Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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O Casquilho

O casquilho


 

O filho do Nunes, mercador rico de panos na corte, tinha obtido, por intermédio do inglês May, da Fábrica das Sedas, um convite para a partida de faraó em casa do ministro Sebastião José de Carvalho.

Quando o convite chegou, dobrado em três cantos, com o seu aparo doirado e as suas três obreias vermelhas à portuguesa, o mochila correu a chamar o “menino”; o “menino” chamou o pai, que estava agarrado à viola a tirar os fandangos da Pepa; o pai, resplandecente de júbilo gritou pela senhora Dona Mança, que veio chouteando, com a sua saia de estamenha, os seus corais e o seu pente de tartaruga do Alentejo; Dona Mança, tocada de ternura maternal, foi buscar as criadas, a Chaínha mulata com o papagaio, a Carapota enjeitada do Hospital Real, a negra copeira, de alpercate branco, mais rebolada que um oitavado de chula, o negrinho da casa, ganindo, vestido de amarelo como os pretos de S. Jorge, – e todos, negrinho, copeira, mulata, enjeitada, mãe, pai, mochila e papagaio, ouviram o menino, em pé sobre um tamborete de moscóvia velha, ler o primeiro pergaminho da sua nobreza de casquilho: “Os marqueses de Pombal esperam Vossa Mercê na sua casa à rua Formosa, para o serão de jogo de sexta-feira que vem”.

– Bem te podiam ter dado senhoria, filho! – resmungou Dona Mança, com beiços de enjoo, abanando os pendentes de diamantes das orelhas.

– Mas há-de jogar como se a tivesse! – rugiu o pai, arremessando a viola com estrépito sobre uma escrevaninha de charão encarnado. – Há-de atirar às chapoiradas de dobrões de oiro pela mesa fora.

As pretas, o negrinho, a mulata, abanando a coifa de sete ramais, riam, batiam as palmas, rebolavam os, olhos:

– Menino em casa de siô marquês! Menino em casa de siô marquês de Pombal!

E o papagaio, solene, empoleirado na pescoceira dum cadeirão de sola, repelia, regougando e estercando sobre o tapete de Arraiolos:

– Pombal! Pombal!

Em casa do mercador Nunes, ninguém mais parou. Logo se mandou recado ao alfaiate dos casquilhos de 1770, o grande Neves, que fizesse em três dias uma casaca nova de seda “para o menino ir jogar a casa do senhor marquês”; outro recado ao ilustre sapateiro António Coelho, defronte da Cruz de Azulejo, ao Carmo, para uns sapatos de marroquim preto com os maiores fivelões de prata que tivessem entrado até ali nas salas da rira Formosa; terceiro recado ainda ao cabeleireiro Tomás dos Reis, do Chiado, mestre admirável que aprendera a polvilhar em França com o cabeleireiro de Luís XV, Monsieur Dagé, para uma cabeleira de bolsa com rolos e alcachofa à francesa, em tudo semelhante às do excelentíssimo marquês de Pombal que – acrescentava sempre em mesuras o mercador Nunes – “convidara o menino para jogar com ele o faraó”. Compraram-se frascos de perfumes na loja do Leconte; um óculo novo de punho de ouro no Lázaro; manguitos de renda de Bruxelas e meias de espinhas de prata nos Genoveses; e como era moda na corte falar francês enquanto se jogava, o menino, perpetuamente “menino” apesar dos seus vinte e três anos, foi desemburrar-se nos últimos dois dias à rua da Figueira, a casa de João Roberto Doumeau, que anunciava na Gazeta de Lisboa, como cinquenta anos antes Monsieur de Ville Neuve, lições de francês aos casquilhos fidalgos da cidade. Quando não beliscava as ancas da mulata ou não zangarreava na viola os fandangos da Pepa Olivares, – o mercador velho era certo a bailar cortesias, com o filho .e com o mestre de dança, diante dos espelhos da sala. Visita que chegava, depois de lhe mostrar as pratas como era de boa etiqueta, Dona Mança, empenachada de plumas, perguntava-lhe logo: – “Sabe Vossa Mercê onde o meu menino vai na sexta-feira?” E o papagaio, empoleirado num bufete de talha doirada, respondia do canto, ouriçado e papudo como um ramalhete verde:

– Pombal! Pomba!

Chegado o dia, o casquilho espera, embrulhado na sua “roupa de pentear” que parece um tríplice roquete de cónego, a chegada do Neves com a casaca, do Reis com a cabeleira e do Coelho com os sapatos. Já está atrelado no pátio um coche de pinturas, emprestado pelo holandês director da Fábrica das Sedas, para levar Sua Mercê à rua Formosa; dois criados da tábua, vestidos de redingotes vermelhos como os cocheiros da Casa Real, esperam as ordens do menino, jogando ao sol o “passadez”. O primeiro que chega é o cabeleireiro, em pé de dança, cheio de rendas, um quitó doirado à cinta, uma cabeleira “á Ia greca” no punho, – uma mochila atrás, com o escadote e o fole. Negrinho, criadas, mãe, pai, um cão de fralda que ladra, um macaco que pincha, uma mulher de virtude que vende escapulários e cruzes bentas de S. Lázaro a Dona Mança, – tudo vem ao quarto do casquilho, pé ante pé, ver enfiar e polvilhar a peruca. Já não é a cabeleira alta de topetes do faceira de 1720, crespa, enorme, derramada, ramalhuda de bucres; é a peruca baixa, elegante, coleante, alada, de rolos armados sobre a orelha, bordefronte largo descobrindo a testa, rabicho com laço de carretilha cor-de-rosa, que os dedos ágeis de Monsieur Reis palpam, acariciam, levantam, e deixam cair, leve como uma ave que poisa, sobre a cabeça aguda e chamorra de Sebastião Nunes. Chega a hora delicada dos polvilhos. O casquilho enfia um funil de papelão na cara; arma-se o escadote; e enquanto o mestre, empoleirado no último degrau, sacode no ar com duas borlas de arminho uma nuvem de pós de França, – o mochila cá de baixo dá ao fole, e a farinha perfumada, espalhando-se finamente, tenuemente pela sala, vai caindo por igual, pouco a pouco, grão a grão, sobre o pelo de cabra finíssimo da cabeleira de Sua Mercê. Tudo espirra, – Dona Mança e o cão, as mulatas e o negrinho; mas o cabeleireiro afirma que é aquela a moda de Paris; curva-se toda a família do casquilho parvenu; e quando o mercador, respeitoso, pergunta a mestre Tomás se é assim também que se polvilha o excelentíssimo marquês de Pombal, – o papagaio, todo branco de pós de França, ri, encarrapitado no espelha do toucador:

- Pombal! Pombal!

O sapateiro vem já assomando à porta, mas tem de esperar uma hora que os polvilhos caiam, – para poder desembrulhar os sapatos e enfiá-los, pequeninos, quase rasos, sem tacão e armados de fivelões enormes de prata como os correões dum coche, nos pés esguios de Sua Mercê. O último a chegar, solene como uma berlinda de D. João V, rotundo cimo o sino grande da Capela Real, é o glorioso alfaiate Neves, cantado no Fatuinho de Manuel de Figueiredo, célebre entre os casquilhos célebres de 1770, que vem de bengala, rebolado, oleoso, lento, embrulhado na sua casaca vermelha como numa capa de asperges, trazer o redingote de seda que, em seu entender, tornará o filho do mercador Nunes digno de jogar o faraó em casa do marquês de Pombal. E uma peça sumptuosa de gorgorão preto, comprida, picada de oiro, babada de rendas, forrada de seda verde-chicória, com manguinhas holandesas feitas ao punho, algibeiras à Preston, botões miúdos de prata como contas de camândulas franciscana. Enquanto o sapateiro, de joelhos, estica a servilha negra do casquilho e lhe mete pelas coxas os “rolos” que fazem as pernas mais altas, – o Neves assiste de longe ao enfiar da casaca; mira-a, remira-a; a distância, com a ponta da bengala, desdenhosamente, toca de leve uma prega, desfaz uma ruga importuna, compõe os bofes de rendas da camisa, dá um jeito de graça aos perendengues de oiro do relógio, e soberbo, indiferente, formidável, profere a sentença que na sua boca custava oito dobras de seis mil e quatrocentos réis:

– Vossa Mercê pode ir. Está casquilho.

Aquilo que ali ia, de óculo de punho de oiro assestado à órbita, casaca de seda negra, sapatinho rasteiro, fivela enorme, cabeleira “à Ia greca”, bastão de punho de Limoges, lenço de rendas metido na luva, descendo a ,escada nobre da casa entre o desvanecimento parvo do mercador, o orgulho risonho de Dona Mança e o saracoteio voluptuoso das mulatas mordidas de cio e de lunduns, – era genuinamente o casquilho de 1770, o elegante da burguesia pombalina, herdeiro do faceira de D. João V, antecessor ingénuo do “peralta” da Viradeira, do “janota” do tempo dos Franceses e do “pisa-flores” ridículo de 1820. Quando ele subia ao coche, desdenhoso, fútil, a caminho da casa solarenga da rua Formosa, – a mãe Dona Mança, a rever-se toda na casquilhice do menino, sonhando o absurdo dum brasão dos Nunes, no teto de oiro duma nova sala dos Veados, em lisonja com o escudo dos Melos e dos Dauns, perguntava em êxtase ao mercador, que seguia o filho com os olhos e que ameaçava com as ancas um fandango desnalgado da Pepa:

– Quantas filhas solteiras tem ainda o senhor marquês de Pombal?

E o papagaio, ao sol, batendo as asas verdes na janela dó pátio, ria às gargalhadas:

– Pombal! Pombal!

 

Júlio Dantas

 

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