O fim do pesadelo americano
Nixon Watergate Ford Eleições Moralidade Congresso Nos Estados Unidos o ano foi traumatizante e de transição, uma estranha viagem com desfecho desconhecido pelas normas do processo político. Pela primeira vez, em mais de cem anos, os representantes do povo americano criaram uma comissão de investigação para saber se o Presidente dos Estados Unidos devia ser impugnado, isto é, demitido das suas funções. E pela primeira vez, o detentor do cargo demitiu-se no meio do escândalo e em desgraça. Durante todo este processo houve muito pouca perturbação; a mudança da guarda na Casa Branca, foi simples e rápida. Mas a rápida solução para a maior crise política nos Estados Unidos, nos seus quase 200 anos de história, pode ter sido simples, mas foi enganosa. É que o choque, tanto para a população como para o sistema político, foi repentino e brutal. No resquício do colapso de um governo e do começo incerto de outro, os americanos só poderiam pensar numa coisa: para onde vamos ? Desde o princípio o pesadelo americano tinha andado à volta de um homem - Richard Nixon - e em 1974 Nixon tornou-se de novo a figura dominante. Começou o ano cercado, cativo dos escândalos conhecidos por Watergate. «Nixon pode sobreviver», declarou um membro do Congresso, ao regressar a Washington, depois da pausa do Natal, «mas não conseguirá recuperar.» A partir daí o país foi vendo incrédulo e irritado Nixon lutar para salvar a sua deteriorada presidência, enquanto as suas próprias gravações mostravam a falta de princípios morais dos membros do seu gabinete, presenciando, por fim, e devido à inexorável propensão para a sua impugnação, a lacrimosa renúncia. Mas, mesmo depois de ter abandonado a capital, Nixon continuou a ser uma presença incontornável. O Congresso discutiu os privilégios e o dinheiro dados ao desacreditado ex-presidente. O julgamento do encobrimento do caso Watergate, tornou-se de facto o seu próprio julgamento, in absentia. E no isolamento do retiro de San Clemente, a sua saúde deteriorou-se.
De facto, os escândalos de Richard Nixon dominaram tão decisivamente a vida política dos Estados Unidos que a governação paralisou quase por completo. Houve momentos em que só o sector diplomático, dirigido por Henry Kissinger no Departamento de Estado, parecia estar a laborar normalmente, preocupado como estava com a paz no Médio Oriente e o desanuviamento Leste-Oeste. Os problemas políticos dos Presidentes americanos, fizeram com que a política económica ficasse para segundo plano, e as medidas para combater a crise energética fossem sucessivamente adiadas, por falta de liderança política. Quando Gerald Ford começou a tentar combater a inflação e a recessão, não fez mais do que lançar uma campanha sob o acrónimo WIN (Whip Inflation Now), que não fez mais do que propor medidas piedosas como as que pediam aos americanos para se manterem saudáveis, que comprassem nos saldos e não deixassem comida nos pratos ! E de facto, mesmo que a inflação não tenha desaparecido, nem o preço do petróleo diminuído, o não deixar comida no prato tornou-se a nova norma de etiqueta alimentar. O impacto imediato dos escândalos do governo de Nixon foi devastador, no curto prazo, mas as consequências a longo prazo foram menos claras. Houve quem achasse que o fim da Presidência forte («Imperial») e o aumento do poder do Congresso era um dos aspecto positivos da crise. Para outros, a mudança foi ainda mais importante. Com o fim do escândalo, apareceu um novo tipo de moralidade. Houve uma corrida para rever as leis sobre as despesas das campanhas eleitorais, e os candidatos a todo o tipo de lugares elegíveis ou nomeados passaram a ser investigados de uma maneira muito mais intensa. Por quanto tempo duraria esta nova preocupação, era o que toda a gente perguntava. Mas, de facto, a análise exaustiva do currículo dos candidatos a cargos políticos tornou-se a norma nos Estados Unidos, e a reforma dos leis sobre as despesas eleitorais só agora, no princípio do terceiro milénio, começou a ser posta em causa. Mas em 1974 tudo isto se mostrava de facto brisa de ar fresco para a vida política. No começo de 1974, era difícil descortinar uma luz no fundo do túnel que era o caso Watergate. Um ano e meio de investigações pela comunicação social, os tribunais e o Congresso, as sondagens davam a Nixon níveis de popularidade muito baixos, o que levaram a Casa Branca a fechar-se sobre si mesmo, ainda mais. Nenhuma operação de charme dava resultado. Até que em 15 de Janeiro, o juiz federal Sirica foi informado de que a estranha falha de 18 minutos e meio existente numa fita de gravação, importante para a investigação, entregue pela Casa Branca, tinha sido provocada manualmente por alguém que só podia ser da Casa Branca. As conclusões eram óbvias: alguém do círculo próximo do Presidente tinha destruído deliberadamente provas importantes. De repente, a investigação sobre a impugnação ganhou nova vida e, pela primeira vez, começou-se a falar na possibilidade de uma demissão do presidente.
Mas foi o próprio Nixon que acabou por pôr em causa o seu futuro como Presidente. Confrontado com novos pedidos de entrega de gravações e de documentos, protelou o tempo que pôde e, depois, na jogada mais desesperada da sua carreira política, apareceu na televisão anunciando que tinha autorizado a entrega de 12.254 páginas de transcrições de gravações. Tentou diminuir o mais que provável impacto negativo dos documentos, dizendo que elas mostrariam tudo o que se tinha passado durante o seu governo, «mesmo as verrugas», admitindo ao mesmo tempo que algumas declarações poderiam ser alvo de várias interpretações. Mas, se a intenção de Nixon era enterrar os seus acusadores numa montanha de papel, enganou-se redondamente. As transcrições liam-se com a intensidade de um livro de sucesso e quando foram publicadas em livro, tornaram-se de facto um sucesso de vendas. Mesmo repletas de omissões, as transcrições mostravam um Presidente pronto para fazer tudo o que fosse necessário para impedir a investigação sobre o caso Watergate. O que elas revelaram sobre a pessoa que Nixon era de facto, foi ainda mais brutal. Em vez, da imagem criada de um estadista sempre com o domínio das situações, mostravam-no a pensar de uma forma confusa, a falar de uma maneira bastante ordinária e sempre a interromper os seus interlocutores. Mas, mais importante do que isso, mostravam-no como alguém sem nenhuma preocupação com a moralidade das suas decisões, preocupando-se tão somente com os resultados. Para Nixon, o Watergate era a continuação de uma guerra entre «eles e nós». Não havia amigos a apoiar, somente inimigos a atacar. Como ele próprio dizia a um adjunto: «sejamos claros, ninguém é nosso amigo». Com o constante aparecimento de novas provas comprometedoras, a tendência para uma proposta de impugnação do Presidente foi aumentando, fazendo esquecer as espectaculares acções diplomáticas de Kissinger no Médio Oriente, a viagem de Nixon ao Cairo, a Jerusalém e a Moscovo, e mesmo o receio expresso por muita gente com as consequências duma impugnação. O presidente da comissão parlamentar de Justiça tentou reduzir os estragos: «Qualquer que seja o resultado, vamos avançar com as cautelas, a decência, a profundidade e a honradez necessárias ... para que o povo americano e os seus descendentes possam dizer: «Foi a decisão correcta. Não havia outra maneira.» Nos meses seguintes, os 21 membros do Partido Democrata e os 17 do Partido Republicano da Comissão de impugnação, fizeram exactamente isso - mostrando também como é que uma democracia funcionava. Mesmo os apoiantes de Nixon acharam que o Presidente tinha tido possibilidade de se defender. E quando foi realizada a primeira votação sobre a a proposta de impugnação, a votação deu um resultado de 27 contra 11 na decisão de acusar Nixon de obstrução da justiça no caso do encobrimento do assalto ao Watergate. Mais tarde a comissão acrescentou mais cláusulas, acusando o Presidente de utilização abusiva do FBI, da CIA e dos serviços fiscais, assim como de recusar uma intimação judicial. E de repente tudo acabou. Cinco dias depois da comissão ter votado as cláusulas de impugnação, a defesa de Nixon desmoronou-se completamente. De acordo com uma ordem do Supremo Tribunal, e pressionado pelos seus advogados de defesa, entregou a transcrição de uma conversa acontecida no seu gabinete na Casa Branca - o célebre Gabinete Oval - em 23 de Junho de 1972, que o implicavam directa e profundamente, desde o princípio do caso, no encobrimento do Watergate. Com essa descoberta 10 dos apoiantes republicanos de Nixon na Comissão de Justiça abandonaram-no. Ficando unicamente com 15 apoiantes, em 100 possíveis, no Senado, órgão que faria de júri num possível julgamento, Richard Nixon apareceu na televisão, e após 2.027 dias no cargo demitiu-se, com alguma elegância mas sem pedido de desculpas. No dia seguinte, com Nixon a dirigir-se para a sua residência na Califórnia, o poder foi transferido para Gerald Ford, que afirmou na tomada de posse: «o nosso longo pesadelo acabou. A nossa Constituição funciona.» Para quem detestava Nixon o momento foi de júbilo, mas para a maior parte dos americanos foi unicamente um enorme alívio. Após dois anos de Watergate, o chefe do governo americano podia dedicar-se a resolver os problemas do país e deixar de estar preocupado com a sua própria sobrevivência. Ford parecia ser o homem para o momento. Enquanto Nixon se preocupava com a pompa à volta do poder, os gostos do novo presidente eram simples; de facto era uma criatura do Congresso, um homem do povo. Nixon gostava do secretismo e era desconfiado, Ford ao contrário aparecia descontraído, aberto e de confiança. De facto, nos primeiros tempos na Casa Branca Ford parecia não poder fazer nada de mal. Era bom demais para durar - e de facto não durou. Num calmo e soalheiro Domingo de Setembro, Ford alterou o rumo da sua presidência e decretou um perdão presidencial a todos os actos de Nixon enquanto Presidente dos Estados Unidos. A sua decisão, solitária, baseou-se na compaixão e no desejo de sarar as feridas provocadas pelo caso Watergate. A «lua-de-mel», o período de ..., acabou nesse mesmo dia, e a verdade é que sempre se suspeitou de que tinha havido um acordo qualquer, que de facto nunca foi documentado. Ford superou a crise, e no fim do ano a preocupação tinha deixado de ser o perdão, mas se ele tinha as capacidades necessárias para atacar os problemas económicos dos EUA. Mas o legado deixado pelo Watergate não desapareceu, e continuou a influenciar decididamente as atitudes do governo, do partido republicano e da população em geral. Esta influência foi bem visível nas eleições de 1974. Os eleitores votaram para castigar o Partido Republicano, e os democratas recolheram os benefícios conseguindo uma vitória no Congresso, que lhes deu uma maioria de votos que permitia combater os vetos presidenciais. As eleições de 1974 foram mais do que uma questão de números. Enquanto os eleitores reelegeram alguns velhos conhecidos, como o Governador do Alabama George Wallace, entusiasmaram-se sobretudo com candidatos que lhes prometiam na maneira de fazer política, e podiam falar convincentemente sobre integridade. Por isso, 1974 tornou-se o Ano da Mulher na política americana, o ano em que as melhores deixaram de ser as trabalhadoras nas campanhas eleitorais masculinas, para passarem a serem candidatas. Ella Grasso, Governadora do Connecticut, foi a primeira governadora de um estado a ser eleita pelo seu próprio mérito, e não para ultrapassar as limitações de mandato do marido. Na Carolina do Norte uma mulher foi eleita Presidente do Supremo Tribunal do Estado, e em Nova Iorque uma mulher foi eleita Vice-Governadora com base no slogan «Ela não é mais um dos rapazes». Mais de 800 mulheres fizeram parte das listas de candidatos a nível local e nacional, tendo havido um aumento de 27 % de mulheres em cargos públicos. A tendência dos eleitores para procurarem novas soluções ajudou também as minorias raciais, e as novas vedetas saídas das eleições do Outono, aqueles que foram considerados com melhores perspectivas futuras, foram pessoas recém-chegadas à política, como o antigo astronauta, eleito senador, John Glenn, o novo Governador da Califórnia Jerry Brown e o novo Governador de Nova Iorque Hugh Carey. Não foram só os eleitores a adoptar novos padrões de análise de comportamento dos políticos, a maior parte dos estados passaram leis sobre a ética política, tentando tornar a vida política local mais honesta. E ao nível nacional, o Congresso passou leis sobre as campanhas eleitorais, regulamentando as contribuições particulares e empresariais, criando também um sistema de financiamento público das campanhas, inexistente até aí. Um negro apanhado no meio de uma manifestação de
brancos, em oposição a um plano de integração racial das
escolas proposto pelo município de Boston, saiu dela muito
maltratado. O novo Vice-Presidente, Nelson
Rockefeller, cuja nomeação foi aceite pelo Senado em Dezembro, viu a
sua vida e a da sua poderosa família ser analisada, e mesmo a sua
confirmação para o cargo em perigo, quando se descobriu que tinha
enchido de presentes conhecidos seus, com ligações políticas
importantes; que devia 1 milhão de dólares ao fisco e que o seu irmão
tinha pago uma biografia muito negativa para um dos seus adversários na
campanha eleitoral para eleição do governador estadual. O escândalo do Watergate tinha dado nova
vida ao Congresso, o que foi visto de uma maneira positiva por muitos
analistas. Para estes, o Watergate tinha mostrado, como o Vietname, os
abusos de poder executivo, e esta constatação podia fazer com que
poder legislativo ganhasse algum protagonismo na definição da agenda
política americana. De facto, o Congresso, com uma maioria
democrata e por isso contrária ao Presidente, republicano, começou a
pôr em causa vários aspectos da política presidencial, não tendo
ratificado, por exemplo, uma lei de apoio financeiro e militar à Turquia.
De facto, o Congresso
passou a tomar a sua função de aconselhamento e de consentimento mais
seriamente, questionando cada vez mais as acções e as decisões do presidente. As
forças reformadoras estavam na mó de cima. É que a corrupção
política na era de Nixon tinha sido muito generalizada e a tentativa de
cura estava a ser radical. |
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