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Duelo com Quitó |
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Montesquieu,
referindo-se a Portugal - o Portugal sangrento, amoroso e taciturno do fim do
século XVII disse que todo o português tinha uma dupla ambição: «être
le propriétaire d'une grande epée et avoir appris de son père l'art de
faire jouer une discordante guitarre».
O
autor galante do Temple de Gnide não se enganou. As espadas
portuguesas do século de seiscentos, com a sua grande tigela de ferro, as
suas guardas e contra guardas imitadas das toledanas de Alonzo de Sahagon, a
sua enorme lâmina soldadesca de seis palmos bem medidos, dextra para o jogo
florido de Espanha, firme para o jogo holandês de salto, foram as mais formidáveis
de todas as espadas que nos duelos e nas brigas do século XVII tiniram,
ferrolharam e lampejaram ao serviço da honra, do orgulho é do amor. Puderam
alvarás sucessivos, a partir da ordem filipina de 5 de Janeiro de 1621,
determinar, sob pena de degredo para Angola aos infractores, que se
encurtassem até cinco palmos as lâminas das espadas de Portugal. Foi inútil.
Não houve, dos solares do Douro ao conventinho de Estombar, quem mandasse
cortar meia polegada de ferro a um estoque. Os fidalgos portugueses tinham-se
acostumado a medir pela grandeza da sua fidalguia o tamanho das suas espadas.
Foi com ferros compridos de seis palmos que se bateram, em 1655, no jogo da
bola, os condes de Vimioso e de S. João contra os filhos dos condes de
Castelo Melhor e de S. Lourenço; foram toledanas enormes que faulharam, em
1658, no trágico desafio dos Alvitos; foi ainda com espadas portuguesas de
mais da marca que em 1669, num pátio de comédias, por causa duma rosa caída
dum camarote, o irmão do marquês de Fontes feriu o filho do conde do Prado;
que em 1676 se desafiaram, disputando o leito duma mulher-dama francesa, o
senhor de Pancas e o moço marquês de Marialva; que em 1663 se iam matando,
por um sorriso da célebre espanhola Martinha, dois fidalgos portugueses que
podiam ter vestido as pantalonas negras de Scaramuce e a coira de búfalo do
capitão Spaventa: o nobre conde da Torre e o nobilíssimo conde de Atouguia.
Eram grandes as espadas? Se eram enormes os corações! Fosse lá um ministro
dos bairros fazer cumprir os velhos alvarás de Filipe IV, impor tamanhos às
lâminas e marcas às contra guardas: caía de borco numa poça de sangue,
como o corregedor do Bairro Alto, atravessado pelas costas, em 1694, junto ao
postigo da Trindade, ou como o juiz do crime Matias Rebelo, abatido em
Cata-que-Farás, poucos meses antes, com dois palmos de ferro pela boca...
Mas
o que não pôde fazer, durante todo o século XVII, a força da lei, -
conseguiu-o nos primeiros anos do século XVIII, a fragilidade da moda. Com os
rudes gibões de dozeno e de vintadozeno que nos valeram em Madrid a alcunha
de «sebosos»; com os largos chapéus de chamorro e de bigúnia que fizeram
rir Luís XIV, desapareceu a severidade patriarcal, perderam-se os hábitos
viris dos portugueses velhos. D. João V, estrangeirando a corte, efeminou-a.
As modas de França, trazendo a graciosidade e a elegância na sua asa de
rendas; proscreveram as enormes espadas soldadescas povoadas de Cristos e de
legendas, deixaram-nas enferrujar no fundo das velhas arcas de castanho, pelos
recantos dos pesados armários holandeses ou à cabeceira dos meninos de mama
«para afugentar as bruxas», - e substituíram a viril rapière por um pequenino espadim de criança, leve como um
brinquedo, caro como uma jóia, feito mais para namorar do que para matar,
cuja lâmina, pela lei joanina de 1719, não podia exceder três palmos, e em
cujas guardas douradas o faceira pendurava, como um floco de espuma, o seu lenço
eloquente de cambraia ligeira. Foi a esse espadim, traste indispensável do
namoro português do século XVIII, falsete ridículo da espada seiscentista,
bengalinha caranguejeira de punho de Limoges inventada para arreganhar a
casaca e para fazer sinais às mulheres, que os franças saltitantes do tempo
de D. João V chamaram - o «quitó». Em 1707, já o conde de Coculim
encomendava para Londres a D. Luís da Cunha um espadim da moda, «quanto mais
pequeno melhor». Em 1720, por ordem do corregedor do Rossio, os alcaides
recolhiam as últimas toledanas de seis palmos que os embuçados traziam
debaixo dos mantos. As grandes espadas espanholas e holandesas estavam mortas.
Por detrás do «homem da espada» de Frans Halls, sorria, todo de branco, o Gilles
de Watteau. O reinado do «quitó» principiara.
Uma
revolução? Quase.
Daí
por diante, como os quitós são frágeis e incertos, é a tiro que se fazem,
de noite, aos quatro cantos de Lisboa, as esperas «para matar». D. Francisco
Manuel, comissário de cavalaria, é morto a tiros de clavina, com nove balas
no peito, junto ao muro do Colégio dos Jesuítas: André de Melo salva-se,
por milagre, dum tiro de bacamarte que lhe leva um bolsilho do calção; o
conde de Vimioso - conta Brochado, para Londres, em carta ao conde de Viana -
recolhendo de noite a casa e galgando o Chiado, recebe uma arcabuzada que lhe
esfrangalha o espaldar do coche, sem o atingir a ele. Com a clavina
assassina-se; com o espadim namora-se. E enquanto os tiros estoiravam nas
ruas, estendendo cada dia quatro e cinco mortos, - o faceira, risonho, enfiava
no boldrié o seu quitó de prata, fino como uma agulha, comprado no ourives
Cristiano Frezi ou no António maltês do Beco das Tábuas, e tão pequenino
que lhe chamavam «quitó de nascer»; ensaiava com ele as posturas do namoro
de estafermo; metia-o às meias-voltas entre as coxas, para significar
ternura; debruava-lhe o lenço das guardas doiradas, como quem diz «eu volto
amanhã»; subia-o à boca até beijar-lhe os punhos, que queria dizer «como
é linda!», - e aos saltos, às upas, na raçada quente do sol, sem se
lembrar de que levava à ilharga uma arma, lá ia escudeirando pelos arcos do
Rossio, bufarinhando pela Rua Nova dos Ferros, até encalhar, de estafermo ou
de estaca, debaixo da rótula duma frança, do postigo duma cómica, da
gelosia duma freira.
Mas
não se julgue, porque foi uma arma de namoro, que o quitó era inofensivo
como uma vara de pálio. Não. Os quitós do século XVIII têm a
responsabilidade de muito sangue e de muita morte de homem. Simplesmente, nas
mãos dos faceiras e, dos asquilhos, dos bandalhos e dos peraltas,
assassinavam com uma gentileza e uma graciosidade, que não seria lícito
exigir no tempo das grandes espadas de ferro de que nos fala Montesquieu. Uma
rápida notícia do Mercúrio de Lisboa,
de 6 de Março de 1745, dá-nos a impressão do que seriam os desafios no
tempo de D. João V: «Na rua dos Ourives da Prata se apearam dois casquilhos
das suas carruagens, e, tirando o chapéu um ao outro, puxaram dos espadins e
começaram a pendenciar até que os ourives os apaziguaram». Era o duelo cortês.
Era o duelo, en dentelles. Foi com
um quitó, pequenino como uma jóia, que em 6 de Junho de 1742 o marquês de
Alegrete, por causa duma espanhola criada das damas da comédia, varou o peito
a um sobrinho do embaixador de França. Foi com dois espadins franceses,
ligeiros, que na tarde de 9 de Novembro de 1743, à Bica do Sapato, o marquês
de Cascais e Luís Gonçalves da Câmara se bateram com tão veemente cortesia
que, se não passam uns frades barbadinhos, tinham ficado ambos mortos na
calada. Quando o filho do marquês de Távora e Bartolomeu de Escara e
Vasconcelos se desafiaram junto ao Paço do Bem-Formoso, na noite de 25 de Março
de 1744, cumprimentaram-se primeiro, graciosamente. Foi com um espadim doirado
de agulha que o menino de Palhavã D. António correu sobre o marquês de
Pombal, que lhe contrariara o casamento com a princesa herdeira D. Maria;
brandia um «quitó de nascer» o duque do Cadaval, quando, no teatro do
Bairro Alto, em 1770, por causa duma cantora italiana, desafiou o marechal
inglês Duarte Smith; foi, finalmente, com um pequenino faim de punho de prata
que o conde de S. Vicente, ciumento da cómica Esteireira, deixou morto sobre
uma poça de sangue, na Travessa da Espera, o mestre de campo Teixeira
Homem...
Arma
simultaneamente de morte e de amor, o quitó doirado ficará, como um símbolo,
na história galante do século XVIII. E o que é afinal o amor - disse-o Frei
António das Chagas falando às freiras de Setúbal - senão a imagem
enganadora da morte?
Júlio Dantas
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