A evolução das Ordenanças

 

As Ordenanças no reinado de D. Sebastião

 

O Regimento dos Capitães-mores e mais capitães, e officiais das companhias de gente de cavallo e de pé: e da ordem que teram em se exercitarem de 10 de dezembro de 1570 que regulamentou a Lei das Armas que cada pessoa he obrigada a ter... do ano anterior, leis criadas tendo como pano de fundo as decisões tomadas nas Cortes de Lisboa de 1562-1563, que do ponto de vista da política internacional defenderam um claro corte com a aliança espanhola e uma aproximação radical à França dos Valois, criou um modelo de organização militar local que se manteve como base do recrutamento militar em Portugal até ao fim da monarquia absoluta.

 

D.Sebastião

©MNAA

D. Sebastião em 1573, por Cristóvão Morais

O Regimento criava as capitanias-mores, que se subdividiam em companhias de Ordenanças. A base da constituição das capitanias era a terra – cidade, vila, concelho, couto, honra, etc., – circunscrição basilar da organização territorial do Portugal de Antigo Regime. O capitão-mor era escolhido, "eleito" usando a terminologia da época, pelas jurisdições de cada terra que tantos podiam ser do rei, ou de senhorios nobres ou eclesiásticos, sendo que os alcaides-mores, função de nomeação régia, nas terras que os tivessem eram capitães-mores por inerência. No caso das outras terras de jurisdição real o rei delegava a escolha na câmara. Todas as nomeações deviam ser confirmadas pelos corregedores das comarcas, que também tinham obrigação de inspeccionar as listas para saberem se os oficiais das ordenanças "dellas escuzão algumas pessoas de hir na ordenança que conforme o Regimento devão hir nella, ou lhe levão peitas, ou dadivas, ou fazem em seus cargos outras couzas que não devão, e dão opressão ao povo".

O capitão-mor nomeava todos os oficiais das companhias, sendo ajudado por um sargento-mor. As companhias de Ordenanças deveriam ser compostas por duzentos e cinquenta homens divididos em dez esquadras, sendo comandados por um capitão, um alferes, um sargento e dez cabos de esquadra, havendo em cada companhia também um meirinho e um escrivão. As pessoas que fossem obrigados a ter cavalo faziam também parte da companhia mas exercitavam-se, como é natural, separadamente.

No inverno de 1573, quando D. Sebastião visitou o Alentejo e o Algarve, com intenção não só de inspeccionar as Ordenanças, mas também as fortificações do Algarve, a organização militar criada em fins de 1570 já estava claramente em funcionamento.

Em 1574, pela Provisão sobre Ordenanças de 15 de maio, foram explicitadas algumas decisões tomadas no regimento de 1570, e que decorriam muito naturalmente da viagem de inspecção efectuada no sul do país. Assim, nas localidades onde só se pudesse criar uma companhia de Ordenanças, deixaria de haver capitão-mor, e os oficiais, no exercício das suas funções, passaram a estar isentos da obediência aos seus senhores enquanto vassalos, o que teve como consequência deixarem as Ordenanças de ser estruturas directamente ligadas às câmaras, ou aos donatários, tornando-se de facto uma organização dependente da coroa, e a partir daqui deixando de coincidir com a organização concelhia.

Esta organização permitiu que em 1578 se levantassem nas províncias do sul – Estremadura, Alentejo e Algarve – quatro terços, que podem bem ser considerados os primeiros corpos de um exército que se formaria a partir daqui, se não fosse a derrota em Alcácer-Quibir. Os terços, de Lisboa comandado por Diogo Lopes de Sequeira, de Santarém ou da Estremadura de D. Miguel de Noronha, do Alentejo de Vasco da Silveira e o do Algarve de Francisco de Távora, que teriam cada um cerca de dois mil homens, são a prova do sucesso que foi a organização das Ordenanças no reinado de D. Sebastião, e que o seu avô D. João III não tinha conseguido pôr em prática.

Uma das perguntas que se pode levantar sobre estes novos corpos militares é o de saber porque é que só foram levantados na parte do sul do país. Como a historiografia sobre este assunto tem considerado a organização das Ordenanças como um fracasso, o problema nunca tem sido colocado. Mas a verdade é que ela não pode deixar de ser considerada um sucesso, tendo em atenção o que os outros reinos europeus conseguiram realizar na mesma época, e sobretudo o que se tinha tentado realizar no reinado anterior de D. João III, e falhado. Sabendo, de acordo com António Manuel Hespanha, que no século 17 a organização das Ordenanças no norte de Portugal era muito incipiente, e que no reinado de D. João III a oposição há sua organização tinha sido muito forte, pode ser que a criação das capitanias-mores de Ordenanças tenha sido mais fácil no sul do que norte. Mas deve-se tentar a resposta tendo em conta outras variáveis, mais de acordo com a mentalidade reinante em finais de quinhentos, e pensar que as autoridades possivelmente consideravam as populações do sul como mais vocacionadas para a guerra, o que está bem de acordo com o pensamento militar da época, ou as mais preparadas para aceitarem a preparação para a guerra no Norte de África.

Convém lembrar que dizer-se que as Ordenanças foram um sucesso é contrário a tudo o que se tem escrito sobre este assunto. Mas é preciso ter em conta que o que se tem escrito é baseado no conhecimento do que aconteceu em Alcácer-Quibir e não na análise das condições reais da época. Carlos Selvagem, no seu Portugal Militar, escreve que "o reino estava exausto, e, apesar dos excessos e desmandos... não se conseguiu apurar mais do que 9.000 homens", o que é uma afirmação que resume todas as que se podem encontrar em qualquer outro livro.

D. Sebastião levou para Marrocos um exército de cerca de dezanove mil homens, composto de doze mil portugueses e sete mil estrangeiros, alguns deles mercenários – o terço de alemães de Martim de Borgonha –, incluindo mil e quinhentos cavaleiros e a artilharia. Ora, o problema do exército de D. Sebastião, de acordo com as ideias do seu tempo, não era ter poucos portugueses, tinha era poucos mercenários. E isto devido à guerra entre a Espanha e as Províncias Unidas dos Países Baixos – a Guerra da Independência dos Países Baixos –, impedia a contratação de mercenários onde eles existiam: na Alemanha. Não só porque estavam a ser recrutados pelos dois exércitos em confronto, como pela dificuldade em trazer para Portugal os que pudessem ser contratados.

Para se ter uma ordem de comparação, o exército real francês tinha em 1558, segundo Ferdinand Lot, numa época de grande esforço militar durante a guerra contra a Espanha Habsburgo, cerca de quarenta mil homens, onze mil a cavalo e vinte e nove mil a pé, dos quais só doze mil eram franceses – três mil cavaleiros e nove mil infantes – sendo vinte e oito mil mercenários alemães e suíços. A população da França era, no mínimo, dez vezes superior à de Portugal. Os primeiros corpos de infantaria organizados em França – as Vielle Bandes – datavam de 1569 e eram em número de seis. Para termos outra ordem de grandeza, em 1582 o exército espanhol na Flandres constava de sessenta e um mil homens, dos quais eram espanhóis quatro mil e seiscentos soldados de infantaria, sendo vinte e oito mil mercenários alemães e vinte e cinco mil soldados recrutados nas possessões espanholas de Itália e dos Países Baixos. Quer isto dizer que, ao aceitar acriticamente os relatos dos contemporâneos, que falam quase todos de violências perpetradas no recrutamento, a historiografia portuguesa, logo desde Latino Coelho, não percebeu a novidade que foi a criação desta estrutura do "estado moderno", sendo bastante descabido falar, neste caso pelo menos, de provas de crise, já que uma "violência" era desde logo o próprio acto de recrutar, uma completa novidade para a população portuguesa do século 16, que estava praticamente livre de obrigações militares desde finais do século 15, sendo por isso naturais a resistência da população às levas, e a utilização da violência do poder central na imposição do cumprimento das leis, em Portugal como em qualquer outro reino europeu.

 


 

Fontes principais

 

Francisco Sales Loureiro, D.Sebastião antes e depois de Alcácer Quibir, 1978
Ferdinand Lot, Recherches sur les Effectifs des Armées Françaises des Guerres d'Italie aus Guerres de Religion, 1494-1562, 1962
Geoffrey Parker, The Army of Flanders and the Spanish Road, 1972
Humberto Mendes de Oliveira e Sérgio Vieira da Silva, "Elementos para o Estudo da História Militar do Reinado de D.Sebastião," Boletim do Arquivo Histórico Militar, 62.ª Volume (1997)

 

continuação

 

 

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