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Frei
Gaspar da Encarnação a dançar |
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Pela assomada de Maio de 1745, toda a gente cantava em
Lisboa, regateiras e maranhoas, mariolas e negros, casquilhos e sécias, da
Ribeira das Naus às escadas do Hospital Real, do postigo de S. Roque às
hortas verdejantes do Catavento, uma cantiga que pegara pela cidade como uma
labareda:
Já não se dançam cheganças
Que não quer o nosso rei,
Por que lhe diz Frei Gaspar
Que é coisa contra a lei. |
Meninas bonitas,
Moças com fitas,
Casquilhos e abades,
Freiras e frades,
Chorai, chorai, chorai,
Acabou-se, já lá vai. |
Não havia dúvida. Estavam proibidas as cheganças. D. João
V fizera expedir pelo cardeal da Mota um alvará mandando meter no Aljube e no
Tronco todo o picão ou alfamista, toda a fregona ou frança-dama que fosse
pilhada a bater cheganças pelas ruas, pelas hortas ou pelas tabernas da
cidade. Esse alvará tinha sido inspirado por frei Gaspar da Encarnação, no
século Gaspar Moscoso da Silva, irmão do velho marquês de Gouveia já
morto, deão da Sé de Lisboa aos vinte anos, reitor da Universidade aos vinte
e cinco, professo desde os trinta na religião de S. Francisco e na casa dos
missionários apostólicos do Varatojo, e companheiro de infância, amigo íntimo,
conselheiro privado do rei. Porquê? Porque mereceu semelhante dança a honra
de ser proibida? O que eram, afinal, as «cheganças»? Que tinha que ver com
as danças de farta-velhacos o nobre frade varatojano?
Eu lhes conto.
Certa manhã, Frei Gaspar, arredado da corte havia muito
tempo, meteu no atado umas bragas de burel, um chiote novo e umas avarcas de
bezerro, despediu-se dos padres discretos, enfiou para a liteira da Casa Real
que D. João V mandara de cote para o conventinho do Varatojo, e, no passo
choutão das bestas, mordendo poeira e sorvendo sol, meteu até Lisboa. Na
Malveira, como se lhe desferrasse um macho das mudas, envesgaram, bestas,
liteira e frade, por um carreteiro que levava à loja do «Chicória», a um
tempo taberna, casa de estalagem e banco de ferrar, à entrada de um souto
pequeno de carvalhos. Enquanto um moço remangão, de avental de sola,
chamuscado do lume da forja, batia o ferro do cornozelo sôlto, - Frei Gaspar
apurou o ouvido para um zangarreio de viola e um tairocar de sócos que vinha
da estalagem, assomou à soleira da porta, entestou a mão sobre os
olhosencandeados, e espreitou. Um homem e uma mulher dançavam, lá dentro.
Alguma das danças vadias da primeira metade do século XVIII, o «arrepia»
ou o «arromba», o «oitavado» ou o «Zabel Macau», conhecidas de toda a
gente, - até dos frades do Varatojo? Não. Pior do que isso. Era uma dança
de abominação e de inferno, tão rebolada de quadris, tão jogada de lombos,
tão batida de ventres, que o velho varatojano recuou, afogueou-se, tremeu de
indignado, chamou o liteireiro cujo vaqueiro vermelho chamejava ao sol e
apontou-lhe os da dança:
- Que ignomínia é aquela, Tomé?
- São as cheganças, reverendo padre.
Frei Gaspar, meneando a cabeça, considerou um instante
ainda aquela obra de Satanás; teve, vai-não-vai, um arremesso de corpo para
desabrochar a sua cruz peitoral e converter, pregando, os dois perdidos que
tairocavam à ilharga da forja; mas o macho estava ferrado: a soalheira
queimava; - e o varatojano, a engranzar padres-nosso, acolheu-se à liteira e
seguiu viagem. Passaram-lhe à beira do caminho sebes floridas de mato queiró;
pinhais escuros, ramalhando, faulhantes de caruma e cheirosos de resina
ardida; mais aquém, vinhedos doirados, crestados de pó; por fim, a lezíria
verde e imensa, húmida e tranquila, estendida até ao rio imóvel corno tinia
solda de, prata derramada: - e frei Gaspar, dentro da liteira da Casa Real,
espipado, sonolento, queimado da estamenha, espessa do hábito, pensando
vagamente em quadrilheiros; e alcaides, em meirinhos e corregedores, no Ordinário
e na Inquisição, enfiou, já no termo da cidade, os caminhos de Santo António
do Tojal; meteu ao campo de Alvalade, negro de arvoredos; cruzou o Arco do
Cego, cuja silharia caíra para poderem passar os coches de D. João V; desceu
às hortas virosas de Valverde, - e branco de poeira, abanando o hábito para
arejar as pernas, veio, no chouto dos machos, desembocar ao Rossio. Quando, já
sol-posto, passava ao Arco dos Pregos e entrava no terreiro do Paço da
Ribeira, - um ruído de machete e de sanfona soou-lhe perto; voltou-se, e
entre uma matula negra de mariolas e de mulatos, de soldados e de frades, de
ciganas de corriola e de macacos empoleirados a catar gente, viu um alfamista
negro e uma regateira de saia de veludo e carnaças de abadessa, voluptuosos,
ofegantes, possessos, danando, ancas contra ancas, peneirando-se, coxas contra
coxas, como faunos hirsutos a coçarem-se, na primavera, pelos troncos das árvores
floridas.
- O que é aquilo, Tomé?
- São as cheganças, reverendo padre.
O furor deu asas ao varatojano. Precipitou-se da liteira,
com o atado das avarcas e do chiote às costas; meteu pelo paço; galgou à
sala dos Escudeiros; perguntou ao José Vermuéli, criado do duque do Cadaval,
se el-rei estava recolhido; pareceu-lhe sentir, ao cruzar os corredores, uns
sons vivos e chocalhados de cravo; afastou uma guarda-porta, - e estacou, no
limiar, os rosários ramalhando, os olhos arregalados de pasmo. Enquanto um
frade trino, de grandes óculos verdes, tocava assentado diante de uma
espineta holandesa, um moço da câmara e uma açafata alemã da rainha
saracoteavam-se, de quadris unidos, numa dança furiosa.
- Que é isto,
Vermuéli?
O criado do duque do Cadaval tossiu, para avisar; baixou
os olhos; e, quando a guarda-porta tornou a cair, respondeu:
- São as cheganças, reverendo padre.
Era a grande dança lisboeta do momento, que irrompera
bruscamente por terreiros e ruas-sujas, pelos alpendres da Mouraria e pelas
hortas do Ducado, que invadira tudo, desde o Mocambo até ao Paço dos reis,
batida agora nos socos de pau das maranhoas, tairocada logo nos sapatos de
perdiz das «franças», desnalgada, violenta, ignóbil, mas viva, orgulhosa,
pitoresca, ondulada primeiro em ritmos de chacoina, rompendo depois em
sapateados bravos de fandango, acabando, ventre contra ventre, peito contra
peito, no impudor canalha da «fofa» das mulatas e dos negros, - velha avó
do fado-batido, em cujo ímpeto sangrento e risonho, convulso e formidável,
ardia e cantava a alma fulva da raça. D. João V, paralítico havia três
anos, dava despacho na Sala dos Tudescos ao cardeal da Mota, quando Frei
Gaspar da Encarnação lhe caiu aos pés, bradando:
- Senhor, que se Vossa Majestade não proíbe as cheganças,
está no inferno com elas
O rei cuidou que o frade endoidecera, levantou à órbita
o seu óculo de punho de ouro, e enquanto o cardeal ajudava o varatojano a
erguer-se, mirou-o numa expressão idiota:
- Mas o que são as chegavas, Frei Gaspar?
- Vossa Majestade não sabe o que são as cheganças, e já
as dançam no Paço as açafatas da senhora rainha?
A púrpura do secretário de Estado acudiu, esclarecendo:
- É a dança dos velhacos da Ribeira das Naus, meu
senhor.
- Eu não conheço as cheganas, Frei Gaspar, objectou o
rei.
- Como queres tu que eu proíba uma coisa que nunca vi?
O varatojano teve um momento de hesitação e de
perplexidade. Olhou o rei; olhou o cardeal da Mota, que sorria; falharam-lhe
as pupilas; sacudiu um arremesso de ombros, como de quem se decide; mirou as
portas, não entrasse alguém; tirou do pescoço a sua grande cruz de missionário;
beijou-a; pô-la sobre a mesa do despacho; remangou-se; sofraldou a estamenha
do hábito, - e descobrindo as pernas negras, escaneladas, cabeludas, entrou
de repente nuns requebros, num dar de lombos, num sapateado de fandango, num
saracoteio de nádegas tão desesperado, num tão lastimoso arrancar de
chegavas contra o ventre vermelho e aflito do cardeal da Mota, que o rei
destampou a rir a trancos, o prelado fugiu pela sala a queixar-se da sua fístula,
a gritar pelo óleo de ouro do médico Ortigão, e o varatojano, descomposto.
descon
juntado, alagado, felpudo, ofegante, resvalou a arquejar sobre uma
cadeira de tapeçaria, as bragas à mostra, a cabeça ourada de vertigens,
repetindo:
- Seja pelo divino amor de Deus! Seja pelo divino amor de
Deus!
No dia seguinte, era expedido aos corregedores dos bairros
o alvará proíbindo as cheganças, e três dias depois toda a gente cantava
pelas ruas da cidade:
Meninas bonitas,
Moças com fitas,
Casquilhos e abades,
Freiras e frades,
Chorai, chorai, chorai,
Acabou-se, já lá vai
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Júlio
Dantas
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