CAPOTES DE SARAGOÇA | |||||||||
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havia alguma coisa comparável à rigorosa pontualidade com que o rei D. José
jogava o faraó todas as noites: era a infalível exactidão com que ele
partia para a caça todas as manhãs. Às
vezes, a noite caía tenebrosa; a madrugada apontava, roxa e varejada de
chuva; os campos estavam alagados. D. José, que não decidia nada por si,
hesitava ainda; via luzir no postigo a claridade da alva; sentia os eguariços
no pátio atrelando os urcos ao coche; levantava‑se em camisa; enfiava
uns chinelos nos pés; metia à cabeça um barrete de campino, – e, peludo,
obeso, indeciso, balofo, lá ia pelos corredores, às apalpadelas, bater com
os nós dos dedos à porta do quarto da rainha. ‑
E “você”? – gemia lá de dentro, já levantada, a filha de Filipe v,
num tinido de potes de prata. Uma
cabeça encarapuçada de lã verde espreitava arredando o reposteiro de Arrás;
um olho papudo luzia; alvejava uma fralda; o rei, na voz fanhosa dos Braganças,
arrastando o “você” familiar que era o tratamento da moda entre casados,
dizia à mulher que chovia a cântaros e
que estava uma manhã de bruxas; mas a quarentona Mariana Vitória, caçadora
como um perdigueiro, matinal como um tentilhão, decidida a marchar com todo o
tempo, saracoteando já pelo quarto as “roupinhas à húngara”, respondia
invariavelmente, no seu sotaque de espanhola: –
E se estiar ? Estiasse
ou não, o rei ia porque era vontade da rainha: a corte ia porque era vontade
do rei, – e quantas vezes, em manhãs tempestuosas de outono, os pesados
coches e as enormes estufas de viagem da Casa Real ficavam a meio do caminho,
ao vento e à chuva, pingando lama do tejadilho e encravados até aos
tapadouros no leito barrento das estradas! Maria Vitória já tremia febres; o
rei andava gosmento, a tossir pelos cantos: a corte, exausta, queixava-se; os
médicos não tinham mãos a medir: obrigada a acompanhar a rainha nas
jornadas, a condessa de Tarouca caía com acidentes histéricos; o conde de
Vale de Reis, mal via mudado o tempo, metia-se na cama e pedia um cirurgião
para o sangrar; o embaixador de Espanha, marquês de Almodôvar, a quem as caçadas
de Salvaterra perturbavam a sua vida de duquesa italiana, chamava a D. José
“Sua Majestade Pleuriz"; o próprio monteiro-mor, cigano, arrepiado e
vesgo, teria cumprido a promessa de aferrolhar as pratas na casa do Combro e
de sair de Lisboa, – se o ministro Sebastião José de Carvalho,
considerando quando era vantajoso para os negócios do Estado que el-rei D.
José continuasse a caçar, a desbastar potros e a jogar o faraó, não
tivesse encontrado o decisivo elemento de conciliação entre as madrugadas
montesinhas do rei e o artritismo friorento da corte: os capotes de saragoça.
A corte tinha frio? O remédio era simples: a corte que se agasalhasse. O espírito
protecionista de Pombal agarrou pelos cabelos a ocasião. Não havia no reino
boas saragoças, quentes como tardes de estio, bons briches de lã da costa da
ovelha, bons fardos nacionais, boas estamenhas que por aí acidavam a descorar
ao sol em chiotes de frade capucho? Pois bem: os casquilhos e as casquilhas
fidalgas do Paço que mandassem cortar neles os seus capotões de outono e de
inverno, – e, se queriam dar nobreza à estamenha, que, a forrassem por
dentro de seda branca. Daí a dias, o primeiro capote de saragoça apareceu;
vestia-o o rei. Era uma espécie de reguingote, enorme como uma capa de
asperges, encapelada dum capuz gigantesco que se entestava sobre um chapéu
holandês pequeno, cortado em rabo de pega. Logo no outro dia, o segundo:
vestia-o a rainha. Daí por diante conta o irmão de Manuel de Figueiredo,
"viu-se logo em Lisboa toda a mocidade vestida de saragoça, com os
torpes reguingotes, os monstruosos capuzes forrados de baeta cor de flor de
alecrim, e os desengraçados chapéus, que mais pareciam almotolias”. A moda
estava lançada.
Júlio Dantas
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© Manuel Amaral 2009-2012