Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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CAPOTES DE SARAGOÇA

Capote de saragoça

Capote de saragoça



Só havia alguma coisa comparável à rigorosa pontualidade com que o rei D. José jogava o faraó todas as noites: era a infalível exactidão com que ele partia para a caça todas as manhãs.

Às vezes, a noite caía tenebrosa; a madrugada apontava, roxa e varejada de chuva; os campos estavam alagados. D. José, que não decidia nada por si, hesitava ainda; via luzir no postigo a claridade da alva; sentia os eguariços no pátio atrelando os urcos ao coche; levantava‑se em camisa; enfiava uns chinelos nos pés; metia à cabeça um barrete de campino, – e, peludo, obeso, indeciso, balofo, lá ia pelos corredores, às apalpadelas, bater com os nós dos dedos à porta do quarto da rainha.

‑ E “você”? – gemia lá de dentro, já levantada, a filha de Filipe v, num tinido de potes de prata.

Uma cabeça encarapuçada de lã verde espreitava arredando o reposteiro de Arrás; um olho papudo luzia; alvejava uma fralda; o rei, na voz fanhosa dos Braganças, arrastando o “você” familiar que era o tratamento da moda entre casados, dizia à mulher que chovia a cântaros  e que estava uma manhã de bruxas; mas a quarentona Mariana Vitória, caçadora como um perdigueiro, matinal como um tentilhão, decidida a marchar com todo o tempo, saracoteando já pelo quarto as “roupinhas à húngara”, respondia invariavelmente, no seu sotaque de espanhola:

­– E se estiar ?

Estiasse ou não, o rei ia porque era vontade da rainha: a corte ia porque era vontade do rei, – e quantas vezes, em manhãs tempestuosas de outono, os pesados coches e as enormes estufas de viagem da Casa Real ficavam a meio do caminho, ao vento e à chuva, pingando lama do tejadilho e encravados até aos tapadouros no leito barrento das estradas! Maria Vitória já tremia febres; o rei andava gosmento, a tossir pelos cantos: a corte, exausta, queixava-se; os médicos não tinham mãos a medir: obrigada a acompanhar a rainha nas jornadas, a condessa de Tarouca caía com acidentes histéricos; o conde de Vale de Reis, mal via mudado o tempo, metia-se na cama e pedia um cirurgião para o sangrar; o embaixador de Espanha, marquês de Almodôvar, a quem as caçadas de Salvaterra perturbavam a sua vida de duquesa italiana, chamava a D. José “Sua Majestade Pleuriz"; o próprio monteiro-mor, cigano, arrepiado e vesgo, teria cumprido a promessa de aferrolhar as pratas na casa do Combro e de sair de Lisboa, – se o ministro Sebastião José de Carvalho, considerando quando era vantajoso para os negócios do Estado que el-rei D. José continuasse a caçar, a desbastar potros e a jogar o faraó, não tivesse encontrado o decisivo elemento de conciliação entre as madrugadas montesinhas do rei e o artritismo friorento da corte: os capotes de saragoça. A corte tinha frio? O remédio era simples: a corte que se agasalhasse. O espírito protecionista de Pombal agarrou pelos cabelos a ocasião. Não havia no reino boas saragoças, quentes como tardes de estio, bons briches de lã da costa da ovelha, bons fardos nacionais, boas estamenhas que por aí acidavam a descorar ao sol em chiotes de frade capucho? Pois bem: os casquilhos e as casquilhas fidalgas do Paço que mandassem cortar neles os seus capotões de outono e de inverno, – e, se queriam dar nobreza à estamenha, que, a forrassem por dentro de seda branca. Daí a dias, o primeiro capote de saragoça apareceu; vestia-o o rei. Era uma espécie de reguingote, enorme como uma capa de asperges, encapelada dum capuz gigantesco que se entestava sobre um chapéu holandês pequeno, cortado em rabo de pega. Logo no outro dia, o segundo: vestia-o a rainha. Daí por diante conta o irmão de Manuel de Figueiredo, "viu-se logo em Lisboa toda a mocidade vestida de saragoça, com os torpes reguingotes, os monstruosos capuzes forrados de baeta cor de flor de alecrim, e os desengraçados chapéus, que mais pareciam almotolias”. A moda estava lançada.

Mas tudo tem os seus inconvenientes, – e, como tudo, os capotes do marquês tiveram-nos também. O primeiro a experimentá-los foi o próprio D. José. Um dia, em Vila Viçosa, junto à Porta dos Nós, um carrejão vê um homem, amantado num capote grosseiro de saragoça, travando portuguesissimamente dos peitos duma rapariga; não reconhece o rei; cresce para ele; com um pau de zambujo ferrado vira-lhe uma cacetada à cabeça; e se o conde do Prado não corre a aparar-lha no braço, tão puxada e tão rija que lhe quebrou um anel de diamantes, o rei tinha ficado ali. Doutra vez – conta Stahremherg para Viena de Áustria – a rainha, andando às perdizes em Salvaterra, distinguiu um vulto encapuzado, na volta dum carrascal; mal afeita ainda á moda dos capotes, também não reconheceu o rei; de encontro ao sol, cuidou-o um espantalho feito de algum balandrau velho da Misericórdia sem saber como, meteu a clavina aos peitos – e despejou uma chumbada na cara do marido. Mas, depois que o marquês de Pombal inventou os capotes de saragoça, houve alguma coisa que saiu das coutadas de Mafra e de Almeirim, de Salvaterra e de Vila Viçosa, em pior estado ainda do que a face austríaca do rei ou do que o anel de diamantes do conde do Prado: foi a honra dos maridos. Desde que o frio e a meda deram às casquilhas da corte o direito de se esconder, como bichos de seda, dentro dum capote de saragoça ou de estamenha, e de atravessar, ocultas num capuz formidável, os barrocais profundos das tapadas e as alamedas de buxo dos jardins, – as caçadas reais de Salvaterra e o jogo da bola de Queluz transformaram-se pouco a pouco, insensivelmente, em elegias amorosas de Tibulo e em festas galantes de Boucher. A certa altura, só dois caçadores espreitavam, com convicção, os coelhos que saltavam das moitas e as perdizes que revoavam no ar: o rei e a rainha. O resto amava, pelas sombras. Era vê-los. Aqui, um par de capuzes em êxtase, assentados num claro de relva viçosa e mordida de sol, as mãos entrelaçadas, fulgindo joias; além, na frescura dum souto de carvalhos, outros dois capuzes de saragoça confundidos num beijo, como um capuz só; mais adiante, os cães de mostra que surpreendem, ganindo, um capuz adormecido sobre outro capuz: – e fosse lá alguém reconhecê-los, adivinhá-los, identificá-los, se na névoa indecisa das tapadas, dentro daqueles sacos de saragoça amantados de murças e forrados de seda branca, todos os homens pareciam o mesmo homem, e todas as mulheres a mesma mulher! Onde se metiam os moços de monte? – perguntar-se-á. Foram eles, precisamente, os mais interessados em não incomodar os pares de capuzes amorosos que noivavam sobre a relva. Porquê? Porque, no dia seguinte, eram certos, luzindo no chão, aqui e além, os brincos e as trémulas de diamantes, e ainda havia de nascer a primeira mulher que fosse capaz de reclamar uma joia perdida nas coutadas de Salvaterra...

 

Júlio Dantas

 


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