O Casquilho | |||||||||
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O
filho do Nunes, mercador rico de panos na corte, tinha obtido, por intermédio
do inglês May, da Fábrica das Sedas, um convite para a partida de faraó em
casa do ministro Sebastião José de Carvalho. Quando
o convite chegou, dobrado em três cantos, com o seu aparo doirado e as suas
três obreias vermelhas à portuguesa, o mochila correu a chamar o
“menino”; o “menino” chamou o pai, que estava agarrado à viola a
tirar os fandangos da Pepa; o pai, resplandecente de júbilo gritou pela
senhora Dona Mança, que veio chouteando, com a sua saia de estamenha, os seus
corais e o seu pente de tartaruga do Alentejo; Dona Mança, tocada de ternura
maternal, foi buscar as criadas, a Chaínha mulata com o papagaio, a Carapota
enjeitada do Hospital Real, a negra copeira, de alpercate branco, mais
rebolada que um oitavado de chula, o negrinho da casa, ganindo, vestido de
amarelo como os pretos de S. Jorge, – e todos, negrinho, copeira, mulata,
enjeitada, mãe, pai, mochila e papagaio, ouviram o menino, em pé sobre um
tamborete de moscóvia velha, ler o primeiro pergaminho da sua nobreza de
casquilho: “Os marqueses de Pombal esperam Vossa Mercê na sua casa à rua
Formosa, para o serão de jogo de sexta-feira que vem”. –
Bem te podiam ter dado senhoria, filho! – resmungou Dona Mança, com beiços
de enjoo, abanando os pendentes de diamantes das orelhas. –
Mas há-de jogar como se a tivesse! – rugiu o pai, arremessando a viola com
estrépito sobre uma escrevaninha de charão encarnado. – Há-de atirar às
chapoiradas de dobrões de oiro pela mesa fora. As
pretas, o negrinho, a mulata, abanando a coifa de sete ramais, riam, batiam as
palmas, rebolavam os, olhos: –
Menino em casa de siô marquês! Menino em casa de siô marquês de Pombal! E
o papagaio, solene, empoleirado na pescoceira dum cadeirão de sola, repelia,
regougando e estercando sobre o tapete de Arraiolos: –
Pombal! Pombal! Em
casa do mercador Nunes, ninguém mais parou. Logo se mandou recado ao alfaiate
dos casquilhos de 1770, o grande Neves, que fizesse em três dias uma casaca
nova de seda “para o menino ir jogar a casa do senhor marquês”; outro
recado ao ilustre sapateiro António Coelho, defronte da Cruz de Azulejo, ao
Carmo, para uns sapatos de marroquim preto com os maiores fivelões de prata
que tivessem entrado até ali nas salas da rira Formosa; terceiro recado ainda
ao cabeleireiro Tomás dos Reis, do Chiado, mestre admirável que aprendera a
polvilhar em França com o cabeleireiro de Luís XV, Monsieur
Dagé, para uma cabeleira de bolsa com rolos e alcachofa à francesa, em tudo
semelhante às do excelentíssimo marquês de Pombal que – acrescentava
sempre em mesuras o mercador Nunes – “convidara o menino para jogar com
ele o faraó”. Compraram-se frascos de perfumes na loja do Leconte; um óculo
novo de punho de ouro no Lázaro; manguitos de renda de Bruxelas e meias de
espinhas de prata nos Genoveses; e como era moda na corte falar francês
enquanto se jogava, o menino, perpetuamente “menino” apesar dos seus vinte
e três anos, foi desemburrar-se nos últimos dois dias à rua da Figueira, a
casa de João Roberto Doumeau, que anunciava na Gazeta
de Lisboa, como cinquenta anos antes Monsieur
de Ville Neuve, lições de francês aos casquilhos fidalgos da cidade. Quando
não beliscava as ancas da mulata ou não zangarreava na viola os fandangos da
Pepa Olivares, – o mercador velho era certo a bailar cortesias, com o filho
.e com o mestre de dança, diante dos espelhos da sala. Visita que chegava,
depois de lhe mostrar as pratas como era de boa etiqueta, Dona Mança,
empenachada de plumas, perguntava-lhe logo: – “Sabe Vossa Mercê onde o
meu menino vai na sexta-feira?” E o papagaio, empoleirado num bufete de
talha doirada, respondia do canto, ouriçado e papudo como um ramalhete verde: –
Pombal! Pomba! Chegado
o dia, o casquilho espera, embrulhado na sua “roupa de pentear” que parece
um tríplice roquete de cónego, a chegada do Neves com a casaca, do Reis com
a cabeleira e do Coelho com os sapatos. Já está atrelado no pátio um coche
de pinturas, emprestado pelo holandês director da Fábrica das Sedas, para
levar Sua Mercê à rua Formosa; dois criados da tábua, vestidos de
redingotes vermelhos como os cocheiros da Casa Real, esperam as ordens do
menino, jogando ao sol o “passadez”. O primeiro que chega é o
cabeleireiro, em pé de dança, cheio de rendas, um quitó doirado à cinta,
uma cabeleira “á Ia greca” no punho, – uma mochila atrás, com o
escadote e o fole. Negrinho, criadas, mãe, pai, um cão de fralda que ladra,
um macaco que pincha, uma mulher de virtude que vende escapulários e cruzes
bentas de S. Lázaro a Dona Mança, – tudo vem ao quarto do casquilho, pé
ante pé, ver enfiar e polvilhar a peruca. Já não é a cabeleira alta de
topetes do faceira de 1720, crespa, enorme, derramada, ramalhuda de bucres; é
a peruca baixa, elegante, coleante, alada, de rolos armados sobre a orelha,
bordefronte largo descobrindo a testa, rabicho com laço de carretilha
cor-de-rosa, que os dedos ágeis de Monsieur
Reis palpam, acariciam, levantam, e deixam cair, leve como uma ave que poisa,
sobre a cabeça aguda e chamorra de Sebastião Nunes. Chega a hora delicada
dos polvilhos. O casquilho enfia um funil de papelão na cara; arma-se o
escadote; e enquanto o mestre, empoleirado no último degrau, sacode no ar com
duas borlas de arminho uma nuvem de pós de França, – o mochila cá de
baixo dá ao fole, e a farinha perfumada, espalhando-se finamente, tenuemente
pela sala, vai caindo por igual, pouco a pouco, grão a grão, sobre o pelo de
cabra finíssimo da cabeleira de Sua Mercê. Tudo espirra, – Dona Mança e o
cão, as mulatas e o negrinho; mas o cabeleireiro afirma que é aquela a moda
de Paris; curva-se toda a família do casquilho parvenu;
e quando o mercador, respeitoso, pergunta a mestre Tomás se é assim também
que se polvilha o excelentíssimo marquês de Pombal, – o papagaio, todo
branco de pós de França, ri, encarrapitado no espelha do toucador: -
Pombal! Pombal! O
sapateiro vem já assomando à porta, mas tem de esperar uma hora que os
polvilhos caiam, – para poder desembrulhar os sapatos e enfiá-los,
pequeninos, quase rasos, sem tacão e armados de fivelões enormes de prata
como os correões dum coche, nos pés esguios de Sua Mercê. O último a
chegar, solene como uma berlinda de D. João V, rotundo cimo o sino grande da
Capela Real, é o glorioso alfaiate Neves, cantado no Fatuinho de Manuel de Figueiredo, célebre entre os casquilhos célebres
de 1770, que vem de bengala, rebolado, oleoso, lento, embrulhado na sua casaca
vermelha como numa capa de asperges, trazer o redingote de seda que, em seu
entender, tornará o filho do mercador Nunes digno de jogar o faraó em casa
do marquês de Pombal. E uma peça sumptuosa de gorgorão preto, comprida,
picada de oiro, babada de rendas, forrada de seda verde-chicória, com
manguinhas holandesas feitas ao punho, algibeiras à Preston, botões miúdos
de prata como contas de camândulas franciscana. Enquanto o sapateiro, de
joelhos, estica a servilha negra do casquilho e lhe mete pelas coxas os
“rolos” que fazem as pernas mais altas, – o Neves assiste de longe ao
enfiar da casaca; mira-a, remira-a; a distância, com a ponta da bengala,
desdenhosamente, toca de leve uma prega, desfaz uma ruga importuna, compõe os
bofes de rendas da camisa, dá um jeito de graça aos perendengues de oiro do
relógio, e soberbo, indiferente, formidável, profere a sentença que na sua
boca custava oito dobras de seis mil e quatrocentos réis: –
Vossa Mercê pode ir. Está casquilho. Aquilo
que ali ia, de óculo de punho de oiro assestado à órbita, casaca de seda
negra, sapatinho rasteiro, fivela enorme, cabeleira “à Ia greca”, bastão
de punho de Limoges, lenço de rendas metido na luva, descendo a ,escada nobre
da casa entre o desvanecimento parvo do mercador, o orgulho risonho de Dona
Mança e o saracoteio voluptuoso das mulatas mordidas de cio e de lunduns, –
era genuinamente o casquilho de 1770, o elegante da burguesia pombalina,
herdeiro do faceira de D. João V, antecessor ingénuo do “peralta” da
Viradeira, do “janota” do tempo dos Franceses e do “pisa-flores” ridículo
de 1820. Quando ele subia ao coche, desdenhoso, fútil, a caminho da casa
solarenga da rua Formosa, – a mãe Dona Mança, a rever-se toda na
casquilhice do menino, sonhando o absurdo dum brasão dos Nunes, no teto de
oiro duma nova sala dos Veados, em lisonja com o escudo dos Melos e dos Dauns,
perguntava em êxtase ao mercador, que seguia o filho com os olhos e que ameaçava
com as ancas um fandango desnalgado da Pepa: –
Quantas filhas solteiras tem ainda o senhor marquês de Pombal? E
o papagaio, ao sol, batendo as asas verdes na janela dó pátio, ria às
gargalhadas:
Júlio Dantas
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© Manuel Amaral 2009-2012