Alegoria ao Amor de Francesco Bartolozzi

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OS SERENINS DE QUELUZ

Serenins de Queluz

Serenins de Queluz



A rainha enlouquecera.

Na noite de 10 de fevereiro de 1892, em Queluz, na sala D. Quixote, os dezassete médicos do Paço, à frente dos quais se encontrava o magríssimo Dr. António José Pereira, cirurgião‑mor do Reino, assinavam, espiados pelos óculos verdes do Bispo confessor, os quatro quesitos acerca da incapacidade de D. Maria i para o exercício do poder real. O médico inglês Willis voltara para Londres, desiludido. Inácio Tamagnini falava ainda vagamente em trepanação, sem se saber bem porquê nem para quê. Todas as esperanças estavam perdidas. Um ministério de bonzos, reunido na Sala do Conselho de Estado, discutia gravemente, pesado de cabeleiras e de Grã‑Cruzes. Perto, vindos do oratório, os gritos da Rainha doida atroavam o Paço, lamentosos, lancinantes, misturados com as malagueñas das açafatas espanholas da Princesa

- Ai Jesus! Ai Jesus!

Só os ministros e os médicos teriam, naquele momento, uma vaga consciência do drama que se estava passando. O resto da corte, despreocupada, ria, conversava, danava, ouvia o cravista Policarpo e o tiple Cafarelli, o tenor Raff e o baixo Pucci, à luz de trezentas velas de cera, debaixo do teto de ouro onde, num painel imortal, David Perez e Lucas Jovini davam lição de música às Senhoras Infantas. Enquanto na Sala D. Quixote se depunha uma Rainha louca, - na Sala das Talhas havia serenim. Não eram já os serenins doutro tempo, os serenins célebres da Rainha Mariana Vitória, com a rabeca do alemão Goenmann e a flauta do espanhol Rodilo, a voz do italiano Caporalini e a batuta admirável de David Perez, - onde o próprio Núncio cardeal Conti e o cónego Gonsalvini tocavam trios de Bach com a condessa de Pombeiro, e se desenterrava das arcas a baixela Germain para servir caldo de galinha fumegante em tijelas de Índia velha; mas um serenim da decadência, sonolento, arrastado, sorna, com os castrati a rebolarem-se, o velho duque de Lafões a um canto, cheio de carmim e de sinais, a falar de Gluck, de Metastásio e de Viena de Áustria, o conde da Ponte a abrir a boca, e o mestre da capela real João Cordeiro da Silva, saltitante, nervoso, roendo as unhas, fugindo das correntes de ar e espirrando como um bode quando a Condessa da Ribeira lhe voltava as folhas dos papeis de solfa. Para todos eles, D. Maria I morrera havia muito tempo, - na noite trágica de Salvaterra. Era uma sombra aos uivos no Paço, um fantasma de realeza que já não acordava a piedade de ninguém. Que importava que a depusessem? Que poderia interessar à corte a deposição dum espectro? Enquanto o cravo de oitava larga chocalhava sob os dedos do Policarpo, e o tiple Ferracuti cantava com a condessa de Vila Flor ou com a linda condessa de Soure, penteada à crioula à moda do cabeleireiro francês Leoriard, o dueto de Cimarosa “Ah, cari palpiti”, - os papagaios do Paço, arremedando os gritos da Rainha doida, berravam dilacerantemente pelos corredores:

- Ai Jesus! Ai Jesus!

A sala da Tocha e a sala dos Archeiros, a sala do Lanternim e a sala das Serenatas enchiam-se duma multidão de frades e de sécias, de poetas e de fidalgos, de peraltas e de músicos, de oficiais alemães e de cónegos vermelhos da Patriarcal, furando, acotovelando-se, intrigando, namorando com os chapéus e com os leques, rindo com os castrados italianos, correndo atrás do bobo do paço D. João da Falperra, de bastão e Grã-Cruz, ou da mulata Rosa, anã e boba, que grunhia e pinchava sobre os tapetes, vestida de encarnado; como uma bola. Enquanto o serenim principiava, e se servia o caldo, e chegava o príncipe regente D. João, entre o cardeal da Cunha e o marquês de Marialva, de olhos esbugalhados e de beiço caído, com rapé e frangos assados metidos nas algibeiras da casaca, ninguém se arredava das salas; todos, inclusivamente o malcriadíssimo Kantzow, encarregado de negócios da Suécia, sorriam, abriam roda para o beija-mão, ajoelhavam diante da Princesa que assomava de turbante e úberes de vaca espanhola, e quando, na Sala das Talhas, o contralto Geziello rompia a primeira arieta, fazia-se em todo o auditório um silêncio da Cartuxa. Mas em breve, pouco a pouco, as salas iam-se despovoando. Os peraltas fugiam. Os próprios ministros estrangeiros, o lindo e apaixonado Barão Schladen, ministro da Prússia, o embaixador de França conde de Châlons, o núncio Bellisomi, eram os primeiros a sair à formiga. Esperava-os nos jardins do palácio, pelos bancos de pedra do Jogo da Bola; debaixo das abóbadas de arvoredo de João Baptista Robilon, uma música- mais sugestiva do que a de Paesiello e de Zingarelli, e um espetáculo mais atraente que o dos barbados tiples italianos: As açafatas da Rainha doida, agarradas a bandolins marchetados, em trilos sensuais, cantavam entre as murteiras verdes, ao luar, o lundum chorado e as modinhas brasileiras. Era uma perdição, era um delírio. Em volta delas, em êxtase, assentados no chão, todos os peraltas, todos os frades, todo o corpo diplomático escutava em silêncio os requebros de voz das manas Lacerdas, os lunduns voluptuosos que o mulato José Manuel ensinara à «Augustinha», as denguices soluçadas com que o mulato Caldas, da «assentada de Ménalo» do Conde de Pombeiro, se fizera querido de Miss Welding. Eram as açafatas que o moço Beckford descrevera nas suas cartas para Londres, a revoar vestidas de branco pelos jardins da Ajuda, olhos ardentes, cabelos negros, beiços grossos de mulatas, cheias de piolhos e de joias, de sensualidade e de perversidade, mais corruptas ainda desde que a princesa Carlota chegara a Lisboa, gritando, com as suas melagueñas, os seus xailes «à turca» e as suas viciosas criadas espanholas. Diante delas, diante desse encanto, supremo das açafatas portuguesas, o hipócrita Frei Luís do Monte Carmelo, de alcunha frei «Tris-Tris», já rebolava insensivelmente as ancas; o cavalheiro Saurin, ministro da Holanda, tão avarento que sangrava todos os quinze dias um porco vivo para fazer chouriços, acenava com peças de oiro por debaixo das abas da casaca; os narizes enormes do Príncipe Reuss e do major alemão Bermann, arfavam voluptuosamente; o melómano príncipe Rufio, ministro de Nápoles, tomava notas num papel de solfa; esquecido da gota, o gracioso marquês da Fronteira saracoteava-se, de cabeça perdida; Kanzow, apoplético, rugia; o próprio Patriarca escutava por detrás duma alameda de buxo; chilreavam beijos; riam os sátiros de pedra debruados sabre os grandes bancos dos jardins; - e enquanto o soluço diabólico das modinhas brasileiras acordava as sombras palpitantes de Queluz, a Rainha doida gritava, berrava fechada no oratório, cheia de visões e de pavores do inferno:

- Ai Jesus! Ai Jesus!

  

Júlio Dantas 

 


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