Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

INÍCIO      ARTIGOS

FREI MEDRONHO

Frei Medronho

Frei Medronho



Quem é aquele frade moço, de avarcas de bezerro e chiote remendado, que ali está em êxtase, encostado de estaca a um cunhal de pedra, a acarneirar os olhos para o postigo amoroso da rótula fronteira?

– Frei Medronho.

E aquele que ali vem de jornada, ao sol, assentado no albardão mourisco da cavalgadura, as sandálias às costas, a testeira de estamenha do capuz derrubada para os olhos, – e uma saloia corada à garupa, abraçada a ele, de carapuço de riço encarnado, rebolando os peitos ao chouto do macho?

– Frei Medronho.

E estoutro, rotundo, oleoso, risonho, descalço, uma verónica da Senhora do Pilar ao pescoço, um relicário nas mãos, umas camândulas ramalhudas à cinta, que anda vagueando pelos arcos do Rossio e pelo cruzeiro de Arroios, a mordiscar, a beijar, a namorar as raparigas que lhe pedem a absolvição?

– Frei Medronho.

E quem é aqueloutro que lá vai, rua acima, hábito remangado, olhos coruscantes, pernas eriçadas e cabeludas, vermelho e tosco como um frade de barro de Estremoz, duas pistolas entaladas no cordão de esparto de S. Francisco, resfolegando e suando atrás duma moça redonda, fresca, esperta, que lhe foge, e lhe troca as voltas, e se lhe escapa, de mantão amarelo e serpões de oiro a reluzir nas orelhas? Quem é ele?

– Frei Medronho.

Pelos quatro cantos de Portugal, por toda a parte onde se cravava entre arvoredos, como um selo de pedra, o cruzeiro humilde dum convento seráfico; desde a casa de Santo António de Ponte de Lima, formigueiro alegre de frades capuchos, até, lá baixo, ao conventinho soalheiro de Estômbar; ou fosse com os calções de saragoça de donato, ou com a mitra, o gremial e o báculo de guardião, – Frei Medronho aparecia. Frei Medronho era um frade? Não. Frei Medronho era uma multidão. Frei Medronho era um símbolo. Frei Medronho foi, no século XVIII português, a caricatura eterna, o tipo acabado e risonho do franciscano namorador.

Do franciscano apenas? E os outros?

Evidentemente, nem só os padres de S. Francisco foram volteiros e chegados a mulheres. Em todas as comunidades monásticas os frades eram homens, – e os homens pecadores. Desde os graves bernardos, lavradores e eruditos, herdeiros da fama do calino Frei Pedro de Alencastro, até aos bentos comilões, artríticos, calvos, gulosos, vestidos de cogulas enormes e encapuzados de ourelos de baeta negra; desde os capuchos mendicantes, “frei Peregrino dos Esgalhos, frei Caramujo do Deserto, frei Umbigo das Saudades", capando manjericões, fazendo colheres de pau, ajardinando a rir a sua cerca de embrechados, até aos fidalguíssimos cónegos de Santo Agostinho, vestidos como bispos, cabelos copados e crespos, uma nau e um corvo em campo azul, todos cheios de nomes em "únio", e em "ínio", Dom Flamínio, Dom Fortúnio; jerónimos e loios, marianos e baltazares, trinos e carmelitas, dominicanos e barbadinhos, quem sabe até se os próprios cartuxos suicidas de Scala Cœli e de Vallis Misericordiæ, – todos eles, desde o leigo grosseiro que brunia os caldeiros de cobre da cozinha, até aos luminares da eloquência sagrada do século XVIII, frei Joaquim Forjaz e frei João Jacinto, frei Joaquim de Santa Clara e frei Luís do Monte Carmelo, todos eles, dizia eu, assentaram alguma vez nos seus joelhos a carne nua, rósea e forte duma anca de mulher, ou reviveram, na penumbra doirada dos confessionários de madeira do Maranhão, toda a imoralidade galante das Chroniques de l'Oeil de Boeuf.1 Os grilos de Xabregas metiam mulheres no convento, mando-as em cestos pelas janelas; os bernardos de Alcobaça, segundo as queixas do Abade geral a D. João V (Mercúrio de Lisboa, de 1 5 de agosto de 1744), recebiam nas celas as mulheres que queriam, sob pretexto de que eram “as suas lavadeiras particulares”; em 30 de janeiro de 1707, debaixo dos arcos da Rua Nova dos Ferros, um frade loio e outro jerónimo despejaram as pistolas por negócios de mulheres; em 26 de novembro de 1731, um trino, frei André Guilherme, foi surpreendido nos braços da mulher de Isaac Eliot e morto à facada sobre uma espreguiçadeira de damasco; em 1741, um donato carmelita, frei Manuel de S. José, acusado de estupros de várias mulheres, condenado a açoites, galés e cárcere a arbítrio, defende-se alegando “que era só para saber se estavam donzelas ou não”; todos, indistintamente, loios, grilos, bernardos, jerónimos, carmelitas, trinos cheios de cruzes, arrábidos descalços, bentos hirsutos na sua cogula, agostinhos embrulhados no seu birro branco, corruptores de todos os lares, maquereaux de todas as freiras, “cínicos responsáveis, diz o inglês Costigan em 1778, pela dissolução a que chegou a sociedade portuguesa do século XVIII", – tudo amou, violentou, brutalizou, possuiu. Homens, – foram-no todos, na escuridão, no mistério, na sombra. Namoradores, derriçadores, cortejando às claras, escudeirando, bufarinhando, beliscando, requebrando-se pelas ruas, pelos adros, pelos terreiros, diante de Deus e de todo o mundo, – só houve uns: os franciscanos. Todo o êxtase, toda a contemplação, todo o galanteio de que foi capaz o frade português, incarnaram em frei Medronho. Os outros amaram, corromperam; o franciscano namorou. Um manuscrito inédito da [Coleção] Pombalina, intitulado Sonho que fez dormindo Anostomia religiosa, descreve o padre seráfico de 1712, na rua, armado, namorando de estaca para as reixas verdes da vizinhança: “Está na janela uma rapariga com uns olhos bonitos, e faz-lhe pé de esquina um homem amortalhado em um pouco de burel, com umas pistolas pendentes das ilhargas entre as camândulas, fazendo mil confissões de rendido. Como a moça é uma flor, diverte-se com ela como amante anacoreta, que não tem mais sustento que as flores que lhe dá o campo. Chegou-lhe a ressurreição da carne, sem dia de juízo. Aquilo, ou é frade franciscano, ou coisa má!” E o egresso, na viela, corado, risonho, de olhos em alvo, o cercilio luzindo, os pés felpudos nas avarcas largas de couro, contemplava, namorava derretia-se como a polpa doirada e vermelha dum medronho maduro pingando ao sol; daí a pouco entrava-lhe em casa, metia-se como piolho por costura, mendigava para o “Purgatório” e para as “Almas Santas”, benzia feitiços e lombrigas à menina, ensinava-lhe a cantar por papeis de solfa, levava-lhe relicários e folhinhas de Lausperenes, acabava por lhe pedir, como o franciscano frei Alexandre de Múrcia às suas confessadas, “que lhe desse os peitos para mamar, por que ele era o menino Jesus”, – e meses andados, era sabido, a moça adoecia, cuspia para o chão, andava de cadeira, e o pai, o irmão, o noivo, recebiam de mãos ocultas um bilhetinho mudo dobrado em pastel de três cantos, fechado com três obreias encarnadas, que lhe trazia a terrível denúncia em quatro versos graciosos:

Que importa ao crédito vosso
Que fecheis todos os dias
A porta às Avé-Marias,
Se a abris ao Padre Nosso?

O fidalgo aperrava as pistolas; os mochilas afiavam as choupas flamengas. Entrara em casa frei Medronho.

 

Júlio Dantas 

 



1. Chroniques de l'Oeil-de-Boeuf : des petits appartements de la cour et des salons de Paris sous Louis XIV, la Régence, Louis XV, et Louis XVI de Georges Touchard-Lafosse (1780-1847) publicado em 1800 , ilustrado por Janet-Lange. O livro tinha sido reeditado em 1908 em Paris pela editora dos irmãos Garnier.


Anterior: Minuetes brejeiros Topo da página Seguinte: A freira casquilha

 

 

   
     
 

© Manuel Amaral 2009-2012