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Um
jogo de prendas |
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A partir de 1730, as grandes casas fidalgas de Lisboa começaram a imitar o
Paço. D. João V dava comédias e óperas na Sala dos Embaixadores? Dançava
com as senhoras titulares? Tocava cravo a rainha? Armavam-se grandes bufetes
de doce com a chilacaiota, os caroços de Arouca, os bolos de alforge, o
manjar branco de Celas e o toucinho do céu que mandavam de presente a el-rei
os frades de Alcobaça? Pois bem. Daí a pouco; as mais nobres casas de Lisboa
abriam as suas portas a primos e a parentes. Os serões de família
principiaram. Não importava que os velhos pardieiros fidalgos da Lisboa
patriarcal fossem, como mais tarde os descreveu Costigan, «casarões armados
de panos de Arrás e cheios de buracos de ratos». Saíam das arcas da prata
as serpentinas de quatro e de seis lumes; chamavam-se dois músicos, irmãos
de Santa Cecília, para tocarem espineta e rabeca; as meninas vinham dos seus
estrados mouriscos, encandeiadas das luzes, toucadas e polvilhadas como para
janela de procissão ou serenim do paço; os faceiras fidalgos, todos muitíssimo
primos, beijavam-lhes as mãos fazendo as cortesias como ensinava o mestre
francês de dança Mr. Dupré, morador aos Remolares; e enquanto palravam os
papagaios, os negrinhos pinchavam pela sala, e os velhos, de manguitos,
tirando as cabeleiras e esmoncando o estorrinho em alcobaças sarapantões,
atiravam os dados do gamão, - chegava infalivelmente, chilreado de risos,
voluptuoso de contactos, florido de lenços e de leques, o grande jubileu de
amor dos serões nobres do século XVIII: o jogo de prendas.
A procissão trouxe o namoro para as ruas: o lausperene trouxe o namoro para
a igreja; ao jogo de prendas estava reservada a glória de trazer o namoro
para os serões de família. Numa sociedade em formação, como a portuguesa
de 1730, que desconhecia os mais nobres prazeres intelectuais, que não sabia
conversar que nem mesmo sabia divertir-se, obscurecida, deformada durante um
longo século por uma educação de cavalaria e de oratório, - o jogo de
prendas foi um achado. Era o passatempo ideal das sociedades sem espírito.
Foi, mais ainda do que a dança, mercê das liberdades permitidas nas suas
marcas, nas suas sentenças e nas suas penitências, uma verdadeira academia
de namoro. Quando chegava o «beijo à capucha», o «abraço de freira», ou
o «inferno» trilado de beijos repenicados, as velhas fechavam os olhos,
voltavam a cara, engranzavam ave-marias nos rosários, - mas concordavam logo,
cabeceando os toucados negros, como mulas de liteira de alquiler, que tudo
aquilo estava na «ordenação do jogo». Toda a severidade do Portugal
antigo, todos os recatos, todos os biocos da educação jesuítica
desaparecia, por encanto, ao formar-se, à volta dum sofá, uma roda de jogo
de prendas. Era a mocidade que reclamava os seus direitos, que ressurgia dos
lares monásticos do século XVII, que voltava a galantear e a sorrir, a abraçar
e a beijar, - como se Tibulo, coroado de rosas, viesse espreguiçar-se sobre
os tapetes macios de todos os solares de Lisboa...
- O jogo das Comadres?
- Não, não! Antes o do Toucador...
- O da Cidade de Roma?
- Ai, mana, o da Galinha-cega!
- O dos Tortos, que é tão lindo.
- E o do Conde, que se baila à roda?
- Cá está o anel, minha alma!
- Um chapéu! Venha um chapéu!
- Chaínha, leva o macaco!
- A cadeirinha
- Mana, o periquito!
Tudo se dispunha para o jogo, gralhando, chilreando, rindo. As bandarras
fidalgas, pingadas de diamantes, o abanico de seda na mão, assentavam-se,
bojando os donaires, com os negrinhos aos pés a comporem-lhes a saia; os
faceiras cortejavam de mergulho, sacudiam os mostachos empoados da cabeleira,
tiravam os lenços do punho doirado do quitó, e cavalgavam em tamboretes,
fazendo meia laranja adiante do sofá das franças. Era o turina mais engraçado
que presidia, de pé no meio da roda, uma varinha na mão, o chapéu holandês
de três ventos a mamar no sovaco, a boca em assobio, as pernas trocadas como
se estivesse fazendo um quarto de hora de estafermo; apontava uma das
bandarras, ao acaso da vara ou do coração, e era ela que principiava o jogo,
em falsete, a boca escondida no leque, um sinal de tafetá a arrebitar-lhe a
asa do nariz, um rosicler de prata na testa, uma trémula de diamantes, buliçosa,
a escorrer-lhe do seio:
- «Esta é a cidade de Roma».
Logo o faceira da direita, de casaca de rico encarnado, ceceoso, a mirá-la
de soslaio e a morder o lencinho
- «Na cidade de Roma há uma rua.»
- «A rua vai ter à praça.»
- «Na praça há uma casa.»
- «Dentro da casa, um pátio ...»
E a roda continuava, guinchada, corrida em tiple, picada de risinhos,
andando sempre pela direita, - agora um frade moço, sanguíneo, sobrinho do
dono da casa, cercílio luzidio e cogula de bento; logo uma frança bonita,
sorrateira, toucada de amarelo «à alemoa», que se entretinha a chegar o
joelho, pouco a pouco, à perna do frade; depois, um chasquinho de peruca,
gravata «à corsária», namorador, tatebitate, fidalgo como as mulas de
el-rei, blasonando dos caldeiros negros dos Pachecos e da asa vermelha dos
Alburquerques; por fim, abades, marqueses; bandalhinhos piscando os olhos,
frades trinos em férias, beneficiados da Sé Patriarcal, bandarras dengosas
com cães de fralda no regaço e periquitos verdes no ombro, - e atrás, os
negros, os macacos, as mulatas da casa, a «Dona Benedita», a «Dona Chaínha»,
a «Dona Rosa», vestidas de cores, a rir, a gritar, a bater palmas quando a
roda do jogo desandava, e o «passarinho
Jungia da gaiola, que eslava na mesa, que havia na sala, que dava para a,
escada, que descia ao pátio, que pertencia à casa, que estava na praça, que
dava para a rua onde se abria a porta da cidade de Roma». Se algum se
enganava, se engasgava, se perdia, logo todos se levantavam em sorriada,
turinas e francas, bandarras e frades, gritando, matraqueando, rindo:
- Pague prenda! Pague prenda!
O açafate
enchia-se de anéis, de rosicleres, de abanicos, de lenços, de broches de
pedras, de caixas de rapé, de vidrinhos de água de Córdova, - e vinham então
as sentenças, as penitências, «morder um cotovelo», «enfiar urra agulha
com os olhos tapados», «pôr os quatro pés na parede», «dizer um verso
rindo, outro chorando», «fazer de esquina para lhe pegarem cartazes de comédia
nas costas», «beijar uma caixa dentro e fora, sem a abrir»; depois as
perguntas, «se a minha boca fosse condessa, que lhe metia dentro?», «se eu
fosse lenço, que faria de mim?»; em seguida, a sentença da «berlinda», em
que o penitente, faceira ou fiança, metido na berlinda rica da casa quando o
jogo era no pátio, numa cadeirinha de arruar ou num tamborete quando era na
sala, ouvia todas as impertinências que queriam dizer-lhe os da roda; por
fim, as mais deliciosas penitências do jogo, o «beijo à capucha», com a
frança e o faceira ajoelhados no chão, de costas um para o outro, inclinando
as cabeças para trás até se aflorarem de leve as bocas; o «abraço de
freira», em que o casquilho, como se fosse um freirático, era forçado a
estreitar a sua dama através das grades de um espaldar de cadeira; o «beijo
atrás da porta»; «medir varas»; o «purgatório»; o «inferno», em que
uma bandarrinha se assentava nos joelhos dum faceira para ser beijada por
outro; - e quantas mais penitências, voando na asa leve dum perfume de beijos
e de polvilhos de França, criações ingénuas da grosseira volúpia do século
XVIII português, névoas fugitivas de sonho, queie à volta dum sofá, sobre
um tapete de Arraiolos, no clarão de meia dúzia de serpentinas de prata,
conseguiam transformar um jogo imbecil num paraíso perdido de namorados!
- Que
lhe parecem a Vossa Reverência os jogos de prendas? - perguntou um dia a D.
José da Glória, geral dos Crúzios, a velha condessa de Pombeiro.
O
frade tossiu, tabaqueou a pergunta, alagou os refegos da barba e respondeu de
arremesso:
- Uma pouca-vergonha.
Júlio
Dantas
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