A Corte e o Faraó | |||||||||
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Em que passava o tempo a corte de D. José, –
essa corte, no conceito de Dalrymple, “si peu elegante”? Jogando. E
o conde de Stahremberg, enviado extraordinário da Áustria, que o diz em
carta de 12 de fevereiro de 1751 dirigida ao seu governo: “A corte anda
sempre de Lisboa para Belém; quando não se mete no picadeiro, joga as
cartas. O seu divertimento favorito é um jogo de parar chamado – faraó”.
Tinha razão Stahremberg. A corte fazia o que fazia o rei, – e D. José,
quase permanentemente, jogava. Todas
as madrugadas, casquilhos e casquilhas da intimidade do Paço enfiavam
estremunhados os seus capotes de saragoça, encapuzavam‑se por causa do
frio, saltavam para uma liteira ou para uma estufa de viagem, e ou iam com o
rei caçar perdizes às coutadas de Salvaterra, ou chouteavam até Belém,
onde Sua Majestade levava manhãs inteiras a amansar potros no picadeiro com o
marquês de Marialva, os Roquetes e o Antonico Gordo. Se à tarde não havia
ópera no teatrinho dourado do palácio, com o soprano Violani, o contralto
Geziello, o tenor Raff e o bufo-caricato Marchese, – tudo homens, porque
Mariana Vitória, diz o inglês Twiss, “tinha tantos ciúmes do rei, que não
queria cómicas no Paço”, – era sabido que rodava tudo para Lisboa,
seges, estufas, calejas, liteiras e coches, a acolher-se ao Paço da Ribeira,
onde havia todas as noites, até às onze horas, a infalível partida de faraó.
A princípio, o faraó só se jogava no Paço; mas, com o andar do tempo, “o
jogo de el-rei” tornou-se moda; a moda converteu-se em vício: sumiu-se, com
a vara de prata dos corregedores, o alvará importuno de 1677, – e as
grandes casas fidalgas de Lisboa, a principiar pela morada solarenga do
primeiro-ministro, começaram a oferecer em dias certos, a suas senhorias os
casquilhos da corte, partidas semanais de “faraó francês”. O conde de
Redondo – ou antes, a viva e linda condessa de Redondo, porque o conde
levava os dias a podar roseiras e as noites a rezar nas contas – dava a sua
partida às segundas-feiras; Sebastião José de Carvalho, às sextas; o
cardeal da Cunha, D. João Cosme, depois de mandar armar de damasco as salas
do palácio do Rossio e de coalhar as mesas de serpentinas de prata de seis
lumes, oferecia às quintas-feiras assembleia de faraó à corte e ao corpo
diplomático, fazendo servir os doces por criados com o hábito de Cristo ao
pescoço; o próprio Prior de S. Domingos dava partidas de jogo aos frades e
comia em chás e doces da Mesurada as rendas do convento; eram frequentes as
mesas de faraó em casa do embaixador de Franca, marquês de Clermont d'Amboise,
a que não faltavam – diz Goubier de Barrault em carta ao conde de Oeiras
– as casquilhas fidalgas de 1770: "Todas as belezas de Lisboa ali
estavam, desde a senhora condessa de Soure até Dona Maria Clara, que vem
avivar um pouco as cinzas da sua imaginação. Cosiam-se umas com as outras
como carneiros em dia de chuva. A ninfa da Penha de França sorria; a eremita
de Palhavã fazia boquinhas; outra senhora parecia um Stabat Mater Dolorosa; Madame
Forbes tinha o ar de Dido abandonada; as restantes senhoras sacrificavam no
altar do jogo..." É precisamente a presença das mulheres que explica o
perturbador encanto das partidas de faraó durante o período pombalino.
Houvera já, em 1708, em casa do marquês de Cascais, as célebres assembleias
de jogo de parar, a que se refere Brochado nas cartas dirigidas para Londres
ao conde de Viana; tinha havido também, em 1745, as partidas de “truque”
em casa do conde dos Arcos, numa das quais diz o n.º 12 do Mercúrio
de Lisboa, o Correio-mor perdeu em duas horas dezoito mil cruzados;
houvera ainda, pelo mesmo tempo, as bancas de faraó que o beneficiado António
Lucas dava em sua casa aos cónegos da Basílica Patriarcal, o que lhe valeu a
perda do benefício e uns meses de Aljube; em nenhuma destas partidas de jogo,
irredutivelmente restritas ao sexo forte, flutuou a asa branca duma pluma,
arfou o sopro de rendas dum leque, fulgiu, mordido do ouro fulvo das luzes, um
olhar ansioso de mulher. Foi na segunda metade do século XVIII, com os faraós
do Paço da Ribeira, que as mulheres portuguesas principiaram a jogar. Desde o
dia em que a primeira mão de anéis tocou o primeiro baralho de cartas, o
jogo, simples vício tenebroso, sem elegância e sem beleza, transfigurou-se.
Um prazer mais nobre surgiu. Conheceram-se todas as loucuras e todos os
desvarios, todas as prodigalidades e todas as ostentações. Em 1771 – dá-o
a entender Goubier – as senhoras da família Pombal jogavam
descabeladamente. Em 1780 – diz um folheto intitulado Cartas
sobre as modas – o maior prazer das sécias fidalgas da Viradeira
era “mostrar no jogo do faraó, do revezino ou do quinze, as bolsas cheias
de peças de oiro”. D. João V, trazendo a mulher para a vida intensa da
corte, libertara-a. D. José, assentando-a pelo seu braço às mesas de jogo,
corrompeu-a. Porque o faraó foi para ela uma escola de dissipação? Não.
Porque o faraó foi para ela, sobretudo, uma escola de voluptuosidade. Mas
o que pode haver de comum no século XVIII – perguntar-se há – entre um
baralho de cartas e um contacto amoroso, entre o Amor e o faraó? Uma mesa.
Uma grande mesa de xarão vermelho, hirsuta de candelabros de prata, colorida
de naipes e de figuras, tilintante de dobras e de peças de ouro, por cima da
qual, em plena luz, sessenta, setenta homens e mulheres jogavam com indiferença,
– e por debaixo da qual, no mistério e na sombra, cento e vinte, cento e
quarenta pés se entrelaçavam, se confundiam, se pisavam quatro a quatro,
mornos, palpitantes, amorosos. O amor às pisadelas, eminentemente nacional,
é, como o Arco da Rua Augusta, uma criação pombalina. Foi debaixo duma mesa
de faraó, gravemente presidida pelo beiço austríaco de el-rei D. José, que
nasceu essa flor, da ternura portuguesa de 1760, prima-coirmã do beliscão
visigótico dos Lausperenes, parenta próxima do “estafermo” e do
“escarninho”, que deu nome, em 1810, ao “pisa-flores” do Passeio Público,
que atravessou, por debaixo das finesas, todo o amor romântico do Vintismo e
dos "casacas-de-briche", e que veio morrer, num frémito de volúpia,
á luz fria de aranhas doiradas, entre escarpins cor-de-rosa e cotpalys
transparentes, nos jantares do Farrobo e nas sauteries
da Regaleira, nos bailes do Ralo e nos serões das Kruses. Brutal? Sem dúvida
o foi. Quantas
vezes esse allegro passionato tocado
a quatro pés por debaixo das bancas de jogo, fazia desmaiar de dor as sécias
nos serões de Queluz e do Alfeite, da Ajuda e do Ramalhão! Quantas vezes os
fivelões enormes de prata, eriçando-se, trasbordando, irrompendo dos sapatos
dos casquilhos, arrepelavam o ponto de seda das meias, feriam até ao sangue a
polpa tépida e rosada das pernas, e um gritinho surdo, um gritinho
escandaloso de sécia emplumada cortava o silêncio solene do faraó. Quem
a tinha pisado? O parceiro da esquerda ou o da direita? Fosse lá adivinhar!
“Era o que corava”, – dizia o espirituoso marquês de Fronteira. “Era
o que tossia”, – descobriu o célebre “Principal Podre", enfiando o
chapéu vermelho na sua cabeça hedionda de Esopo. E o gordo Grilo-mor,
confessor da Rainha, ao perguntar-lhe o abade Antonini, auditor da Nunciatura,
como se jogava o faraó em Portugal, respondeu fungando no seu grande lenço
de Alcobaça:
Júlio Dantas
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© Manuel Amaral 2009-2012