FREI MEDRONHO | |||||||||
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Quem
é aquele frade moço, de avarcas de bezerro e chiote remendado, que ali está
em êxtase, encostado de estaca a um cunhal de pedra, a acarneirar os olhos
para o postigo amoroso da rótula fronteira? –
Frei Medronho. E
aquele que ali vem de jornada, ao sol, assentado no albardão mourisco da
cavalgadura, as sandálias às costas, a testeira de estamenha do capuz
derrubada para os olhos, – e uma saloia corada à garupa, abraçada a ele,
de carapuço de riço encarnado, rebolando os peitos ao chouto do macho? –
Frei Medronho. E
estoutro, rotundo, oleoso, risonho, descalço, uma verónica da Senhora do
Pilar ao pescoço, um relicário nas mãos, umas camândulas ramalhudas à
cinta, que anda vagueando pelos arcos do Rossio e pelo cruzeiro de Arroios,
a mordiscar, a beijar, a namorar as raparigas que lhe pedem a absolvição? –
Frei Medronho. E
quem é aqueloutro que lá vai, rua acima, hábito remangado, olhos
coruscantes, pernas eriçadas e cabeludas, vermelho e tosco como um frade de
barro de Estremoz, duas pistolas entaladas no cordão de esparto de S.
Francisco, resfolegando e suando atrás duma moça redonda, fresca, esperta,
que lhe foge, e lhe troca as voltas, e se lhe escapa, de mantão amarelo e
serpões de oiro a reluzir nas orelhas? Quem é ele? –
Frei Medronho. Pelos
quatro cantos de Portugal, por toda a parte onde se cravava entre arvoredos,
como um selo de pedra, o cruzeiro humilde dum convento seráfico; desde a
casa de Santo António de Ponte de Lima, formigueiro alegre de frades
capuchos, até, lá baixo, ao conventinho soalheiro de Estômbar; ou fosse
com os calções de saragoça de donato, ou com a mitra, o gremial e o báculo
de guardião, – Frei Medronho aparecia. Frei Medronho era um frade? Não.
Frei Medronho era uma multidão. Frei Medronho era um símbolo. Frei
Medronho foi, no século XVIII português, a caricatura eterna, o tipo
acabado e risonho do franciscano namorador. Do
franciscano apenas? E os outros? Evidentemente,
nem só os padres de S. Francisco foram volteiros e chegados a mulheres. Em
todas as comunidades monásticas os frades eram homens, – e os homens
pecadores. Desde os graves bernardos, lavradores e eruditos, herdeiros da
fama do calino Frei Pedro de Alencastro, até aos bentos comilões, artríticos,
calvos, gulosos, vestidos de cogulas enormes e encapuzados de ourelos de
baeta negra; desde os capuchos mendicantes, “frei Peregrino dos Esgalhos,
frei Caramujo do Deserto, frei Umbigo das Saudades", capando manjericões,
fazendo colheres de pau, ajardinando a rir a sua cerca de embrechados, até
aos fidalguíssimos cónegos de Santo Agostinho, vestidos como bispos,
cabelos copados e crespos, uma nau e um corvo em campo azul, todos cheios de
nomes em "únio", e em "ínio", Dom Flamínio, Dom Fortúnio;
jerónimos e loios, marianos e baltazares, trinos e carmelitas, dominicanos
e barbadinhos, quem sabe até se os próprios cartuxos suicidas de Scala
Cœli e de Vallis Misericordiæ, – todos eles, desde o leigo grosseiro que
brunia os caldeiros de cobre da cozinha, até aos luminares da eloquência
sagrada do século XVIII, frei Joaquim Forjaz e frei João Jacinto, frei
Joaquim de Santa Clara e frei Luís do Monte Carmelo, todos eles, dizia eu,
assentaram alguma vez nos seus joelhos a carne nua, rósea e forte duma anca
de mulher, ou reviveram, na penumbra doirada dos confessionários de madeira
do Maranhão, toda a imoralidade galante das Chroniques
de l'Oeil de Boeuf.1
Os grilos de Xabregas metiam mulheres no convento, mando-as em cestos pelas
janelas; os bernardos de Alcobaça, segundo as queixas do Abade geral a D.
João V (Mercúrio de Lisboa, de 1
5 de agosto de 1744), recebiam nas celas as mulheres que queriam, sob
pretexto de que eram “as suas lavadeiras particulares”; em 30 de janeiro
de 1707, debaixo dos arcos da Rua Nova dos Ferros, um frade loio e outro jerónimo
despejaram as pistolas por negócios de mulheres; em 26 de novembro de 1731,
um trino, frei André Guilherme, foi surpreendido nos braços da mulher de
Isaac Eliot e morto à facada sobre uma espreguiçadeira de damasco; em
1741, um donato carmelita, frei Manuel de S. José, acusado de estupros de várias
mulheres, condenado a açoites, galés e cárcere a arbítrio, defende-se
alegando “que era só para saber se estavam donzelas ou não”; todos,
indistintamente, loios, grilos, bernardos, jerónimos, carmelitas, trinos
cheios de cruzes, arrábidos descalços, bentos hirsutos na sua cogula,
agostinhos embrulhados no seu birro branco, corruptores de todos os lares, maquereaux
de todas as freiras, “cínicos responsáveis, diz o inglês Costigan em
1778, pela dissolução a que chegou a sociedade portuguesa do século
XVIII", – tudo amou, violentou, brutalizou, possuiu. Homens, –
foram-no todos, na escuridão, no mistério, na sombra. Namoradores, derriçadores,
cortejando às claras, escudeirando, bufarinhando, beliscando,
requebrando-se pelas ruas, pelos adros, pelos terreiros, diante de Deus e de
todo o mundo, – só houve uns: os franciscanos. Todo o êxtase, toda a
contemplação, todo o galanteio de que foi capaz o frade português,
incarnaram em frei Medronho. Os outros amaram, corromperam; o franciscano
namorou. Um manuscrito inédito da [Coleção] Pombalina, intitulado Sonho
que fez dormindo Anostomia religiosa, descreve o padre seráfico de
1712, na rua, armado, namorando de estaca para as reixas verdes da vizinhança:
“Está na janela uma rapariga com uns olhos bonitos, e faz-lhe pé de
esquina um homem amortalhado em um pouco de burel, com umas pistolas
pendentes das ilhargas entre as camândulas, fazendo mil confissões de
rendido. Como a moça é uma flor, diverte-se com ela como amante anacoreta,
que não tem mais sustento que as flores que lhe dá o campo. Chegou-lhe a
ressurreição da carne, sem dia de juízo. Aquilo, ou é frade franciscano,
ou coisa má!” E o egresso, na viela, corado, risonho, de olhos em alvo, o
cercilio luzindo, os pés felpudos nas avarcas largas de couro, contemplava,
namorava derretia-se como a polpa doirada e vermelha dum medronho maduro
pingando ao sol; daí a pouco entrava-lhe em casa, metia-se como piolho por
costura, mendigava para o “Purgatório” e para as “Almas Santas”,
benzia feitiços e lombrigas à menina, ensinava-lhe a cantar por papeis de
solfa, levava-lhe relicários e folhinhas de Lausperenes, acabava por lhe
pedir, como o franciscano frei Alexandre de Múrcia às suas confessadas,
“que lhe desse os peitos para mamar, por que ele era o menino Jesus”,
– e meses andados, era sabido, a moça adoecia, cuspia para o chão,
andava de cadeira, e o pai, o irmão, o noivo, recebiam de mãos ocultas um
bilhetinho mudo dobrado em pastel de três cantos, fechado com três obreias
encarnadas, que lhe trazia a terrível denúncia em quatro versos graciosos: Que
importa ao crédito vosso O
fidalgo aperrava as pistolas; os mochilas afiavam as choupas flamengas.
Entrara em casa frei Medronho.
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© Manuel Amaral 2009-2012