana possessas do demónio; é a bruxa «Dona Paula», que o Santo
Tribunal relaxa em carne pelo feitiço amoroso de atrair os homens, derramando
mãos cheias de sal e entoando uma oração diabólica capaz de perder Santo
Antão eremita. E o cardeal D. Nuno da Cunha treme na sua púrpura; e o povo
reza; e D. João V, enrbuçado no coche a caminho de Odivelas, leva às nobres
bernardas os processos dos penitenciados e lê, entre dois Magnificat
tocados nas espinetas de xarão vermelho do convento; a oração célebre da
bruxa «Dona Paula», que já corre de boca em boca pela cidade, e que as
freiras repetem, sorrindo, aplicada à pessoa do rei: - «Esta mão cheia
de sal eu deito por el-rei meu senhor, para que me venha buscar, me venha
falar, e logo me venha amar, venha e não se detenha, para barrabás, para
caifás, e estes sinais me hão-de dar cães a ladrar, bestas a passar, gatos
a saltar...»
Júlio Dantas
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© Manuel Amaral 2009-2011