DAS MEMÓRIAS DE BULHÃO PATO


Quem lê o Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins tem tendência a desvalorizar a violência dos embates entre as diferentes facções políticas que se digladiavam no Portugal de Novecentos. Mas Oliveira Martins tinha como objectivo mostrar a inexistência de valores no Portugal liberal, o que não tinha necessariamente a ver com a realidade dos factos.

Nota: As ligações no texto remetem para entradas no «Portugal - Dicionário histórico».

Bulhão Pato

Bulhão Pato

TORRES VEDRAS – OS DESTERRADOS

Nestes Quadrinhos há-de haver algumas manchas negras. Aí vai a primeira.

No dia 22 de Dezembro de 1846 deu-se a batalha de Torres Vedras.

A descrição pormenor vem no livro de D. António da Costa «História do Marechal Saldanha» (1) –. Limitar-me-ei a algumas notas pessoais sobre aquele dia tragicamente memorável e os que se lhe seguiram.

Duque de Saldanha tomara o pulso à revolução. Era de facto uma revolução popular de sangue vivo do País e com homens à sua frente: Sá da Bandeira, conde das Antas, conde de Bonfim e o velho general Álvaro Xavier Coutinho da Fonseca e Póvoas, soldado português de que ele, Saldanha, mais se arreceava.

Póvoas provou-lhe bem quanto valia nos desfiladeiros, vales e chapadas da serra da Estrela.

Decorrido mais de meio século de paz podre, não se calcula hoje o que eram as paixões políticas daquele tempo. Estou convencido, como já disse por vezes no percurso destas Memórias, que o medo dessas paixões, que tinham rompido nos maiores ímpetos dez anos antes nos dias torvos da Revolução de Setembro e da Belenzada, é que levou os caudilhos da Maria da Fonte a ter mão num golpe decisivo, golpe que, sem abalar as instituições, poria em grave risco a coroa de D. Maria II.

Voltarei a este assunto.

No dia 22 de Dezembro de 1846 o duque de Saldanha achava-se porventura na situação mais difícil de toda a sua longa e brilhante carreira militar. Na frente -Torres Vedras – estava o conde de Bonfim com a divisão, onde havia soldados escolhidos, oficiais inteligentes e bravíssimos, tendo por chefe do Estado-Maior nem mais nem menos do que Luís Mousinho de Albuquerque.

Conde de Bonfim, conquanto a sorte nem sempre lhe fosse propícia no campo da batalha, era destemido e general ilustrado. A lenda do confessionário e da bandeira preta seria irrisória se não tivesse o fel da calúnia (2). Na retaguarda, a dois passos, Saldanha tinha em Tagarro, Alcoentre, Cercal, o conde das Antas, «que o podia e devia entalar a cada momento contra as posições invencíveis de Torres Vedras» (3)

O duque jogou um lance desesperado, e mais ainda do que a perícia e intrepidez lhe valeu a sua afortunada estrela.

Dia sinistro. Já os outros haviam sido também tempestuosos; mas a tormenta redobrou naquele.

Os rapazes da Maria da Fonte, rapazes e velhos, bateram-se com desenganada bravura.

A matança foi terrível!

A batalha começou pelas onze da manhã. Num relançar de olhos, Saldanha viu que a tomada do forte de São Vicente era o ponto capital do assalto. O conde de Bonfim tinha lá dois mil homens da flor da sua gente.

O duque, esfregando as mãos – todos os homens de guerra têm o seu tique; o dele era este – bradou:

- «A artilharia?»

- «Ainda não chegou.»

- «Ximenes

- «Marechal!»

- «O Sola que tome com a brigada o forte de São Vicente à baioneta.» (4)

Tomar o forte à baioneta parecia mais que uma temeridade, uma loucura.

Sola, com a sua cara de romano e a impassibilidade de um autómato – conheci-o muito – desembainhou a espada e cumpriu a ordem. Tomou o forte, apesar de heroicamente defendido. Nas pontes, para a estrada da vila, a refrega foi medonha!

Ali o Regimento 4, comandado pelo major Soromenho, do campo da Maria da Fonte, teve, por um momento, o inimigo desbaratado.

O general Galhardo, cunhado de A. Herculano e pai de Eduardo Galhardo, um dos valentes das nossas últimas guerras de África, estava do lado de Saldanha, e foi ele que decidiu brilhantemente a batalha com a sua artilharia.

Fora camarada de Soromenho no cerco do Porto e na expedição que mandámos a Espanha.

Narrando-me episódios da acção de Torres Vedras disse-me que Soromenho, por milagre, escapara da morte cem vezes naquele dia, como Ney, nas cargas sucessivas sobre os quadrados ingleses em Waterloo.

Ney caiu às balas de Luís XVIII, Soromenho foi prisioneiro, degredado para Angola, e lá sucumbiu às febres do país.

O caso dos Desterrados, aos quais se concederam espadas e bagagens, por se haverem batido heroicamente, palavras do marechal Saldanha no acto da capitulação, é uma nódoa sangrenta sobre o partido da rainha, nódoa que há-de aparecer rediviva na história desses calamitosos tempos.

Sobre D. Fernando, como regente, D. Pedro e D. Luís, que reinou tantos anos, não caíram, felizmente, dessas nódoas.

Em Dezembro de 1886, voltando eu da ilha de São Miguel pela Madeira com Silvério Augusto Pereira da Silva, hoje general de engenheiros e um dos raros que me restam da juventude, na vivacidade elegante da sua conversação e comovido ainda, apesar de tantos anos decorridos, narrou-me os últimos momentos de Luís Mousinho de Albuquerque, seu tio.

Silvério era em 1846 rapaz dos seus dezassete para dezoito anos e ajudante-de-ordens de seu tio, daquele privilegiado espírito que foi poeta, estadista, soldado, homem de ciência e, sobretudo e principalmente, simpático e nobilíssimo carácter.

No fim da batalha, Luís Mouzinho, ferido de morte, disse para o sobrinho, textuais palavras:

- Como te bateste?

- Parece-me que cumpri com o meu dever.

- E meu filho?

- Como seu filho.

O filho era José Diogo Mousinho de Albuquerque, pai de Joaquim Mousinho, cujo nome é hoje mais um brasão do Exército Português.

O duque de Saldanha, vibrante ainda dos últimos raios da batalha, abeirou-se da enxerga ande jazia agonizante Mouzinho de Albuquerque e disse-lhe algumas palavras afectuosas; quero crer que sinceras, porque a alma do grande leviano general era boa. Mouzinho encarou com ele e não lhe respondeu.

Que sinistros clarões, nas proximidades da morte, não passariam por aquele cérebro lúcido ainda!

Apesar da noite tormentosa, dos caminhos de Torres Vedras naquele tempo, a notícia de Saldanha ter ganho a batalha chegou a Lisboa com espantosa rapidez.

Logo de manhã o aspecto da cidade tornara-se sepulcral. Nem os próprios vencedores se atreviam a manifestar as alegrias da vitória. Centenas de pessoas tinham nos dois campos parentes carnais e amigos. Havia como que um cheiro a sangue e a morrão de enterro.

Mulheres, mães, irmãs e amantes reviam no rosto contraído pela ansiosa incerteza alguma coisa da loucura e, não raro, faziam perguntas desvairadas!

No crescer do dia chegavam ao Hospital da Estrela os feridos; alguns moribundos.

Os grilhetas, a legião sombria daqueles desgraçados que andavam a dois e dois pelas ruas, atrelados como cães por grossas correntes, foram separados para serviço das macas.

Que préstito fúnebre!

Pedro Canavarro, moço que em proporções humanas tinha a correcção e a elegância do Neptuno de João de Bolonha (5), lago às primeiras descargas caiu com uma bala que lhe levou ambos os olhos.

O desgraçado pediu aos camaradas que o acabassem.

João Carlos de Lara Everard, do campo dos patuleias, rapaz loiro e espigadito, fervia-lhe a bravura no sangue.

Era aspirante de infantaria. Vendo-se, no ímpeto da avançada, separado dos camaradas, e caindo-lhe aos pés um soldado de cavalaria, deitou mão da espada do defunto, montou a cavalo e atirou-se para o vórtice do combate.

Dali a pouco estava com mais cutiladas e lançadas do que as vinte e cinco do cavaleiro da lenda da Bela Infanta (6).

No mesmo dia da nova da batalha soubemos que Everard, o nosso condiscípulo da Escola Politécnica, ficara morto no campo. Lembro-me das lágrimas que chorámos com a sensibilidade dos dezasseis anos. Essas lágrimas foram-nos compensadas quando dali a pouco tivemos a notícia de que havia escapado carro por milagre e estava em caminho de completo restabelecimento.

Aquele corpo delgado e elegante era tão sadio e vigoroso como a sua alma lavada e enérgica.

Passada a guerra, voltou aos estudos. Aí está o filho, Lara Everard, distinto funcionário da Alfândega e jornalista.

À extrema ansiedade que agitava a capital seguiu-se a apatia morna que sobrevém nas grandes catástrofes.

A chegada dos presos de Torres Vedras a Lisboa e a entrada deles nas presigangas do Tejo aumentou ainda o tom mortuário da capital.

Uma necrópole!

Quando algum raro dia daquele tempestuoso Inverno rutilava todo azul e oiro, faiscando no Tejo, iluminando os quintais e as hortas da cidade, Lisboa era porventura mais triste. Ermas as ruas, desertas as praças, janelas cerradas. Aqui e além ouviam-se as risadas cristalinas do rapazio desenfreado, com bandeiretas de farrapos, espadas de cana, divididos em dois bandos, simulando a batalha das vésperas e prenunciando as que deviam seguir-se.

As crianças a foliar no meio das grandes tragédias comprimem-nos amargamente o coração, porque nos lembram o durum genus, a ferocidade da origem humana!

Via-se a cada passo não só a tristeza, mas a miséria impacta nas fisionomias.

No Limoeiro os presos políticos, homens respeitáveis como D. Cristóvão Manuel de Vilhena, António Lúcio Tavares Magessi, José Manuel Teixeira de Carvalho, António Palha, etc., etc.

Os operários absolutamente sem trabalho, todos os géneros de primeira necessidade pela hora da morte; nenhuma transacção comercial.

Os empregados públicos, com muitos meses de atraso, acudiam a rebater os ordenados por um desconto enorme.

Quantos desses empregados, que pertenciam a diversos batalhões, vi eu trazerem, em pleno dia, debaixo do braço, o pão de munição para o repartirem pela família.

As notas do banco trocadas por menos de metade do seu valor; os cabos de polícia deitando mão aos moços adolescentes, sem distinção de classe, para lhes sentarem praça no exército da rainha.

Depois da batalha, como já disse, os próprios adversários não se atreviam a celebrar ruidosamente o entusiasmo do triunfo.

Só a rainha não pôde ter mão em si.

Quando a guarda de honra chegou às Necessidades, D. Maria II, abrindo com as próprias mãos a realenga sacada, na sua voz sonora e vibrante de júbilo, clamou:

- Vitória, rapazes!

Os cabelos, em saca-rolhas, flutuavam às refregas da quadra tempestuosa, as rosas da mocidade saltavam-lhe das faces acesas pela comoção da vitória. O que podem as paixões políticas! Esta senhora, exemplo de esposa e de mãe, não se lembrava de tanta viúva e de tangos órfãos; de Mouzinho de Albuquerque, glória da pátria e amigo de seu pai nos dias da adversidade; do sangue fraterno que tingia a corrente arrebatada do Lisandro (6) na força da invernia.

Alguns cortesãos quiseram negar o facto, mas oram obrigados a engolir o impudor da lisonja, porque o facto teve por testemunhas centos de pessoas e uma delas fui eu.

A rainha, palpitante de entusiasmo –, sentia-se-lhe a mão convulsa a cada palavra – escrevia esta carta ao duque de Saldanha:  

«Meu querido duque

Não quero perder mais tempo em agradecer-lhe a importante vitória que o duque alcançou em Torres Vedras, mostrando assim a sua inabalável dedicação à minha pessoa e à Carta Constitucional. Estimo muito congratular-me com tão digno general pela briosa e distinta conduta de todos aqueles que guiou à vitória.»  

A inabalável dedicação à sua pessoa lha provaria o duque dali a cinco anos, na noite de 15 de Maio de 1851, no Teatro de S. Carlos, obrigando-a a tragar o bocado mais amargo de toda a sua vida, sacrifício que ela fez com senhoril e régia dignidade.

D. Fernando, nas pegadas da mulher, também escrevia ao duque:  

«Sinto um verdadeiro prazer em ver a conduta dos seus soldados, e sobretudo os novos e tão importantes loiros que alcançou o digno e denodado chefe, loiros dignos daqueles que já tinha alcançado no serviço da rainha e da Pátria; muito o honra o modo por que dispusera as coisas; isto aqui foi reconhecido por todos, mas sobretudo por nós.»  

Ao povo chegou o sobretudo por nós; isto é, o entusiasmo do Paço pelo desastre sangrento da causa popular.

Os ódios recrescendo iam cair sobre os mais altos: no Paço e nos Cabrais.

A rainha passava na sua caleche, batedores à frente, com o João Inglês, o famoso cocheiro no pescante (7), bonito rapaz de cabeleira empoada, olhando para o povinho da cidade com o desdém soberbo de quem tinha a Grã-Bretanha na barriga. Vendo o tiro de urcos (8) e o auriga bretão, o povo rosnava, por entre os dentes, alguns realismos nacionais assaz pitorescos:

«Os nossos reis andavam puxados a mulas de Alter e os lacaios eram portugueses.»

Quando apontavam os batedores, muitas janelas se fechavam e grande número de transeuntes se metia por portas de escada para não cumprimentar a soberana odiada por toda a cidade e todo o país.

Luís Mouzinho expirou em Torres Vedras.

Em breve o seu Espectro (9) apareceu na capital, nas províncias e no Paço. Não à hora dos demónios, pela noite velha, mas em pleno dia.

Esse Espectro apavorou a corte e os magnates que cercavam as majestades.

A imprensa oprimida ainda é mais poderosa e mais terrível do que em plena liberdade.

De onde saía aquela folha sibilina e trágica? Das sombras onde se avultava um homem que tinha o pulso de Armando Carcel. De ande viera? de que família procedia? como se chamava esse homem? Viera de berço obscuro, pertencia à família da grande aristocracia da inteligência, chamava-se António Rodrigues Sampaio.

Alto, forte, mãos poderosas; a exuberância da sua musculatura dava ideia de uma estátua incorrecta na forma ou antes tosca no desenho, arrancada de um bloco da nossa pedra lioz. Não tinha curso superior, como não o tinha Alexandre Herculano e tantos outros; mas era forte em humanidades e latino de primeira ordem. Filiou-se no partido popular avançado – Revolução de Setembro – e não tinha rasto onde os inimigos lhe pudessem morder.

De toda a sua força física e vigor moral precisou Sampaio, porque para abrir caminho teve o rude trabalho de cabouqueiro: fender a rocha, fazendo saltar as lascas de pedras às picaretadas, sempre a braços e suando.

No estado dos espíritos naquela época, o Espectro, que parecerá hoje retórico, era um papel de sangue e de fogo.

Com grave risco de serem espancados, e alguns o foram, os patuleias alcançavam o jornal e, com as máximas cautelas, difundiam-no por amigos e correligionários. Lia-se nos recessos da casa, em voz muito baixa, à família e pessoas de toda a confiança, tremendo de cima, do lado, de alguém que subisse a escada. O nome de António Rodrigues Sampaio pronunciava-se como se fosse o de um apóstolo inspirado, vingador sublime daquelas iniquidades.

Não há nada para engrandecer as coisas como o ambiente de uma revolução.

Parece que as correntes do ar nos acendem o sangue como o vinho capitoso.

Tudo toma cores e proporções extraordinárias: os laços de estima dados de momento, um aperto de mão por leve fineza, transformam-se em pacto sacrossanto de amor fraterno; o plectro da melancolia converte-se em clarim que despede notas de fogo.

Do Campo Santo (11) sai a elegia para os tristes; das pradeiras (12) floridas o idílio para os amantes; dos campos de batalha a ode que leva, não só os intrépidos, mas até os tímidos, à heroicidade.

Quantos rapazes de hoje, neste momento de frieza e positivismo, se as coisas mudassem não entrariam cegos no turbilhão do combate! O nosso sangue peninsular, tão apodado, é ainda o mesmo; tudo está em aquecê-lo.

O exemplo tivemo-lo na África.

Foram precisos exploradores? - país algum os teve mais ardentes e desenganados.

Tocou ao combate? - todos sabem o que foram os nossos soldados. Os factos passaram-se ontem. Aos 72 anos é provável que acredite em poucas coisas; no temperamento da nossa raça, sendo preciso lutar, acredito ainda.

Tremiam todos que se descobrisse o paradeiro onde se ocultava o grande jornalista. Quando se falava em trapeira, Sampaio sorria com o fino sorriso de humorista que ele era!

António Rodrigues Sampaio, durante muitos anos, com modestíssimos meios, sem medo e sem mácula, esteve sempre na brecha, repelindo os mais furiosos assaltos. Depois o ânimo vigoroso dobrou-se-lhe ao coração. Alguma coisa quis deprecar de Roma. Não o conseguiu. Custou-lhe caro.

Os seus adversários aproveitaram o ensejo e foram cruéis. Ele, pela primeira vez, teve de tragar o fel da sátira em amargo silêncio

Logo depois da capitulação começaram a correr boatos de fuzilamentos, boatos que recresceram e aterraram a capital. Atribuía-se a intenção nefanda à coroa. Não o creio. Parece que vendo a revolução popular erguer a cabeça por toda a parte, e sentindo o ódio que os patuleias lhe tinham, a rainha enfurecida clamara:

- Mereciam ser fuzilados; mas hão-de ser desterrados.

Isto foi o que me disse, muitos anos depois, uma alta aristocrata, espírito fino e culto, que viveu desde a infância com D. Maria II, não só como dama, como irmã.

Foi como a mão na consciência que a nobilíssima senhora me afirmou estas palavras.

A calúnia saiu do Paço, onde não há dia do Senhor em que se não inventem algumas, e às vezes os capitais inimigos dos reis são os que tudo lhe devem.

*

*          *

Paremos aqui um momento e voltemos nove anos atrás para falar de um homem de quem fui amigo e caiu prisioneiro em Torres Vedras.

A batalha do Chão da Feira – 1837, na célebre Revolta dos marechais – correu rápida, não chegou a durar duas horas, mas foi sangrenta.

Lá ficou João Nepomuceno de Macedo, barão de São Cosme, o Ney português, o pobre moço conde da Redinha e, ferido gravemente no peito, o destemido e simpático Fernando Mousinho de Albuquerque. De tantos que assistiram à refreia, e viveram na minha intimidade, só me resta hoje D. Luís da Câmara Leme, que também lá se bateu como um bravo que sempre foi (13).

O duelo mortífero do Chão da Feira dava-se entre homens que havia muito poucos anos ainda se tinham abraçado nos dias da adversidade e nos dias triunfais, e davam-se apenas por discórdias caseiras.

Mal empregados actos de heroicidade que ali se praticaram!

O acaso fez com que o combate rebentasse no mesmo Chão onde séculos antes Nuno Álvares Pereira e o Mestre de Avis desbarataram o rei de Espanha (14) e firmaram a nossa nacionalidade.

As causas foram completamente diversas; uma grandiosa, outra insignificante; mas o ânimo dos soldados, nas duas e remotas épocas, igualmente decidido.

No princípio da acção os setembristas perdiam terreno. Saldanha aventurou uma carga de cavalaria, arma de que no momento podia principalmente dispor. Encontrou, porém, Caçadores 2 em quadrado.

Lá estava nesse regimento Sebastião Francisco de Assis Drago Valente Leão de Brito Brim Cabreira.

O nome tem o retumbar de um parque de artilharia!

A bravura daquele que o usava era digna de tal nome.

Não houve nunca ninguém mais intrépido.

Não descrevo a batalha; narro apenas um relance.

Quando a testa do esquadrão, com o barão de São Cosme à frente, veio ao chão quase toda, o chapéu do marechal Saldanha caiu-lhe da cabeça, isto sobre o quadrado, que se desfazia em constantes descargas.

Miguel Ximenes, ajudante-de-ordens do marechal, apeou-se como se estivesse numa parada e entregou-lhe o chapéu. Eram homens destes!

Que pena, repetimos, malbaratados em pugnas miseráveis!

A Revolução de Setembro, contra os da Carta e da rainha, como é sabido, ficou vencedora, porque o conde das Antas – visconde ao tempo – na volta de Espanha, não quis aderir aos marechais.

*

*          *

José Eduardo de Magalhães Coutinho completara o seu curso no Hospital de S. José e acompanhava o pai, oficial de cavalaria, não sei se do lado dos cartistas se dos setembristas, como cirurgião militar.

Terminado o combate do Chão da Feira, Magalhães Coutinho percorria o campo quando se lhe deparou um rapaz, uma criança quase, horrivelmente mutilado. Julgou que fosse francês ou belga, por uma exclamação sumida que soltou em francês. Uma bala de cambão tinha-lhe despedaçado uma perna.

Transportado, como Fernando Mouzinho e outros feridos, para um lugarejo, Magalhães Coutinho tratou de proceder à amputação. Faltavam-lhe instrumentos; os poucos que possuía haviam-se desencaminhado.

Acudiu às navalhas de um barbeiro e ao serrote de um marceneiro. Durante a operação, o paciente só exclamou:

- Mon Dieu! Mon Dieu!

As suas mãos crispadas deixaram, porém, os dedos assinalados nos que o seguravam.

A boa organização e a mocidade triunfaram. Em poucos dias estava em plena convalescença.

Magalhães Coutinho viu logo que o seu operado era moço inteligente e de fina educação. Falava português, mas fora educado em França. Disse-lhe que pertencia a família portuguesa e se chamava Fernando de Sousa.

Médico e enfermo eram já amigos de alma. Uma mulher solícita não seria mais carinhosa do que Magalhães Coutinho foi com o pobre amputado.

Um dia, duas senhoras apearam-se de uma liteira e entraram a porta da casa.

A distância sentia-se, naquelas duas senhoras, a distinção da fidalguia portuguesa, caríssima no ambiente ranço em que respiramos agora.

Eram a condessa de Vila Real e sua filha segunda, D. Maria Teresa de Sousa, depois condessa da Ponte.

Faleceu há poucos meses a finíssima senhora, exemplo de virtude durante uma longa vida.

Quando D. Fernando de Sousa – conde de Vila Real – partiu para Lisboa, a irmã tirou do seio uma bolsa de cetim roxo e ofereceu-a ao médico que lhe salvara o irmão. Eram cem libras esterlinas.

Cem libras naquele tempo!

A última vez que Magalhães Coutinho me contou este episódio da sua mocidade foi em Vale de Lobos, antevéspera de Alexandre Herculano expirar, e disse-me, como dizia sempre que narrava o facto:

- Julguei-me um rei!

Magalhães, tão estimado em casa do conde de Vila Real pela gratidão que lhe tributavam, era querido e admirado também pela vivacidade e graça de espírito.

O médico entrava, pois, na flor da grande roda portuguesa e da grande clínica.

Era alto e moreno; feio; olhos pretos retintos, ardentes como duas brasas; boca rasgada, de beiços grossos, mas expressiva.

Vida petulante a saltar-lhe da musculatura, da arca do peito, do gesto, dos movimentos, da palavra, sempre colorida e fecunda.

Homem extraordinário.

Alexandre Herculano disse-me muitas vezes que era a mais vasta inteligência que tinha conhecido. Possuía todas as condições dos cérebros excepcionais; via coisas em largas sínteses, sendo ao mesmo tempo analítico e penetrante observador.

Andava estudando medicina e era professor de Grego: Tinha a vocação da ciência e das letras. Em história da medicina, nem antes nem depois, em Portugal, teve quem ombreasse com ele.

Cursou matemáticas e levou os primeiros prémios. A astronomia prendeu-o sempre.

Escrevia com elegância e correcção; era didáctico e artista.

Por que não deixou na ciência um grande nome? Pela paixão absoluta, pela paixão cega que o dominava: as mulheres! Rompia por tudo, esquecia tudo, família, ciência, amigos, e lá ia na peugada de uma saia, de cabeça levantada, a ventos, como perdigueiro de finíssima raça, e parava e entrava, sem que o mandassem, no portal de escudos timbrados e na cabana do pescador.

Isto de cabana do pescador não é retórica.

De uma vez desapareceu de casa, abandonando doentes e discípulos, e anilou perdido por essas praias do norte com uma ondina de tamanquinhas, brunida dos salgadios do mar, risinho de pérolas, covitas nas faces, ancas roliças, sacudindo a saia curta, cinta quebrada, chapelito braguês firmando-lhe na cabeça o lenço flutuante de cores lúbricas, arrecadas e coração de filigrana, mais apetitosa e picante do que a viva da costa!

Já com os setenta puxados adoeceu em certo aposento. De improviso aparece um eminente personagem e encontra-lhe à cabeceira, não uma dama do Paço, mas, posto que já no declinar do sol, uma rainha da beleza!

Conde de Vila Real estava na lista dos desterrados.

A irmã do conde, D. Isabel de Sousa, condessa de Rio Maior, e a mulher do conde, da casa Braamcamp, foram deitar-se aos pés da soberana.

D. Maria II foi inabalável, dizendo depois das encarecidas e angustiosas súplicas:

- Olha, Isabel de Sousa, sinto deveras porque fui muito amiga de teu pai.

Então a condessa de Rio Maior, elevada inteligência, a mais robusta inteligência de mulher que tenho conhecido, com a legítima altivez do seu digníssimo carácter, disse-lhe:

- Pois não o parece, minha senhora. A consolação que me resta é que Vossa Majestade há-de ter remorsos e há-de arrepender-se amargamente do que vai fazer.

E sem esperar que a rainha a despedisse, com o coração trespassado, de dor, saiu, grande e senhoril, pelos salões realengos, onde os seus antepassados entravam de chapéu na cabeça.

Conde de Vila Real era de mediana estatura, delgado, mas todo nervos e músculos, valente, da valentia cega que se chama intrepidez.

Nada abatia aquele ânimo.

De Angola escrevia a uma das suas irmãs, não sei qual das três:

- Em breve a minha boa estrela me tirará daqui.

A minha boa estrela tem graça! Quase uma criança, entrava numa batalha; a primeira bala de canhão levava-lhe uma perna. Passados nove anos, no castelo de Torres Vedras, batia-se como um leão até à última descarga; era feito prisioneiro, desterrado para a Costa de África, deixando a sua grande casa, pátria, amigos, família; um filho nas entranhas da mulher que adorava, e com o mais desenganado bom humor gabava-se da sua boa estrela!

Angola reputava-se então terra para galeotes (15).

A viagem poderia durar seis meses na ida e seis na volta.

Ainda quando nessa época partiam navios para a África, mercantes ou de guerra, se ouvia o povo repetindo a letra tradicional e agoirenta:

- «Quantos irão que não voltarão!»

E aqueles, coitados, de mais a mais, iam para ferros de el-rei, funestados apelo rancor dos ódios políticos!

O desterro deu-se contra a expectativa de toda a gente humana e honesta.

No dia 1 de Fevereiro de 1847, no brigue Audaz, lá foram. Eram 43!

- «Quantos irão que não voltarão!»

Duas vezes tenho visto sair navios do Tejo, saltando-me dos olhos lágrimas de dor e de sangue. A primeira foi essa.

A segunda quando os franceses nos levaram Charles et George (16).

Depois, muito depois, já velho, de olhos enxutos – é árida a velhice –, vi, do cimo do casal deste Monte, outra esquadra bordejando ameaçadora e sinistra como a Iniquidade Omnipotente! (17)

A aragem fria e prenúncio do Inverno, caindo das assomadas de Sintra, enfunava-lhe o pavilhão soberbo e sangrento.

Na orla serena do horizonte, o sol do meu país, baqueando no mar, sumiu-se nas ondas rubro... de vergonha!


Notas:

(1) António da Costa de Sousa Macedo, História do Marechal Saldanha, Lisboa, Imprensa Nacional, 1879.
(2) Segundo Oliveira Martins, baseado em João de Azevedo, (Os dois dias de Outubro, ou a história da prerrogativa),  «dizem que ao começar a batalha o pobre general sempre infeliz se escondera numa igreja, metido num confessionário, com uma bandeira preta cravada no telhado a indicar um hospital de sangue» (Portugal Contemporâneo, II, pág.182 da 8.ª ed.).
(3) Nota do autor: D. A. da Costa, História do Marechal Saldanha, pág. 503.
(4) Nota do autor: D. A. da Costa, História do Marechal Saldanha, pág. 505.
(5) João de Bolonha (1529-1608). Escultor de origem flamenga, trabalhou em Florença realizando estátuas e fontes em estilo pré-barroco.
(6) Referência a um dos textos incluídos no romanceiro de Almeida Garrett: A Bela Infanta (v. Obras Completas de Almeida Garrett, Romanceiro IV, Lisboa, Estampa, 1983, pp. 77-89.)
(7) General espartano, conquistador de Atenas em 405 a. C., que não hesitava em fazer correr sangue aliado desde que tal servisse os seus interesses.
(8) Assento da carruagem.
(9) Cavalo corpulento de tiro, i.e. a prestar o serviço de puxar.
(10) Jornal anticabralista escrito por António Rodrigues Sampaio, publicado e distribuído clandestinamente entre Dezembro de 1846 a Julho de 1847.
(11) Cemitério.
(12) Planície verdejante.
(13) Nota do autor: Esta parte foi publicada no Brasil Portugal, de 1 de Dezembro de 1901.
(14) Chão da Feira encontra-se perto do local onde se deu a batalha de Aljubarrota.
(15) Remador de galés, usado no sentido de serem forçados a remar nas galés - criminosos.
(16) Nome de um navio francês que, em 1857-1858, foi apresado pelos portugueses por suspeita de transportar escravos de Moçambique para a ilha francesa da Reunião. O governo de Napoleão III exigiu a libertação do barco e do comandante e o pagamento de uma pesada indemnização.
(17) Referência ao Ultimatum de 1890.

 

Fonte:
Bulhão Pato
Memorias. Quadrinhos de Outras Epochas, Tomo III, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1907; págs. 3 -34; 2.ª ed., Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1986; págs. 19-35


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