|
A evolução das Milícias
19.ª parte |
A caráter social do recrutamento das Milícias
Vale a pena tentar perceber porque é que as Milícias do norte conseguiram entrar em campanha e, desde pelo menos a guerra de 1762 – a Guerra do Pacto de Família –, atuar militarmente de uma forma consistente, em mobilização, em organização e em disciplina. Ao contrário das Milícias do sul, que eram sistematicamente confinadas às muralhas das fortalezas alentejanas e algarvias.
D. Pedro de Almeida, marquês de Alorna, explicou-o muito bem, quando se opôs à transformação dos milicianos em reservistas, de acordo com a proposta de reforma do exército de 1803, que implicava o desaparecimento do princípio da naturalidade de uma direção do exército e do governo aristocrática. Para o marquês, em 1801
Na época em que o marquês escreveu este texto o Alentejo servia de recrutamento para oito regimentos de Milícias. Em 1810 já só eram quatro, de acordo com a reforma de outubro de 1807, mas mesmo assim, o recrutamento era difícil. Não havia proprietários suficientes para completar os regimentos de Milícias, população mais conhecedora, mais facilmente instruída, normalmente detentora de armamento próprio e capaz de adquirir as fardas regulamentares, tendo a "escolha" de recair, mais do que o desejável, nos jornaleiros – pessoas sem bens, que não se podiam fardar nem armar à sua custa, ao contrário do que acontecia nas províncias do norte. De facto, como o marquês tinha notado, de acordo com o plano que tinha sido proposto em 1803 e que foi aplicado em grande medida em 1808, "este corpo [de Voluntários das Ordenanças / Milícias] conforme o Regulamento em questão, deve ser recrutado pela gente abonada do território". Sempre o tinha sido, era o que lhe deva consistência, desde medos do século 17. Há um aspeto que vale a pena notar. As Milícias de Trás-os-Montes e as do Partido do Porto movimentaram-se e lutaram defendendo as suas terras, assim como as da Estremadura postadas nas posições defensivas a norte de Lisboa e as do Alentejo guarnecendo as fortalezas na raia da província. A generalidade da população masculina que participou nas companhias de guerrilha ou de defesa local quase nunca saiu do seu local de habitação, e quando saiu, sobretudo na Beira Baixa, onde não havia tropas milicianas mobilizadas, e se movimentou para longe da sua residência habitual foi em perseguição de tropas francesas que tinham passado perto ou pelas suas localidades. Pode ser que Charles Esdaile tenha razão – e dificilmente terá, baseando a sua opinião somente nos números da deserção, aceitando a interpretação do comando britânico do exército da altura –, e não se vislumbre uma preocupação "nacionalista" na população portuguesa ao longo da Guerra Peninsular, mas uma coisa é certa, o "patriotismo" foi evidente. Convém, finalmente, salientar que a população portuguesa em geral tinha um motivo adicional de mobilização tendo sofrido brutalmente às mãos das tropas francesas, de finais de 1807 até meados de 1809. Sabia muito bem com o que iria contar em 1810 com a nova invasão francesa. Não precisava de ser lembrada de nada para acorrer às armas. Sabia que ia sofrer às mãos da mais brutal máquina militar que os tempos modernos tinham conhecido, uma máquina que chacinou a população portuguesa duma forma inaudita, fazendo perder a Portugal, ao longo dos sete anos que durou a guerra franco-portuguesa de 1807 a 1814, dez por cento da sua população, números só comparáveis com o genocídio perpetrado pelo exército alemão na Rússia soviética durante a guerra germano-soviética de 1941 a 1945, durante a segunda guerra mundial. A verdade é que a facilidade com que a população portuguesa foi mobilizada, ao longo das três invasões e na sua continuação até 1814, para combater no exército de primeira linha, no exército de reserva – que é o que as Milícias eram de facto – e no levantamento em massa da população masculina, foi um fator essencial no sucesso da defesa do país. O que mostra que a instituição das Ordenanças, criadas no reinado de D. Sebastião, permitiu a Portugal reorganizar um exército quando ele deixou de existir ou quando não existia mesmo, como em 1640 e em 1808. Mas também, que as mudanças impostas ao sistema militar pela cortes no início da Guerra da Restauração, sobretudo em 1646, com a decisão de criar as tropas auxiliares e o fim de qualquer serviço militar das Ordenanças, não deixou de manter um espírito de preparação para a defesa da população em geral. Esse espírito deve-se provavelmente à existência de um corpo permanente de oficiais, sargentos e cabos de Ordenanças, que tendo regressado ao estatuto militar no reinado de D. João V, conseguiu recrutar o exército e as Milícias, durante as guerras da Sucessão de Espanha (1705-1715), do Pacto de Família (1762-1763), da Revolução Francesa (1793-1797) e de Espanha (1801). De facto, em todas os períodos foi possível fazer mais do que recrutar, foi possível organizar mais tropas do que as determinadas com base no sistema das Ordenanças. Ao longo do tempo tiveram nomes diferentes – companhias do monte, de voluntários, de guerrilhas, atiradores e artilheiros nacionais, etc. –, sendo integradas no Exército, nas Milícias ou mantendo o seu estatuto de Ordenanças, mas combateram sempre em defesa da sua "pátria", da sua região sempre, possivelmente a maior parte das vezes do seu país, nalgumas do seu rei, a partir de um determinado momento em defesa da sua nação.
|
|
| 1ª parte
| 2ª parte | 3ª
parte | 4ª parte | 5ª
parte | 6ª parte | 7ª
parte | 8ª parte |
|
|