MINUETES BREJEIROS | |||||||||
|
É
pena que a mulher portuguesa do período pombalino não tivesse, como a zentildona veneziana do século XVIII, um Pietro Longhi capaz de
fixar em pequeninos quadros as suas atitudes, as suas intimidades, as suas
preferências. O bispo do Grão‑Pará falou dela para lhe chamar “bêbeda”:
Twiss, para a considerar “uma mulata com olhos bonitos e muitos topázios”,
– Manuel de Figueiredo, nos Pais de
Famílias, acusa-a de “vestir à mangalaça como os homens”;
Dalrymple atribui-lhe predileções escandalosas “pour les amours du genre
de Sapho"; o autor dum folheto de cordel, a Mulher
da Moda, entretém-se a descrever o rapé, mais ou menos fulvo, que
fungavam na sua caixa de oiro as elegantes pombalinas: – nenhum destes
inimigos da mulher portuguesa nos deixou sequer um traço vivo e flagrante
do seu carácter, da sua sensibilidade, da sua fundamental ternura, da sua
graça de amorosa, das suas intimidades galantes, que o ci‑devant
duque de Châtelet, em 1777, reputava, ao mesmo tempo, “tão perigosas e tão
fáceis”. Para conhecer, para suspeitar ao menos a sensualidade ingénua e
grosseira do nosso século XVIII – tão diferente da volúpia
eminentemente intelectual do século XVIII francês, que fez dizer a Galiani:
"les
femmes de ce temps n'aiment pas avec le coeur. elles aiment avec ta tête"1
– é preciso descer a um género fugaz de baixa literatura que entrou em
todas as casas de Lisboa, que nem por isso viveu mais do que o tempo que vivem
as rosas, e que a fácil moral pombalina designou pelo nome pitoresco de
“minuetes brejeiros". O
que foi, na Lisboa de 1750, o “minuete brejeiro"? A
frança e a freira tinham-se deliciado, no princípio do século XVIII, com os
tonos à viola do Marques e do Castela, do Filigrana e do Borrinha. Em 1730,
as óperas de bonecos e as cómicas italianas encarregaram-se de trazer ao
sentimento amoroso da casquilha lisboeta uma nova expressão melódica: o
minuete. Daí por diante, o minuete, como, mais tarde, os lunduns chorados e
as modinhas brasileiras, invade tudo, – corros de comédias e recâmaras do
Paço, merendas do Alfeite e carrilhões da Capela Real. Canta, dança,
tilinta, gorjeia, palpita por toda a parte, nas cordagens de cobre dos cravos
e das virginais, nas caixas axaroadas de ouro dos relógios de Londres, nos
sinos de todas as igrejas e de lodos os mosteiros, nas flautas de marfim com
que os mestres de solfa, pintados de carmim e pingados de minas, batem o
compasso da "mirontela" sobre o tampo de harmonia das espinetas. D.
João V, depois de ensinar o canto gregoriano aos arrábidos de Mafra, criados
ainda no ritual capucho, passa horas esquecidas a ouvir tocar minuetes nos
carrilhões do convento. “Já se puseram os sinos no carrilhão de N. Sr.ª
do Loreto – diz o Folheto de Lisboa
de 14 de setembro de 1743 – e tocaram-se com grande harmonia minuetes e
contradanças”. O minuete conquista a liturgia, penetra nas próprias
comunidades monásticas. Frei José do Espírito Santo, organista e mestre de
cravo, vai tocar minuetes a Sant'Ana, para as freiras dançarem. Monsieur Le Beau, Monsieur
Louis, mestres de dança franceses, estabelecem-se na corte e enriquecem
ensinando aos casquilhos de Lisboa, por duas peças cada dúzia de lições, o
"minuete liso”, o “minuete afandangado” e o “minuete da
cidade”. Cantado, dançado, tilintado em sinos, gemido em clavicórdios,
zangarreado em violas, o minuete, inseparável dos outeiros de abadessado e
dos serenins de Queluz, das óperas das Paghetti e das missas de pontifical,
tornou-se a expressão de toda a vida portuguesa do século XVIII. Quis o
acaso que ele se tornasse também, nas bocas das casquilhas do Mocambo e do
Rossio, pequeninas como vinténs navarros, a expressão da sua forte e ingénua
sensualidade. Como? Pelos “minuetes brejeiros". Com o tiple Leonardi,
com o alemão Goenmann, com o flautista Rodilo, que a rainha Mariana Vitória
trouxera a peso de ouro para Portugal, tinha vindo um moço maestro, Pedro
Avendaño, a quem Twiss se refere no seu livro de viagens: “On
fait ici, à Lisbonne, grand cas des menuets composés par le nommé D. Pedro
Antonio Avendaño"2.
Tanto a morna voluptuosidade desses minuetes se infiltrou na alma amorosa da
casquilha pombalina, que os papéis de solfa de Avendaño voavam de mão em mão,
corriam todos os cravos fidalgos da cidade, passavam à viola marchetada das sécias-damas
do Rossio e acabavam assobiados pelos alfamistas de capote na sombra sangrenta
das ruas-sujas. Todos os minuetes de Pedro António foram estimados; mas houve
um que ficou célebre: o “minuete do maroto”. Apenas por que a música era
bela? Não. Principalmente porque a letra, escrita por um poeta ignorado, o
Dr. Jerónimo Tavares de Mascarenhas, soube traduzir naquele momento, com
flagrante exatidão, a linguagem e, um pouco, a psicologia amorosa da mulher
portuguesa do século XVIII. Está inédito ainda. Transcrevo-o, com as alterações
indispensáveis, da menos mutilada das cópias subsistentes: a dum códice da
Coleção Pombalina. Um “casquilho maroto”, de óculo de prata e
cabeleira, persegue, escudeirando-a pelas alamedas de buxo de Queluz. como
numa pintura de azulejos, certa açafata borrifada de diamantes, que ao mesmo
tempo lhe sorri e lhe foge; atinge-a, perto do Jogo da Bola, sob as árvores
copadas que traçara João Baptista Robilon; quer deitá-la num banco de
tijolo; ela, simultaneamente, repele-o e beija-o, entrega-se e recusa-se,
nega-se e dá-se:
Senhor
maroto, Tome
uma figa! Não
me persiga... Mas
venha cá. Quer
um beijinho? Sabe
onde eu vou? Pois
não lh'o dou... Mas
tome-o lá. Deixe-me,
amores. Não
me persiga... Caiu-me
a liga, Falta-me
o ar. Ai,
minha vida, Não
faça isso, Ai,
meu feitiço, Que
eu vou gritar Ai,
não me bula, Meu
amorzinho... Devagarinho,
– Chegue-se
mais. Não
me carregue. Que
me amofina: Eu
sou menina, Posso
quebrar... Você
queria –
Cuida que escapa? Comer
a papa, Depois
safar? Meu
lindo mano, Não
me persiga... Foge-me
a liga, Falta-me
o ar... Ao
“minuete do maroto”, por onde passa, numa revoada de Amores, a alma
galante de La Fontaine, – outros se seguiram, pinturas fugitivas da mulher
portuguesa do período pombalino, ao mesmo tempo graciosa e humilde,
voluptuosa e casta, risonha e triste. A série dos “minuetes brejeiros"
continuou. Vieram outros músicos: nenhum como Avendaño. Vieram outros
poetas: nenhum como Jerónimo Tavares. Em casa do conde de Pombeiro, entre os
lírios de prata da sua assentada de Ménalo, já a viola do mulato Caldas
gemia os primeiros lunduns. O “minuete maroto” agonizava. Ia começar o reinado da modinha brasileira.
Júlio Dantas
1. As mulheres deste tempo não amam com o coração, mas com a cabeça. 2. Fala-se muito, aqui em Lisboa, dos minuetes compostos por um D. Pedro António Avendano. |
| |||||||
| |||||||||
© Manuel Amaral 2009-2012