Soldado da Legião
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Soldado de Infantaria da
Legião Portuguesa

LEGIÃO PORTUGUESA AO SERVIÇO DE NAPOLEÃO


Em França (1810 - 1812).

 

Carcome Lobo ficara despeitado com a perda do comando, e o seu carácter mesquinho encontrou facilmente no génio cabeçudo e teimoso de Gomes Freire motivo para insidiosamente o intrigar, arranjando maneira de ser nomeado comandante da brigada de elite, que devia partir para Meaux. e daí para Paris, e conseguindo que Gomes Freire fosse mandado com os batalhões que deviam partir para Genebra. Por este tempo Napoleão, querendo incorporar à França o cantão de Valais, mandou para lá o general Cesar Berthier com algumas forças francesas, contando uma coluna de cavalaria, a que deviam incorporar-se os batalhões portugueses que em Genebra estavam com Gomes Freire.

Carcome tendo partido para Paris com cinco batalhões de infantaria e a cavalaria, que ficaram ali algum tempo de guarnição, recebeu na capital a patente de general de divisão e as insígnias da Legião de Honra. A notícia de que estariam um mês de guarnição em Paris, o que era considerado uma honra por todo o exército, deu um grande prazer aos portugueses, que, no dia 19 de Outubro, fizeram orgulhosos a guarda do palácio de Napoleão misturados com as praças da guarda imperial, distinção que até então não fora ainda concedida a estrangeiros.

A cavalaria tinha sido alojada com a artilharia da Guarda no quartel da Ave Marie, junto ao Sena e a infanteria no de France. No dia da revista os oficiais da guarda imperial convidaram para um jantar os seus camaradas portugueses, e à noite foram distribuídos aos soldados bilhetes para os diversos teatros da capital, onde já lhes haviam marcado lugares.

A 20 de Setembro Napoleão escrevia de Saint Cloud ao marechal Davout:

«Meu primo. 1 Terei domingo em Paris parada da Legião Portuguesa que está em Meaux, os batalhões de marcha da divisão da vanguarda do exército de Espanha, a guarda holandesa e a minha guarda francesa se encontrarão nessa parada. A minha guarda dará nesse dia de jantar a todos os soldados portugueses, é vós dareis de jantar aos oficiais.»

Napoleão lisonjeando as tropas portuguesas tinha um fim político, o de que elas o auxiliassem a firmar o seu domínio em Portugal.

No fim da revista mandara o Imperador formar a infantaria em quadrado e entrando com o seu estado maior para dentro dele, falou aos soldados, dizendo-lhe que na sua pátria estavam os ingleses, os quais eram dela os maiores inimigos, perguntando-lhes se queriam ir convencer os outros portugueses desta verdade? Apesar do entusiasmo que a permanência nos exércitos imperiais tinha despertado nos soldados por Napoleão, a ideia de empregar as suas armas em Portugal fê-los estremecer, e poucos se atreveram a responder que sim. O Imperador devia ter reflectido sobre a sua hesitação e a ideia de incorporar a Legião Portuguesa às forças invasoras de, Massena, pareceu-lhe menos realizável de que a julgara.

O que. Napoleão estava porém longe de prever era a derrota do seu feliz marechal nessa terra extrema da península, e que os irmãos dos seus granadeiros de Wagram, deviam, capitaneados pelo general de cipaios, que se tornaria o seu vitorioso émulo, infligir-lhe os desastres mais funestos, que antes da Rússia sofreram as suas armas.

O Imperador; no apogeu da felicidade e da glória, não se lembrava de que tinha eminente à descida, e nenhum desses portugueses que o cercavam, fascinados pelo seu esplendor, prontos a morrer por ele nos confins do mundo; que não fossem a sua pátria, se atrevia a supor que os broncos aldeões das suas serras iriam medir-se dentro em pouco, vitoriosos, com esses aguerridos veteranos, seus companheiros de glória.

Mas assim foi, e os oficiais que vieram a Portugal no estado-maior de Massena, viram-se obrigados a assistir a essa épica luta; no peito, amargurado por muita dor, sentiriam, apesar da natural aversão que, na situação em que se achavam, deviam inspirar-lhe os ingleses, orgulho pelas, vitórias deles que eram as vitórias dos nossos.

O marquês de Alorna, que já estava em Espanha, recebeu ordem de reunir-se ao exército de Massena em Cidade Rodrigo. Vieram juntar-se-lhe Pamplona e o seu ajudante de campo António Nobre, os marqueses de Valença, Loulé e Ponte de Lima, os condes de Sabugal e de S. Miguel, D. Manuel de Sousa, José de Vasconcelos, Manuel de Castro, Cândido José Xavier e o tenente António Severino de Gusmão.

A 24 de Janeiro de 1810 escrevia Napoleão:

«Senhor general Bertrand, desejo que vejais o general Pamplona e os outros generais portugueses que estão em Paris afim de recolher desses oficiais informações sobre a natureza das estradas de Zamora ao Porto; de Salamanca a Almeida, evitando tanto quanto possível Cidade Rodrigo; de Alcântara a Lisboa e em geral sobre todo esse triângulo entre Madrid, Alcântara e Salamanca, e entre Salamanca, Porto e Lisboa.

Massena pedira para que lhe fossem enviados alguns dos nossos oficiais, Napoleão escolheu os que poderiam exercer mais influência no país, contava com a sua repulsão pelos ingleses, e com as provas de lealdade que lhe tinham já dado. Ainda assim e apesar dos perigos a que a proscrição a que tinham sido votados os expunha, José de Vasconcelos, o marquês de Ponte de Lima e o marquês de Valença desertaram.

É interessante ler o que a respeito destes oficiais se encontra nas memórias de vários oficiais franceses do exército de Massena.

Marbot diz:

«Nós tínhamos no grande estado-maior uns trinta oficiais portugueses, em o número dos quais se encontravam os generais marquês de Alorna e conde de Pamplona, vindos para França; em 1808, com o contingente fornecido a Napoleão pela corte de Lisboa. Estes militares, bem que não houvessem feito mais do que obedecer às ordens do seu antigo governo, tinham sido proscritos pela junta, tinham seguido o nosso exército, afim de voltar à sua pátria e entrar na posse dos bens confiscados. Massena esperava que esses banidos portugueses pudessem dar-lhe algumas informações úteis; mas exceptuando Lisboa e os seus arredores nenhum deles conhecia o seu próprio país, em quanto que os ingleses, percorrendo-o em todos os sentidos havia dois anos, estavam perfeitamente ao facto da sua configuração interior, o que lhe dava imensas vantagens sobre nós.»

O general Foy na sua História da guerra da península, aprecia nos seguintes termos a Legião Portuguesa, e o emprego que Napoleão deu a alguns oficiais no exército de Massena

«Eles mereciam em todos os lugares a estima dos seus companheiros de armas; o Imperador guardou-se bem de os enviar para a península. Apenas alguns oficiais receberam este destino, sem o ter pedido, e esses trabalharam quanto puderam para diminuir os males que a guerra tinha atraído sobre o seu país. Os chefes do exército francês tiveram a delicadeza de poupar-lhes missões em que eles tivessem de encontrar-se de armas na mão contra os seus compatriotas».

O general Marmont tem também nas suas memórias ao mesmo respeito uma interessante página:

«Napoleão tinha ordenado a Junot, na época em que ele tomou posse de Portugal, de enviar para França toda a parte disponível do exército português. Essas tropas, formando uma divisão às ordens do marquês de Alorna, o único general um pouco distinto que tinha Portugal, combateram na Alemanha em 1809; tínhamos tido portugueses, nas nossas fileiras de Wagram. Quando Massena tomou o comando deram-lhe um certo número de oficiais, e o próprio marquês de Alorna, para lhe fornecerem informações e exercerem influência no país. O general Pamplona, que mais tarde teve um papel na política portuguesa, e foi ministro da guerra, o marquês de Ponte de Lima, o marquês de Valença, aliado à família real, entravam nesse número. Estes oficiais encontraram-se assim auxiliares dos estrangeiros que devastavam a sua. pátria e testemunha dos seus desastres; triste situação, sem dúvida, a pior e a mais cruel do mundo! Quando substitui Massena, o marquês de Alorna pediu-me para voltar a França, a que o autorizei. Os outros ficaram no meu estado-maior. Usei para com eles de todos os cuidados e atenções.

Os marqueses de Valença e de Ponte de Lima exerciam junto de mim as funções de ajudantes de campo. Durante a minha residência em Madrid, estes dois oficiais deixaram furtivamente o meu quartel-general e passaram para Portugal. Teriam feito melhor se recusassem de ser empregados ou se pedissem licença para voltar a França, que eu lhes teria concedido, como a concedera ao marquês de Alorna; mas compadeci-me da sua situação e não tomei nenhuma medida de rigor contra eles, achando-os bastante desgraçados por terem violentamente feito, durante mais dum ano, um mister tão contrário aos seus sentimentos e aos seus deveres para com o seu país.»

A duquesa de Abrantes, Laura Junot, também nas suas memorias se refere, e muito amavelmente, a alguns desses oficiais, enviados por Napoleão para, como ela diz, falarem ao moral da nossa pátria; vejamos o que pelo favor da graciosa dama alcançou o conde de Sabugal:

«O conde de Sabugal possui um espírito superior e não aprova de modo nenhum a imbecilidade do governo português; ele nunca esteve dominado e presentemente, ainda menos o está pela estúpida superstição e pelo fanatismo de muitos dos seus compatriotas. Não queria porém ser um parricida, e manifestou-me quanto seria grande a sua dor se o obrigassem a entrar hostilmente na pátria. Falava a um ente que sabia compreendê-lo. Intervim então junto do general Cacault, pois este queria enviá-lo não sei aonde e falava nada menos que de o fuzilar se não obedecia. Escrevi ao general Fournier que estava então em Zamora, e não fazia parte do sétimo corpo, e roguei-lhe de tomar para si o conde de Sabugal, o que ele fez logo obsequiosamente. O conde de Sabugal foi pois para Zamora esperar ocasião ou de poder entrar em Portugal sem combater, ou de voltar a França.

(...) O general Fournier agradeceu-me mais tarde o ter-lhe recomendado o conde de Sabugal, encantado por encontrar n'elle um bom rapaz espirituoso e bravo.»

M. Boppe põe dúvidas à deserção de José de Vasconcelos, afirmada numa carta, de 20 de Janeiro de 1811, escrita pelo chefe da segunda divisão ao chefe da oitava e as suas dúvidas apoiam-se numa outra carta, datada de 5 de Maio, em que José de Vasconcelos pede ao duque de Ragusa que solicite do Imperador a sua promoção a general de brigada, carta em, que se lê o seguinte período:

«Tenho vinte e quatro anos de serviço, conto quatro campanhas, e sou há oito anos coronel dum regimento, o mais antigo da Legião, e apesar de ter já bastante tempo de serviço militar, a minha idade de trinta e oito anos permite-me a esperança de ser útil ainda por muito tempo, motivo porque pretendo a minha promoção.»

José de Vasconcelos desertou porém efectivamente, embora esta carta prove que a sua deserção devia ser posterior à dos marqueses de Valença e de Ponte de Lima. Na ordem do dia de 28 de Fevereiro de 1812, datada do quartel de Calhariz, Beresford mostra reintegrados nos seus postos no exército português os marqueses de Valença e Ponte de Lima e José de Vasconcelos. Transcrevo da ordem a parte relativa ao coronel do quinto da Legião Portuguesa, isto é o aviso enviado pelo ministro da guerra a Beresford.

«Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor - Havendo sido posto em liberdade José de Vasconcelos e Sá, Coronel que era do Regimento de Infanteria n.º 2, em consequência da Sentença que obteve Camarariamente a seu favor, foi o Príncipe Regente, Nosso Senhor, Servido, por despacho Régio de 8 do corrente mês, mandar avivar a Praça do Suplicante no mesmo Posto, e com o Soldo que tinha. O que participo a Vossa Excelência para sua inteligência.

Deus guarde Vossa Excelência. Palácio do Governo em 10 de Janeiro de 1812 - D. Miguel Pereira Forjaz - Sr. Conde de Trancoso.»

O marquês de Alorna voltou para França em Julho de 1811, assim como a maior parte dos oficiais portugueses. Tornaram a entrar na Legião e, os que chegaram a tempo, fizeram parte das formações criadas nesse ando em vista da próxima campanha da Rússia.

O marechal Massena

O marechal Massena

A Legião Portuguesa, quando em 1808 fora por Junot mandada para Franca, não completara os seus efectivos, que só para a infantaria deviam ser duns nove mil homens, e como pouco depois começou a guerra em Portugal tornou-se impossível satisfazer os desejos de Napoleão de completar-lhe neste país o recrutamento. Tratou-se de suprir-lhe as faltas com prisioneiros espanhóis. Os batalhões provisionais que foram para a Alemanha com o marquês de Valença e o conde de S. Miguel eram na maioria compostos de espanhóis.

Diz num relatório ao Imperador o duque de Feltre, ministro da guerra:

«Estes recrutas espanhóis não são recrutas escolhidos e tem sido necessária toda a firmeza do major Cathelin para os manter um pouco na ordem (...)»

Napoleão dizia ao ministro a 12 de Julho de 1810:

«O recrutamento da Legião portuguesa entre os prisioneiros espanhóis é uma má coisa; é preciso enviar um oficial general rigoroso para que lhes passe revista e reenvie aos depósitos de prisioneiros todos quantos se portarem mal; é pôr armas na mão de homens muito perigosos e impedir que me possa servir desses quadros.»

O relatório do ministro da guerra, de 26 de Outubro, participa que fora em Metz passada uma grande revista à Legião Portuguesa e em cumprimento dos desejos do Imperador, dela extraídos seiscentos e quinze espanhóis, e enviados para Anvers ao regimento de José Napoleão. Diz o duque de Feltre:

«O general comandante da nona divisão, que passou a revista, dá-me conta de que os soldados portugueses são bem disciplinados, animados dum excelente espírito e do desejo de bien-faire; mas que não acontece o mesmo aos soldados espanhóis, dos quais muitos são inclinados ao roubo.»

Noutro relatório com data de Setembro dá o ministro parte ao Imperador de que:

«Os portugueses nos quadros dos cinco regimentos de infanteria e nos dois de cavalaria, estacionados na sexta e sétima divisões, são quase todos oficiais inferiores, tambores, músicos, operários e enfermeiros. Os homens válidos e aptos para serviço desta Legião, encontram-se na meia-brigada de elite, que Sua Majestade inspeccionou em Paris, a qual é unicamente composta de portugueses, tendo sido os espanhóis dela em Metz passados para o regimento de José Napoleão. O general Muller afirma-me que se pode contar com os espanhóis que ficaram na Legião depois desta operação.»

Os batalhões provisionais que o general Gomes Freire pôs às ordens do general Cesar Berthier no Valais, tinham os quadros de oficiais e sargentos portugueses e umas quarenta praças portuguesas por companhia, sendo o restante na maioria espanhóis. Haviam sido estes batalhões organizados pelo general Muller e comandados por António José Baptista Carneiro, e pelos chefes de batalhão Blanc e Bernardino António Moniz; dois meses depois partiu para Genebra um outro batalhão, comandado pelo major Mr. de Martigny. Estando o Valais em sossego Berthier mandou de lá retirar .as colunas de cavalaria do general Fiteau, ficando Gomes Freire comandando o restante das forças; voltando a França em Março de 1811.

Na revista de inspecção em que fizera a escolha dos recrutas espanhóis, mandava também o general Muller retirar da Legião uns sessenta e sete italianos e alguns alemães e irlandeses, conservando nela alguns franceses que tinham voltado dos depósitos de prisioneiros de guerra da península. O imperador, julgando seguras as operações de Massena, continuava no pensamento de fazer seguir, quando o julgasse a propósito, a Legião para Portugal, mas como as coisas não corressem neste país segundo os seus desejos mandou suspender a marcha das forças portuguesas, e estas tomaram quartéis de inverno, a infantaria em Bourges, e a cavalaria em Chateauroux de onde o segundo regimento passou para Issoudon, daqui partiu ainda um destacamento, comandado pelo capitão David Pinto de Morais Sarmento, para Tolosa onde se demorou três meses. Durante a marcha demoraram-se dois dias em Orleans, encontrando nesta cidade alguns prisioneiros de guerra e entre eles oficiais de infantaria 24. Iam para Leon, onde foi sempre o depósito dos prisioneiros portugueses. Por eles souberam o estado em que estavam as coisas em Portugal, os sofrimentos e misérias do país; bem pungente deviam ter sido as reflexões desses homens sobre as agruras do destino.

A situação de Portugal, de que vinham chegando notícias cada vez mais inquietadoras, após a derrota do Buçaco o obstáculo das linhas de Torres Vedras, a insurreição violenta do país, deviam inspirar a Napoleão receios sobre o estado de espírito das tropas portuguesas. Em 7 de Março de 1811 escrevia o Imperador ao duque de Feltre;

«Fazei-me conhecer a situação da Legião Portugueza.

«Vejo que ela tem três batalhões de elite formando mil homens, e dois batalhões de marcha na força de duzentos e setenta oito homens em Bourges ... que, independentemente do que existe em Bourges há na sétima divisão militar cinco regimentos formando o grosso de dez batalhões, e dois batalhões provisionais, fazendo três mil e setecentos homens. Terei pois proximamente seis mil portugueses. Deve ver-se como poderei utilizá-los.

Ponde-me à vista as relações que os generais comandantes em Bourges, Grenoble e Besançon, dão do espírito e da conduta desses regimentos. Logo que eu possua um mapa da situação da Legião Portuguesa e que conheça de que nações são esses homens, suprimirei os dois batalhões provisionais que estão em Bourges e separarei os três batalhões de elite, que mandarei uns para longe dos outros.»

Com data de 17 de Abril escreve ainda o Imperador:

«Vejo que tenho três mil e quinhentos desses portugueses que não quero deixar em Grenoble e em Lyon ... penso que é assaz importante tirá-los de França. Poderei fazer chamar o general português que está em Paris (Carcome) e explicar-lhe o partido que se quer tirar deles e a vantagem que isso lhe apresenta pois que não podem deixar de ser muito desgraçados em Portugal.

Fazei-me conhecer quais os generais portugueses em que posso fiar-me para os ligar a cada um desses regimentos. Sempre será uma garantia.»

O ministro da guerra, em resposta, dando informações sobre o estado-maior da Legião diz:

«O melhor, e mais hábil dos generais portugueses que estão em França é sem contradição o general de divisão Gomes Freire que está em Genebra. Serviu outrora na Rússia duma maneira distinta; levado pelo amor-próprio e tratado com alguma confiança pode tornar-se muito útil; tem suportado com muito pesar a ideia de não ser empregado nos exércitos desde a sua estada em Franca.»

Em conformidade com as ordens de Napoleão, foi Carcome Lobo, com um general inspector, ver o estado das tropas, que, depois de novamente organizadas, foram mandadas a infantaria para Toul e a cavalaria para Epinal, onde ficaram de guarnição até Março de 1812.

Napoleão Bonaparte

Napoleão Bonaparte no seu gabinete de trabalho

Do palácio de Saint Cloud, datou Napoleão, a 2 de Maio de 1811, o decreto de reorganização da Legião Portuguesa da qual o primeiro artigo determina:

«Os quadros da Legião Portuguesa criada pelo decreto de 18 de Maio de 1808 são reduzidos aos de três regimentos de infantaria e dum batalhão de depósito e para a cavalaria aos de um regimento.

«Os regimentos de infantaria serão de dois batalhões; cada batalhão de seis companhias de fuzileiros; cada companhia de cento e quarenta homens, compreendendo os oficiais.

«O batalhão de depósito compreenderá quatro companhias de fuzileiros.

«O regimento de cavalaria terá quatro esquadrões, de cento e setenta e seis homens cada um, não compreendendo os oficiais, cada esquadrão duas companhias de oitenta e oito homens cada uma.

No artigo terceiro determina que:

« Os primeiros, segundos e terceiros batalhões fazendo parte da meia brigada de elite e da força de doze companhias, formarão o primeiro regimento.

«Este primeiro regimento terá dois batalhões, o primeiro batalhão será composto de atiradores e o segundo de granadeiros; terão o pret de granadeiros ou atiradores; não serão nele admitidos senão portugueses.»

O general La Costa, comandante da quarta divisão, completou a organização deste regimento de elite; para o completar tiraram-se soldados portugueses dos outros corpos. Deu-se o comando do primeiro regimento ao coronel Francisco António Freire Pego, o do batalhão de atiradores ao chefe de batalhão Luís Francisco Trínité e o de granadeiros ao chefe de batalhão Caldeira. Com os restos dos antigos regimentos, que tinham ficado sempre em Grenoble, se organizaram os quatro batalhões que formaram os outros regimentos de infantaria da Legião assim reduzida. O general La Roche, comandante da sétima divisão, foi quem dirigiu esta parte das reduções.

Os dois batalhões do segundo regimento ficaram comandados pelos chefes de batalhão Bernardino António Moniz e Baltazar Ferreira Sarmento, o qual ficou com o comando interino do regimento, até à nomeação de coronel para ele. Os dois batalhões do terceiro regimento ficaram comandados pelos chefes de batalhão Francisco Cláudio Blanc e Alexandre de Martigny, 2 o qual ficou, como Baltazar Ferreira, comandando interinamente o regimento.

O general Duverger, comandante interino da quarta divisão, na ausência do general La Costa, dirigiu a organização do regimento de cavalaria em que se fundiram os dois antigos. Este regimento ficou de quatro esquadrões a duas companhias cada um, e cada companhia com cento e vinte praças. O marquês de Loulé, que voltara de Espanha ao tempo da organização, foi nomeado coronel do regimento, no qual ficaram chefes de batalhão João de Melo (Sabugosa) e D. José Benedito de Castro.

O general Carcome foi o único general português que influiu nesta operação e no despacho de dois capitães, António Pego e José Pereira Pinto, que foram então promovidos ao posto de chefes de batalhão, ficando agregados à Legião.

A nova organização completou-se no mês de Outubro de 1811 e por esse mesmo tempo o depósito de cavalaria, que estava em Gray, partiu para Grenoble a reunir-se com a infantaria, aí se reuniram também todos os oficiais e oficiais inferiores e soldados que sobejavam dos quadros. Vários oficiais inferiores e soldados que se achavam estropiados ou tinham moléstias que os impossibilitavam de servir, obtiveram a sua reforma, e tinham, assim como os oficiais reformados, o direito de escolher o departamento da França em que preferiam viver, sendo aí pagos das suas pensões.

O artigo quinto da organização determinava: «Os oficiais e oficiais inferiores que se encontrarem excedendo o completo dos novos quadros ficarão supranumerários e continuarão a gozar do soldo de actividade; ocuparão as primeiras vagas que nos seus postos se vierem a dar.»

No relatório de 23 de Setembro em que se dá conta ao ministro da execução do decreto de organização propõe-se que:

«Não permitindo a nova organização da Legião de conservar nela dois generais de divisão, cuja autoridade rival dificulta sempre a marcha do serviço, se confie o comando de toda a Legião ao general português Gomes Freire. Quanto ao general Carcome, que desde a sua promoção a general de divisão pertence ao estado-maior do exército francês, é susceptível de receber uma colocação seja num exército seja no interior. Sua Excelência é rogado de fazer conhecer a sua intenção.»

Da mão do ministro: «Aprovado, e como o general Carcome deseja ser empregado no interior, irá propor-se a sua Majestade de lhe dar esse destino.»

A infantaria portuguesa foi para Toul e a cavalaria para Epinal.

O marquês de Loulé, cujo trágico fim no palácio da Bemposta, pouco antes da Abrilada, em 1824, enodoou negramente os começos da reacção absolutista, foi uma simpática e brilhante figura da Legião portuguesa.

Entusiasta e dedicado a Napoleão, cuja glória seduz o seu ânimo guerreiro, ele pede numa carta dirigida em 14 de Abril de 1809 ao ministro da guerra, para ser mandado servir activamente num exército com as mais calorosas palavras: «Senhor, o lugar de simples soldado me seria bem mais agradável para defender a minha pátria adoptiva de que o meu posto de coronel numa guarnição».

Em Wagram bate-se sempre com denodo à frente do seu regimento; é a esse tempo um rapaz de trinta anos arrojado e fogoso. O príncipe de Eckmühl apresentando-o a Maria Luísa chama-lhe o «bravo marquês».

Mandado para o estado-maior de Massena, daí voltou em Junho de 1811, recebendo a 8 de Julho a nomeação de coronel do regimento de cavalaria organizado a 2 de Maio.

Numa longa e interessante carta ao general Carcome participa-lhe que tomou posse do seu comando. Transcrevo, quase na íntegra, do livro de Mr. Boppe este documento, copiado dos arquivos do ministério da guerra em França, que mostrando o estado em que se encontrava a cavalaria da Legião, nos deixa também ver o belo espírito do marquês de Loulé.

«Epinal, 15 de Julho de 1811

«Meu general, parti a 11 do corrente às oito horas da noite, foi o mais cedo, como vós sabeis, que pude. Cheguei a 13 às 4 da tarde e tive a felicidade de chegar a tempo de assistir à organização do meu regimento. O general Duverger, encarregado desta organização, tem usado para comigo de toda a sorte de bondades e como foi a vossa carta quem mas obteve, rogar-vos-ia, meu general, de lhe fazer saber que delas vos dei parte.

«Tenho a honra de vos enviar um mapa dos oficiais que partem para o depósito e daqueles que ficam nos três esquadrões. Já vos enviei a este respeito todos os pormenores, e agora vou apresentar-vos o que há sobre o meu regimento.»

«Encontrei os malotes dos meus caçadores muito bem fornecidos em geral, e as pequenas faltas o conselho administrativo se encarregará de as prover em conformidade com as reclamações dos meus capitães; há alguns fundos na caixa, provenientes da massa de roupa e calçado, mas o que está num estado deplorável são os uniformes. Rogo-vos meu general de obter que os façam imediatamente vestir, coisa ainda mais justa por haver já muito tempo que lhes devem o fardamento.

«Peco-vos com instância de obter uma remonta e comprometo-me, meu general, a que dentro em pouco tempo estaremos em estado de nos mostrar dum modo que nos faça honra. Os caçadores têm a base da instrução, e um pouco de trabalho os porá todos no estado em que devem estar; temos excelentes instrutores em todas as classes e eu tive a felicidade de conservar o ajudante-major Saldanha, que nomeei instrutor geral. Vós conheceis os talentos deste bravo oficial tão bem como eu para não duvidar de que em pouco tempo sejam dignos de merecer a consideração de S. Ex.ª o ministro da guerra; mas se não estivermos montados não poderemos nunca aparecer nem ser úteis, coisa que desejamos ardentemente. (...)

O major general Mr. de Jumilhac, que há três anos está à testa deste serviço (contabilidade) e que sem dúvida o tem, em todos os pontos, tão bem desempenhado, seria para desejar que fosse nele empregado novamente (se todavia o não está por direito como eu o creio). O meu maior desejo era te-lo comigo:

Rogo-vos, meu general, de desculpar a minha longa carta, o meu dever, o interesse que Sua Excelência o ministro da guerra põe em que este corpo esteja em bom estado, o prazer que vós tendes de fazer ver que a cavalaria não é menos digna que a infantaria da benevolência de Sua Majestade, me farão sempre pedir-vos, meu general, de me não negar o vosso apoio junto de Sua Excelência o ministro da guerra, fazendo-lhe bem ver a nossa posição e as nossas necessidades.

«Rogo-vos meu general, de aceitar os meus respeitos.

«O coronel comandante da cavalaria da Legião Portuguesa

Marquês de Loulé.»

Enviando ao general a lista dos oficiais mandados ao depósito, por falta de lugar nos quadros, o marquês compadece-se dalguns desses oficiais. Para o capitão Silveira, de nobre família, que nada pode receber dos seus bens em Portugal e tem consigo mulher e filhos, pede que seja concedida uma pensão como estrangeiro, pois o soldo lhe não permite suprir as suas necessidades. Pede o mesmo para o ajudante Torme. Para o ajudante Rieben, com vinte e quatro anos de serviço, o comando da oitava companhia do deposito. Solicita a Legião de Honra para o chefe de esquadrão Melo, para o capitão David Pinto e para o alferes Venâncio, que estava na batalha de Wagram; a promoção a alferes do ajudante Nuno Jaime e termina com estas palavras:

«Não posso demonstrar-vos meu general, a mágoa que todos os oficiais experimentam de ir para o depósito, eles julgam ser para lá enviados por incapacidade, esta ideia junta à nenhuma esperança de poderem em breve servir activamente S. M. Imperial e Real os põe num estado cuja descrição é tão aflitiva que não me atrevo a vos apresentá-la; na verdade, meu general. é agradável ver dar provas de tão bravos e dignos sentimentos, mas seria bem penoso se o reconhecimento das bondades que Sua Majestade tem pelos portugueses, me não fizesse. crer firmemente que ele dará alívio a estes pesares; esta doce esperança me consola e os consola a todos.»

P. S.

«O sargento-ajudante Gambôa, que devia partir para o depósito, sentiu tão grande desgosto por esse motivo que se atirou ao rio; felizmente acudiram-lhe a tempo de não perecer, mas ficou num estado que me faz recear pelos seus dias. Se se salvar rogo-vos a graça de obter de Sua Excelência o ministro da guerra que mo deixe aqui ficar supranumerário.»

Comandava o general barão de Pouget o departamento dos Vosges e residia em Nancy. Estando o regimento de cavalaria portuguesa em Epinal, aí tinha de comparecer o general sempre que o exigiam as necessidades do serviço. Conta o barão nas suas memórias que duma vez em que mandou prevenir o coronel de que iria passar revista ao regimento, partira de Nancy, com esse fim, na sua carruagem levando atrás o cavalo arreado: «A uma légua de distância de Epinal vi aproximar-se um troço de cavalaria, precedido dum cavaleiro a galope. Era um dos meus ajudantes de campo que vinha prevenir-me de que a oficialidade do regimento, com os chefes à frente, corria ao meu encontro. Montei a cavalo imediatamente para os receber. Já conhecia o marquês de Loulé, que recebera em minha casa a jantar, mas não conhecia o marquês de Jumilhac. Fizemos na cidade uma aparatosa entrada. Os chefes do corpo ofereceram-me de jantar: nada mais amável do que esses senhores, principalmente os marqueses de Loulé e de Jumilhac, um grande senhor português e outro grande senhor francês.»

O marquês de Jumilhac, cunhado do duque de Richelieu, major general da cavalaria portuguesa, era então tenente coronel do regimento, e a brilhante cena de parada que acabamos de descrever foi reproduzida num quadro de pintura militar; com verdadeiro rigor historico por um jovem artista francês, pensionário de Nancy em Paris, que no quadro apresenta os retratos do general Pouget, dos marqueses de Loulé e de Jumilhac e os uniformes da Legião Portuguesa.

 


Notas:

1. Correspondencia de Napoleão, carta 16937, comunicada pela marechala princesa de Eckmühl.

2. Oficial francês emigrado que entrara para o serviço de Portugal em 1803, colocado major no regimento de infantaria 24, e voltou para França com a Legião em 1808.

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Fonte:

Ribeiro Artur,
Legião Portugueza ao serviço de Napoleão,
Lisboa, Livraria Ferin, 1901,
págs. 40 a 68.

A ver também:

 

 

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