Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

INÍCIO      ARTIGOS

As Descidas de Coche

Descida de coche

Descida de coche


 

Há serão de ópera no Teatro do Bairro Alto. Cantam a Luísa Rosa e a Angiola Bruzza. Dançam a primeira bailarina Guadagnini e o bailarino cómico Banbilla. Já chegou a sege da senhora marquesa de Pombal. Espera‑se el‑rei D. José, o Patriarca, toda a corte. Um enxame empoado de casquilhos de cabeleira “de bandas”, e de gravata de lençol, cuspidos de rendas, abordoados a bastões; enfiados em capotinhos de saragoça forrados de seda branca, o óculo de punho de ouro erguido na mão, zumbe no soalheiro fidalgo do pátio do conde de Soure, coalhado já de seges de arruar, de liteiras, de florões, de calejas alugadas no Pedro Fernandes ao Noviciado das Chagas. Que faz ali, ao sol, toda aquela casquilhice pombalina, curvando‑se em Gloria Patri, arfando as ventas sensuais, mirando pela vidraça dos óculos dourados, cochichando, sorrindo, espreitando, piscando os olhos? Assiste ao divertimento predileto do casquilho de 1776, a um espetáculo mais saboroso ainda para ele do que os bailados da Rosa Campora ou do que os fandangos da Pepa ou da Joana: assiste às “descidas de coche".

O que foram as “descidas de coche" na história voluptuosa do século XVIII português?

Montesquieu, que soube surpreender os nossos ridículos com um talento e uma subtileza incomparáveis, fez acerca dos portugueses de 1720 está observação feliz: "Ils permettent à leurs femmes de paraître avec le sein découvert; mais ils ne veulent pas qu'on leur voie le talon et qu'on les surprenne par le bout des pieds"1. Era rigorosamente exacto. O português do século XVIII, deixou a mulher decotar-se até à alma: mas ai dela se mostrasse sequer, ao ajoelhar-se na igreja, a ponta ligeira e inquieta dum pé! A nudez coleante dos ombros; a revelação da polpa gloriosa das espáduas e dos colos, branca de polvilhos de França, ou da apojadura forte e ondulosa dos peitos, coalhada de trémulas de diamantes e dos topázios tão queridos, diz Twiss, das portuguesas de 1770, – não ofendiam nem a virtude das mulheres, nem a hipocrisia dos frades, nem o sentimento de posse exclusiva que caracterizava, no seu orgulho crassamente espanhol, a honra tradicional dos maridos. O seio nu foi, desde o terceiro quartel do século XVII até ao primeiro quartel do século XIX, a moda admitida e consagrada. Puderam as mercuriais condenar-lhe alguma vez o exagero e o excesso; pode frei Alexandre da Paixão estranhar, em 1668, “que os homens andassem enfeitados como mulheres e as mulheres nuas como maganas”; pode ainda frei José de S. Cirilo Carneiro, carmelita calçado, ulular, no tempo dos Franceses, “que era pecado mortal andarem as mulheres nuas de peitos e de braços”: pode, finalmente, o padre José Agostinho de Macedo, brandindo como um arrieiro o seu cacete apostólico, acusar na Besta Esfolada as malhadas gaivotas de “andarem meias nuas pela rua, e de quererem andar despidas de todo”: o uso tinha admitido os próprios desmandos das senhoritas da comédia e das mulheres-damas – “os portugueses passavam já pela nudez dum seio com a indiferença maravilhosa de quem não via outra coisa à roda de si; só os estrangeiros paravam na rua, perturbados, curvando-se, assentando o óculo, e exclamando, como em 1777 o ci-devant Duque do Châtelet: – “Que encanto, o das portuguesas! Não há europeia alguma que tenha melhor carnação!” O costume dos grandes decotes entranhara-se de tal modo nos hábitos nacionais, que quando, em 1764, apareceu a moda de velar o colo com lenços transparentes “à húngara", as mercuriais choveram, os moralistas gritaram, a opinião geral considerou os peitos semi-velados como uma solicitação abominável ao pecado, voaram os lenços para sempre, – e a polpa branca de todos os seios voltou, livre e nua, a flamejar diamantes nos serenins de Queluz e nos faraós do Paço, nas forçuras italianas dos Condes e na ópera real de Belém. Chegara-se ao absurdo de proclamar a nudez, – em nome de mais rigorosa moral!

E, entretanto, a mulher portuguesa do século XVIII, tão pródiga em revelar as maravilhas de carnação dos seus braços e do seu peito, – não pode, sem grave ofensa do decoro e da virtude, mostrar a ponta dum pé. A nossa moral de mosteiro e de cavalariça, sem harmonia e sem lógica, usou dois critérios opostos de pudor: um, absolutamente pagão, da cintura para cima; outro, escrupulosamente católico, da cintura para baixo. O seio nu podia mostrar-se à vontade; o pé, defendido, velado, calado embora de espesso veludo berne, – todos os cuidados, todas as polheiras, todos os guarda-pés pesados de escarcha de oiro eram poucos para o ocultar. Que sucedeu? O que era inevitável. – A curiosidade voluptuosa do casquilho desviou-se, com indiferença, da nudez que se mostrava, para perseguir, para adivinhar, para adorar com paixão o encanto misterioso que se escondia. Daí por diante, toda a volúpia do século XVIII palpita, numa penumbra doirada e incerta, em volta dessa ponta de pé ou dessa nesga de perna, mil vezes sonhados e uma só vez entrevistos, que resumem, para o apaixonado de 1770, toda a beleza inatingível, todo o mistério perturbador da mulher. Pressenti-los num instante; surpreendê-los num relâmpago: eis a preocupação suprema do casquilho. Mas como, se os guarda-pés arrastam, pesados de prata; se os donaires pojam; se as polheiras, sabiamente dispostas sobre o arco de levantar, defendem, em cada movimento, a perna que se furta e o pé que se esconde? Como e quando? Muito simplesmente: nas “descidas de coche". A “descida de coche” era a hora; era o momento; era o relâmpago. O coche parava, esticando os correões, no pátio dos Condes ou do Bairro Alto; erguia-se a casquilha, polvilhada e pingada de jóias, sobre o persevão de tapete; e enquanto dez, vinte, trinta lunetas de punho de ouro a espreitavam, a perseguiam, a devoravam, – assomava um pequenino pé, calcado de riço vermelho, abrochado de minas luzentes, tateando o estribo; uma pantorrilha de seda, esbelta como um colo de ganso heráldico, surgia, mordida de luz; e se os criados da tábua não corressem a aconchegar-lhe o guarda-pé, se a dona velha, primeira a descer, lhe não atirasse à frente a sombra do bioco, – as beatas tossiam, os casquilhos caíam em êxtase, e havia jubileu até à liga...

– Porque será que os homens acham tanta graça a uma perna? – perguntava um dia a linda condessa de Soure, furiosa, ao descer do coche para um serão da ópera de Belém.

Logo o marquês velho de Resende, os punhos de renda espetados, oferecendo-lhe o braço:

 – Porque é pecado, senhora prima.

 

Júlio Dantas



1. “Permitem que as suas mulheres apareçam de peito nu, mas não querem que se veja o calcanhar e que sejam surpreendidas pelos pés.”

 

Anterior: O Casquilho Topo da página Seguinte: A Corte e o Faraó

 

 

   
     
 

© Manuel Amaral 2009-2012