Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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Bruxedos de Amor

Bruxedos

Bruxedos


 

O século XVIII não se limitou a tornar a sério a bruxaria: converteu-a numa verdadeira obsessão.

Sobretudo durante o tempo de D. João V, houve em Portugal o invencível terror da bruxa e do feitiço. Não era só o povo obscuro que se enchia de «alambres brancos», de cruzes de S. Bento, de vinténs furados de S. Luís; era o alto clero, era o rei, era a corte, eram os próprios médicos, espíritos superiores alguns, os primeiros a reconhecer a existência do bruxedo e do malefício, a pretender determinar‑lhes uma base científica e a instituir contra eles uma terapêutica rigorosa. D. Nuno da Cunha, inquisidor-mor do reino, espécie de bicho de seda, embrulhado na púrpura de cardeal, não deixava o rei para ele conseguir «que o Papa livrasse Portugal de espíritos malignos e de feitiços», e ia de coche desendemoninhar-se, todos os dias, a casa da bruxa Catarina do Espírito Santo; D. João V, por causa das mulatas Salemas, bruxas de Setúbal, que quiseram com a cumplicidade do padre Bartolomeu de Gusmão e de duas freiras de Odivelas enfeitiçá-lo a ele e à madre Paula, fez reunir de madrugada o conselho de Estado e mandou formar os regimentos nas ruas; o doutor Curvo Semedo, cubiculário do rei, observador dos mais ilustres que tem tido a Medicina portuguesa, médico insigne que num dos seus livros previu claramente a origem microbiana da tísica, não se envergonhou de tomar a sério, como casos clínicos, anedotas vulgares de bruxedo amoroso, e aconselhou, nas suas Observações Médico Doutrinais, a infalibilidade de certa bruxaria feita às palmilhas dos sapatos dos maridos: «Aqueles que havendo sido bem casados, e muito amantes de suas mulheres, passavam a uma tal metamorfose, ou mudança odiosa, que nem as podiam ver, nem deitar-se na mesma cama, fiz reconciliar em amizade mandando que às escondidas untassem a palmilha dos sapatos do homem amancebado icem u esterco da manceba, e a palmilha dos sapatos da manceba com o esterco do amancebado; e daquele dia por diante se converteu em desagrado e aborrecimento de ambos o que até àquele tempo tinha sido cegueira do amor lascivo ocasionado de algum feitiço...»

Seria interessante estudar e inventariar todos os feitiços que povoaram Lisboa durante o século XVIII. Aparecem a cada passo nos processos do Santo Ofício, nas páginas da Anacéphaleosis, nos livros de medicina, nas Pastorais do clero, nos versos dos poetas, nas drogas das farmacopeias, nas credencias doiradas dos toucadores. A bruxa é a alma oculta do século. Debruça-se sobre os leitos quando as crianças nascem; mete-se pelos anéis de núpcias quando as mulheres casam; senta-se sobre os gremiais de oiro, nos joelhos dos bispos; ladra como os cães nas alfurjas silenciosas; - preside a todos os destinos humanos, brinca com todos os corações descuidados, espreita a todas as portas felizes. Nos actos mais graves, nos momentos mais sérios da vida; - surgia a bruxa; era a bruxa o primeiro pensamento. Nascia uma criança numa casa: queimavam-se logo solas de sapatos velhos para sacudir as bruxas. A criança definhava, adoecia: penduravam-lhe uma espada nua à cabeceira para afugentar as bruxas que lhe chupavam o sangue. A última filha era bruxa quando não havia filhos; o último filho era bruxo quando não havia filhas.

Comunidades inteiras de cruz alçada, atravessavam as ruas para exorcismar casas nobres. Havia sítios em

Lisboa, como o da Pampulha, que no século XVIII eram viveiros de bruxas: o peixe que as pampulheiras vendiam sobretudo os safios, não se podia comprar por causa dos feitiços. Procuravam-se e pagavam-se a peso de oiro os filhos últimos, que tinham a singular virtude de curar alporcas e de ajudar as mulheres no trabalho do parto. Uma lagartixa metida na couceira duma porta tornava estéreis todas as fêmeas que havia na casa. Urna fava negra defumada pelas bruxas cegava a quem a comia. Uns ossos de serpente dentro dum bizalho alado punham numa chaga o corpo dum homem. Mas foi designadamente no bruxedo de amor, no «malefício amatório», na arte de «ligar» e de «desligar», que a liturgia do feitiço e do contra-feitiço, espécie de veneno e de contra-veneno, atingiu o delírio e o inverosímil. Chegaram até nós os nomes dos bruxos e bruxas mais frequentadas no tempo de D. João V: eram a Rastolha, muito querida de freiras e, em especial, das freiras de Sant'Ana e da amante do infante D. Francisco; o Donato da Penha de França, bruxo-bobo que corria as ruas descalço, com o chiote coberto de verónicas, erguendo relicários; Catarina do Espírito Santo, protegida do cardeal da Cunha, a quem o Cavaleiro de Oliveira se refere no Amusement Periodique; a Isabel da Moita, que as francas da corte iam consultar a Alcácer do Sal; Manuel de S. José, donato capacho, cujo céu da boca resplandecia e que foi penitenciado no auto-de-fé de 18 de Junho de

1741; o Anão do Duque; e, por fim, as mulatas Salemas, acusadas em 1736 de terem procurado, com certo feitiço feito com sangue, peitos de perdiz e pedaços de marmelada abocanhados por D. João V, substituir no

coração e no leito do rei a madre Paula por certa freirinha bonita de Odivelas. Todas estes profissionais do

bruxedo de amor usaram os mesmos processos, - quer para fazer amar, quer para fazer aborrecer, quer ainda para tornar os homens «ligados», isto é, temporariamente incapazes, por inibição demoníaca, de coabitar ou de consumar matrimónio com determinadas mulheres. Boticários astutos de capas negras pingadas e grandes fivelas de prata nos sapatos, enriqueciam vendendo às bruxas a «erva pombinha» defumada com dentes de defunto lançados sobre tijolos em brasa, - estranho feitiço que despertava para o amor o organismo decrépito dos velhos e a frigidez desdenhosa dos moços. O erudito Bernardo Pereira, na sua Anacéphalensis Médico-Teológica publicada em 1734, esfalfa-se a aconselhar a todos os «ligados» pelas bruxas um remédio pelo menos tão singular como o das «palmilhas» de Curvo Semedo: «urinar num cemitério pela argola da campa duma sepultura, ou, não sendo o malefício inveterado, urinar pelo anel da desposada». Perante o perigo crescente da bruxa, a medicina arma-se; os capelos amarelos cogitam; os cárceres da Inquisição transbordam. - «Sindromas da loucura, vozes da nequícia, apóstatas da Fé, feiticeiros e feiticeiras, benzedeiras e benzedeiros, bruxos e bruxas, mestres e mestras, lições do inferno, mulas do diabo, ministros de Satanás, frutos da figueira de Judas!» - grita o médico Brás Luís de Abreu, envesgando de cólera o seu olho de vidro. E as fogueiras rechinam; e a procissão amarela das mitras e das samarras segue a caminho do Campo da Lã. Agora, é o «Tio de Massarelos», bruxo insigne, cujos ossos assobiam e estalam na fogueira; logo, é soror Inês de Jesus, freira de S. Francisco, açoitada e degredada para Angola por fazer feitiços de amor com as contas das camândulas; outro dia, é soror Mariana do Rosário, religiosa do Sacramento de Alcântara, que sai penitenciada no auto-de-fé de 20 de Outubro de 1748 por ter dado à luz sete gatos (Santo Ofício, processo n.° 3.326); por fim, é uma leiga tonta de S. Domingos; são duas freiras de Sant'Ana possessas do demónio; é a bruxa «Dona Paula», que o Santo Tribunal relaxa em carne pelo feitiço amoroso de atrair os homens, derramando mãos cheias de sal e entoando uma oração diabólica capaz de perder Santo Antão eremita. E o cardeal D. Nuno da Cunha treme na sua púrpura; e o povo reza; e D. João V, enrbuçado no coche a caminho de Odivelas, leva às nobres bernardas os processos dos penitenciados e lê, entre dois Magnificat tocados nas espinetas de xarão vermelho do convento; a oração célebre da bruxa «Dona Paula», que já corre de boca em boca pela cidade, e que as freiras repetem, sorrindo, aplicada à pessoa do rei:

 

- «Esta mão cheia de sal eu deito por el-rei meu senhor, para que me venha buscar, me venha falar, e logo me venha amar, venha e não se detenha, para barrabás, para caifás, e estes sinais me hão-de dar cães a ladrar, bestas a passar, gatos a saltar...»

 

A noite cai sobre a velha Lisboa do século XVIII. As sombras povoam betesgas, vielas, calejas e praças; alastram ao longo dos arcos, dos botaréus e dos ressaltos flamengos; adelgaçam-se e estremecem na claridade vaga dos nichos e dos oratórios; enchem-se de uivos, de gemidos, de poças de sangue, - e um pavor vago infiltra esse coração de Portugal, que afrontou no fim do século XV o Mar Tenebroso e que, cento e cinquenta anos depois, treme com medo das bruxas...

 

Júlio Dantas

 

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