A Guerra de 1801 - 2.º parte

 

 

A França e a defesa do Egipto 

O esforço diplomático e militar francês em Portugal centrou-se na tentativa de separar o país da Aliança Britânica, política que se mantinha desde o princípio do século XVIII, primeiro por razões militares, e depois por motivos económicos. A França procurava beneficiar do rentável comércio português com o Brasil, considerado como uma das principais fontes do desenvolvimento económico inglês. 

 

Napoleão no Egipto

Napoleão no Egipto


A verdade é que, numa época em que a principal indústria britânica era o fabrico de tecidos de algodão, o velho tratado de Methuen já só tinha interesse prático para Portugal; é que o acordo de 1703 permitia a entrada de tecidos de lã ingleses, com grandes vantagens comerciais em relação à concorrência estrangeira, em troca da importação em condições recíprocas do vinho português, e sobretudo, do Vinho do Porto. A França queria vender lanifícios nas mesmas condições que os ingleses o tinham feito; mas enquanto país produtor e exportador de vinho, não podia permitir a entrada do vinho português, e não podia dar grandes contrapartidas ao comércio de frutas, e às manufacturas de algodão e de linho, os outros produtos de exportação portugueses. Eram muitas as dificuldades para um acordo comercial entre os dois países, tentado sem êxito entre 1786 e 1788 durante a embaixada do marquês de Bombelles.

Acima de tudo, a França considerava os portos portugueses como essenciais à guerra marítima britânica. É relativamente consensual na historiografia portuguesa, francesa e espanhola, que o apoio dado às forças navais britânicas pelo porto de Lisboa era muito importante. Ao contrário, a historiografia britânica tem sempre afirmado que Portugal não era parte importante da estratégia inglesa na guerra contra a França revolucionária e republicana. Mas a recusa inglesa em dar o seu acordo ao tratado de Paris de 1797, parece confirmar a opinião que os nossos portos eram de facto importantes não só do ponto de vista táctico, como sobretudo estratégico. 

É preciso analisar bem este caso. Para a Grã-Bretanha o que estava em causa no tratado de Paris era a paridade entre a frota britânica e as outras frotas concorrentes, sobretudo a Francesa, Holandesa e Espanhola. Para o gabinete de Londres, a paridade entre forças navais devia ser feita com base no conjunto dos países continentais, sendo inaceitável, por princípio, a paridade país a país; a frota britânica era a maior e queria continuar a ser a maior de todas as frotas europeias reunidas. Era uma opção estratégica de fundo a aplicar aos portos de Lisboa, de Copenhaga, ou a quaisquer outros mais pequenos. 

A estratégia naval da Grã-Bretanha, desde inícios do século XVIII, era manter no mar um número, no mínimo, igual ao conjunto das frotas dos seus concorrentes, a França e a Espanha. Por isso, nunca aceitara a criação de Ligas de Neutrais, que tendiam a tornar-se-lhe hostis, devido às posições sobre o direito de vistoria das mercadorias transportadas por navios com pavilhões neutrais, e que colocavam a frota britânica numa posição de inferioridade. Em 1801, a Grã-Bretanha destruirá a frota dinamarquesa, e quase destruirá as frotas russa e sueca no Báltico, para obstar à criação de uma nova Liga de Neutrais, sob os auspícios do czar Paulo I. 

Ao reprovar o Tratado de 1796 entre Portugal e o Directório da República Francesa, a Grã-Bretanha não estava a defender apenas um benefício táctico, que alcançara com o Tratado de Aliança com Portugal de 1703, de ter 10 navios no porto de Lisboa contra os 5 navios das outras nações; estava a aplicar a sua estratégia global de defesa perante qualquer tipo de ameaça naval. A paridade entre a frota britânica e as da Holanda, Dinamarca ou Suécia combinadas, e mesmo com a francesa e a espanhola nos portos portugueses não podia ser aceite pelo governo britânico, e muito menos por meio de um tratado assinado por uma potência menor, ainda por cima o seu mais fiel aliado. O ministério britânico não podia aceitar decisões como as do "art. 5.ª do tratado que punha a marinha de guerra inglesa em inferioridade perante as três potências marítimas (Espanha, França e Holanda) na frequência dos Portos portugueses". Para o gabinete britânico o "assentimento àquele artigo 5.ª não podia deixar de ser considerado senão como um acto de hostilidade da parte" de Portugal. 

Portugal aceitou que o artigo punha em causa a aliança, e não ratificou o tratado. E assim, não se tendo feito a paz com a França, a situação diplomática entre Portugal e a República não se modificou consideravelmente até 1801. Este status quo estava longe de ser desfavorável ao país. Pagava-se o preço de enfrentar a guerra de corso francesa, e manter as forças armadas em estado de defesa, o que criava alguma dificuldade nas finanças. Mas como mostrou claramente Jacques Godechot, com o distanciamento típico dos historiadores estrangeiros, o total de apresamentos de navios mercantes portugueses pelos corsários franceses era uma insignificante gota de água no imenso comércio oceânico de Portugal com o Brasil e a Grã-Bretanha, assim como com a Itália, Marrocos, os países nórdicos e a Rússia. 

Para além dos objectivos estruturantes das relações entre os dois países, que mais queria a França? Tendo feita a paz com as potências continentais, a Áustria, o Império Alemão e Nápoles queria terminar a guerra marítima - isto é, com a Grã-Bretanha. Como o Reino Unido tinha uma vantagem substancial em territórios conquistados à França, à Espanha e à Holanda, a França precisava conseguir um benefício territorial para obrigar o gabinete de Londres a negociar em situação menos favorável. E em 1801, como sempre sucedera desde Luís XIV, o pensamento estratégico dos dirigentes franceses virava-se para Portugal. 

A solução oficial francesa para recuperar a ilha de Malta e a ilha de Minorca no Mediterrâneo, assim como a Ilha da Trindade nas Caraíbas, foi a sugestão de ocupação de três províncias portuguesas - Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes, e Beira - e a ocupação da cidade do Porto, o centro fulcral do comércio luso-britânico segundo a distorcida visão das relações entre os dois países por parte do governo das Tulherias. 

Contudo, tais objectivos não interessavam directamente à França. Para Bonaparte, o mais importante era defender Malta e o Egipto, este território uma extraordinária conquista para a França, caso fosse possível manter a sua posse até à paz geral; apenas enviaria tropas à Península para pressionar o aliado espanhol a atacar Portugal, e a entregar à França o maior número possível de barcos de guerra. De facto, a defesa do Egipto era o centro de toda a estratégia francesa na guerra marítima. Portugal, na componente militar, seria apenas mais uma tentativa, aliás não conseguida, de abrir uma nova frente que obrigasse o Reino Unido a desviar recursos de outras regiões estratégicas, sobretudo do Mediterrâneo e a fazer com que a Espanha com a promessa que era a entrega de um território para o sobrinho da rainha Maria Luísa de Parma pusesse a sua frota de guerra ao serviço da França. Como Napoleão Bonaparte dizia a Talleyrand em 30 de Setembro de 1800, enganando-se redondamente sobre as intenções britânicas: "os perigos portugueses serão sensíveis à Inglaterra e apreçarão as suas disposições pacíficas". 

Desde o envio de Berthier a Madrid, em Setembro de 1800, que as vistas de Napoleão Bonaparte se concentravam no Egipto, base essencial para o ataque ao domínio britânico na Índia. O ministro da guerra francês viajou com ordens para pressionar a Espanha a atacar Portugal, mas sobretudo para solicitar uma maior ajuda da marinha de guerra espanhola no esforço de guerra francês e para se informar como é que os Portos espanhóis do Mediterrâneo podiam contribuir para a defesa de Malta, e indirectamente do Egipto. O tratado preliminar e secreto de Santo Ildefonso de 1 de Outubro de 1800, não mencionava Portugal, mas prometia à França 6 naus de 74 peças e o imenso território da Luisiana, na América do Norte, a troco da promessa de um engrandecimento territorial do duque de Parma. 

Mais tarde, em Novembro de 1800, Luciano Bonaparte foi enviado a Madrid, com ordens específica de conseguir a declaração de guerra da Espanha a Portugal, com a promessa, agora específica, da entrega da Toscânia para o duque de Parma, já que com a dádiva de um mero aumento territorial o exército espanhol nem mobilizado tinha sido, ao contrário do que Napoleão Bonaparte tinha esperado, quando em 30 de Setembro tinha escrito: "é preciso que as tropas espanholas tomem conta de Portugal antes de 15 de Outubro".

 Mas para o primeiro cônsul o objectivo principal continuava a ser claro, como o escrevia a Luciano em 15 de Janeiro de 1801: "O mais importante é apoiar o Egipto." E por isso, um pouco mais tarde, em 4 de Fevereiro, informava-o da saída de Brest da frota do almirante Ganteaume com sete naus e duas fragatas, e uma força militar de 4.000 homens, tendo como destino o Egipto. 

Com a convenção de Madrid de 29 de Janeiro de 1801 o novo embaixador francês em Madrid conseguiu que a Espanha se obrigasse a declarar guerra a Portugal, mas só em 13 de Fevereiro seguinte, por meio do Tratado de Aranjuez, a França conseguiu de facto uma tomada de posição definitiva da Espanha em relação à guerra. Com a promessa de uma coroa real para o duque de Parma, Carlos IV decidiu-se declarar guerra ao príncipe regente de Portugal, marido da sua filha primogénita, sendo que ao mesmo tempo colocava à disposição da França a totalidade da sua frota de guerra, com a intenção específica de defender Malta e o Egipto. 

A declaração de guerra dos aliados continentais a Portugal deu-se em 28 de Fevereiro, mas nem assim o exército borbónico começou a mover-se em direcção às fronteiras. Nem tão-pouco o Corpo de Observação da Gironda, o exército francês que tinha sido criado em 16 de Janeiro de 1801 para intervir na Península, se assim fosse solicitado, tinha começado sequer a ser organizado. 

Foi só em 21 de Março de 1801 que a Espanha se decidiu a preparar para a guerra, ao assinar um segundo Tratado de Aranjuez, que convertia o duque de Parma Fernando em rei da Etrúria, com o compromisso de que o território passaria ao herdeiro do ducado, D. Luís, casado com a filha de Carlos IV, Maria Luísa; em contrapartida, e de acordo com os tratados de Santo Ildefonso e o primeiro de Aranjuez, a França obtinha o território da Luisiana, e a colaboração total da frota espanhola, nas suas campanhas navais. Desta vez o primeiro cônsul da república francesa acreditou que tinha conseguido levar a Espanha a pôr todas as suas forças militares ao serviço dos objectivos franceses e por volta de 18 de Março tinha nomeado o seu cunhado, o general Leclerc, para comandante-em-chefe do Corpo de Observação da Gironda, dando-lhe como quartel-general a cidade de Bordéus, a capital daquela região francesa. 

Mas, para a França, as negociações com a Espanha tinham sido um completo fracasso, já que os britânicos, após terem conquistado Malta, tinham desembarcado no Egipto, antes mesmo da assinatura do Tratado de Aranjuez. 

É que, percebendo a estratégia francesa, o gabinete de Londres tinha decidido atacar o Egipto, concentrando na Ilha de Malta todas as tropas disponíveis no Mediterrâneo em finais de Novembro de 1800. As forças britânicas, algumas das quais tinham sido enviadas para Lisboa, comandadas pelo general Abercrombie, tendo como adjunto o general John Moore, oficial escocês que morrerá na Batalha da Corunha, na Galiza, 8 anos mais tarde, deslocaram-se de Gibraltar para a Baía de Marmorice, perto da Ilha de Rodes, na costa da Anatólia, em Dezembro, desembarcando no Egipto, na Baía de Abouquir em 8 de Março de 1801. A campanha contra o exército francês do Egipto foi bastante difícil, tendo o exército francês, sob o comando do general Menou, deposto as armas somente no dia 30 de Agosto, 6 longos e tórridos meses depois do começo da campanha. 

A França acabou por não conseguir nenhum dos seus intentos na chamada "guerra marítima". Não conseguiu a ocupação de Portugal, e perdeu Malta e o Egipto. Muito menos conseguiu qualquer mudança essencial na fronteira entre a sua colónia da Guiana e o Norte do Brasil.


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