Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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MINUETES BREJEIROS

Tocando o minuete

Tocando o minuete



É pena que a mulher portuguesa do período pombalino não tivesse, como a zentildona veneziana do século XVIII, um Pietro Longhi capaz de fixar em pequeninos quadros as suas atitudes, as suas intimidades, as suas preferências. O bispo do Grão‑Pará falou dela para lhe chamar “bêbeda”: Twiss, para a considerar “uma mulata com olhos bonitos e muitos topázios”, – Manuel de Figueiredo, nos Pais de Famílias, acusa-a de “vestir à mangalaça como os homens”; Dalrymple atribui-lhe predileções escandalosas “pour les amours du genre de Sapho"; o autor dum folheto de cordel, a Mulher da Moda, entretém-se a descrever o rapé, mais ou menos fulvo, que fungavam na sua caixa de oiro as elegantes pombalinas: – nenhum destes inimigos da mulher portuguesa nos deixou sequer um traço vivo e flagrante do seu carácter, da sua sensibilidade, da sua fundamental ternura, da sua graça de amorosa, das suas intimidades galantes, que o ci‑devant duque de Châtelet, em 1777, reputava, ao mesmo tempo, “tão perigosas e tão fáceis”. Para conhecer, para suspeitar ao menos a sensualidade ingénua e grosseira do nosso século XVIII – tão diferente da volúpia eminentemente intelectual do século XVIII francês, que fez dizer a Galiani: "les femmes de ce temps n'aiment pas avec le coeur. elles aiment avec ta tête"1 – é preciso descer a um género fugaz de baixa literatura que entrou em todas as casas de Lisboa, que nem por isso viveu mais do que o tempo que vivem as rosas, e que a fácil moral pombalina designou pelo nome pitoresco de “minuetes brejeiros".

O que foi, na Lisboa de 1750, o “minuete brejeiro"?

A frança e a freira tinham-se deliciado, no princípio do século XVIII, com os tonos à viola do Marques e do Castela, do Filigrana e do Borrinha. Em 1730, as óperas de bonecos e as cómicas italianas encarregaram-se de trazer ao sentimento amoroso da casquilha lisboeta uma nova expressão melódica: o minuete. Daí por diante, o minuete, como, mais tarde, os lunduns chorados e as modinhas brasileiras, invade tudo, – corros de comédias e recâmaras do Paço, merendas do Alfeite e carrilhões da Capela Real. Canta, dança, tilinta, gorjeia, palpita por toda a parte, nas cordagens de cobre dos cravos e das virginais, nas caixas axaroadas de ouro dos relógios de Londres, nos sinos de todas as igrejas e de lodos os mosteiros, nas flautas de marfim com que os mestres de solfa, pintados de carmim e pingados de minas, batem o compasso da "mirontela" sobre o tampo de harmonia das espinetas. D. João V, depois de ensinar o canto gregoriano aos arrábidos de Mafra, criados ainda no ritual capucho, passa horas esquecidas a ouvir tocar minuetes nos carrilhões do convento. “Já se puseram os sinos no carrilhão de N. Sr.ª do Loreto – diz o Folheto de Lisboa de 14 de setembro de 1743 – e tocaram-se com grande harmonia minuetes e contradanças”. O minuete conquista a liturgia, penetra nas próprias comunidades monásticas. Frei José do Espírito Santo, organista e mestre de cravo, vai tocar minuetes a Sant'Ana, para as freiras dançarem. Monsieur Le Beau, Monsieur Louis, mestres de dança franceses, estabelecem-se na corte e enriquecem ensinando aos casquilhos de Lisboa, por duas peças cada dúzia de lições, o "minuete liso”, o “minuete afandangado” e o “minuete da cidade”. Cantado, dançado, tilintado em sinos, gemido em clavicórdios, zangarreado em violas, o minuete, inseparável dos outeiros de abadessado e dos serenins de Queluz, das óperas das Paghetti e das missas de pontifical, tornou-se a expressão de toda a vida portuguesa do século XVIII. Quis o acaso que ele se tornasse também, nas bocas das casquilhas do Mocambo e do Rossio, pequeninas como vinténs navarros, a expressão da sua forte e ingénua sensualidade. Como? Pelos “minuetes brejeiros". Com o tiple Leonardi, com o alemão Goenmann, com o flautista Rodilo, que a rainha Mariana Vitória trouxera a peso de ouro para Portugal, tinha vindo um moço maestro, Pedro Avendaño, a quem Twiss se refere no seu livro de viagens: “On fait ici, à Lisbonne, grand cas des menuets composés par le nommé D. Pedro Antonio Avendaño"2. Tanto a morna voluptuosidade desses minuetes se infiltrou na alma amorosa da casquilha pombalina, que os papéis de solfa de Avendaño voavam de mão em mão, corriam todos os cravos fidalgos da cidade, passavam à viola marchetada das sécias-damas do Rossio e acabavam assobiados pelos alfamistas de capote na sombra sangrenta das ruas-sujas. Todos os minuetes de Pedro António foram estimados; mas houve um que ficou célebre: o “minuete do maroto”. Apenas por que a música era bela? Não. Principalmente porque a letra, escrita por um poeta ignorado, o Dr. Jerónimo Tavares de Mascarenhas, soube traduzir naquele momento, com flagrante exatidão, a linguagem e, um pouco, a psicologia amorosa da mulher portuguesa do século XVIII. Está inédito ainda. Transcrevo-o, com as alterações indispensáveis, da menos mutilada das cópias subsistentes: a dum códice da Coleção Pombalina. Um “casquilho maroto”, de óculo de prata e cabeleira, persegue, escudeirando-a pelas alamedas de buxo de Queluz. como numa pintura de azulejos, certa açafata borrifada de diamantes, que ao mesmo tempo lhe sorri e lhe foge; atinge-a, perto do Jogo da Bola, sob as árvores copadas que traçara João Baptista Robilon; quer deitá-la num banco de tijolo; ela, simultaneamente, repele-o e beija-o, entrega-se e recusa-se, nega-se e dá-se:  

Senhor maroto,

Tome uma figa!

Não me persiga...

Mas venha cá.

 

Quer um beijinho?

Sabe onde eu vou?

Pois não lh'o dou...

Mas tome-o lá.

 

Deixe-me, amores.

Não me persiga...

Caiu-me a liga,

Falta-me o ar.

 

Ai, minha vida,

Não faça isso,

Ai, meu feitiço,

Que eu vou gritar

 

Ai, não me bula,

Meu amorzinho...

Devagarinho, –

Chegue-se mais.

 

Não me carregue.

Que me amofina:

Eu sou menina,

Posso quebrar...

 

Você queria

– Cuida que escapa?

Comer a papa,

Depois safar?

 

Meu lindo mano,

Não me persiga...

Foge-me a liga,

Falta-me o ar...

Ao “minuete do maroto”, por onde passa, numa revoada de Amores, a alma galante de La Fontaine, – outros se seguiram, pinturas fugitivas da mulher portuguesa do período pombalino, ao mesmo tempo graciosa e humilde, voluptuosa e casta, risonha e triste. A série dos “minuetes brejeiros" continuou. Vieram outros músicos: nenhum como Avendaño. Vieram outros poetas: nenhum como Jerónimo Tavares. Em casa do conde de Pombeiro, entre os lírios de prata da sua assentada de Ménalo, já a viola do mulato Caldas gemia os primeiros lunduns.  

O “minuete maroto” agonizava. Ia começar o reinado da modinha brasileira.


 

Júlio Dantas

 


1. As mulheres deste tempo não amam com o coração, mas com a cabeça.

2. Fala-se muito, aqui em Lisboa, dos minuetes compostos por um D. Pedro António Avendano.


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